domingo, 31 de maio de 2009

Davam grandes passeios aos domingos...
























Habituei-me a ver este quadrinho pendurado numa sala, em casa dos meus pais. Mais tarde, quando li Davam Grandes Passeios aos Domingos, passei a chamar assim este quadro de Miguel Barrias, pintor portalegrense, hoje um pouco esquecido.

Continua, porém, a ser belo, delicado, com a sua interioridade especial, e a sugestão de um passeio de duas pessoas que devaneiam pela cidade, passam pela Corredoura ( o quadrinho intitula-se "Corredoura" e tem o nº 9 na exposição a que se refere Régio, mais adiante) e vão andando devagar, pouco dizendo, e absortas nos seus pensamentos. A suavidade dos tons pastel, as pinceladas que lançam uma luz rosa, quase outonal -que a cor da folhagem das árvores acentua- é a dos impressionistas com qualquer coisa (para mim) de um certo fauvisme das paisagens de Vlaminck, por exemplo e de algum Gauguin.

À heroína de Régio é uma gravura que a leva a pensar nesses passeios tranquilos e, mais tarde, a concluir, já perto do final da novela, enquanto olha pela janela "a imensidão do céu e a amplidão da paisagem":
"(...) o pinhalzinho logo abaixo, a linha das serras longínquas, a ermida branca e vermelha de Sant'Ana: Eram amizades de seus olhos. Belos passeios que tem Portalegre para dar aos domingos...!"
De facto, num momento anterior, confessara, a propósito de uma estampa vista num livrinho: "nada tinha, afinal, de extraordinário ou palpitante (...) duas mulheres amparadas uma à outra, -um pouco dobradas como numa conversa íntima-, iam virando a curva do caminho. E um pequeno letreiro dizia por baixo: "Davam grandes passeios aos domingos..."
Vem-me à memória, logo, a figura da jovem heroína, e as outras personagens, a inesquecível Tia Vitória, a tia Alice (com os seus lamentos : "Cuidado comigo! não me arreliem hoje! Pelo amor de Deus, poupem-me! Tenho hoje todos os nervos de pé..."), o primo Nando, a Lá-Lá, o Chico Paleiros... E as ilusões perdidas, a desistência e aceitação da realidade da solidão da Rosa Maria.
Por isto tudo, não resisti a falar hoje de José Régio e de "Davam Grandes Passeios aos Domingos" (1941), novela admirável de análise psicológica, de delicadeza e observação, mais tarde incluída na 3ª edição (1968) das "Histórias de Mulheres".
E de Miguel Barrias. Que José Régio admirava.
A propósito de uma exposição das pinturas de Miguel Barrias, (em 1947) numa das salas da Escola Industrial Fradesso da Silveira -onde por acaso o meu pai fez um curso de serralheiro mecânico, antes de se formar em Medicina- escreve Régio:
"Um quadro é antes de mais nada uma superfície cortada de cores e linhas. Organizam-se estas consoante uma realidade interior, que é a do artista, e uma realidade exterior, que é o motivo, modelo ou assunto. (...) Dizemos que há subjectivismo, intimismo, abstracção, lirismo, ultra-realismo, etc., quando a realidade interior do artista prevalece sobre o exterior e aparente modelo."
Mais adiante reconhece :
"Intérprete como todo o autêntico artista, -ele organiza as suas impressões da realidade numa construção que as depura, as corrige, as escolhe. A chamada realidade exterior do motivo é, pois, simultaneamente sentida e pensada -direi, até, criticada, por um artista a que não são alheias quer as lições do impressionismo, quer as do cubismo."
E continua:
"(...) todos os seus quadros expostos têm uma seriedade natural, uma ausência de pequenos efeitos mistificadores, uma independência (que não exclui estudo e a admiração) perante quaisquer dos antigos ou recentes modelos a imitar (...)".
Em suma: "uma nobre lição de pintura." (in Escritos de Portalegre, Edição de "A Cidade" nas Comemorações do 15º aniversário da morte do poeta, 1984, pgs. 51-53).
Penso que juntei duas ou três coisas - duas ou três pessoas: o meu pai, Régio e Barrias-, duas ou realidades, um pouco de beleza e sensibilidade, que queria unir aqui.

sábado, 30 de maio de 2009

A incontornável Agatha Christie













Incontornável, sim, porque dêem-se as voltas que se derem, volta-se sempre a ela, a Lady do crime, Agatha Christie.
Sejam as personagens, os ambientes bem recriados, os mistérios, enigmas sempre insolúveis pelo leitor comum, porque as pistas são postas nos momentos certos, mas logo retiradas, apontando para este ora para aquele e os suspeitos vão até ao final, insuspeitos...
Suspeitos insuspeitos,“Ten little Niggers”, “Roger Ackroyd Murder", a peça “The Mousetrap” em cena, em Londres, há dezenas de anos...
Suspense absoluto até ao fim, peripécias e pistas que conduzem a várias soluções, arbitradas sempre pela autora.
Diz Raymond Chandler no seu ensaio, “The Simple Art of Murder”: “O principal dilema do tradicional ou clássico ou de simples- dedução, ou de dedução-lógica, dos romances detectivescos é que qulaquer aproximação da perfeição requere uma combinação de qualides que nempre se encontram no mesmo espírito. O frio construtor de intrigas não conesgue dar caracteres vivos, ou diálogo bem conseguido (...)E, por sua vez, o tipo que consegue escrever uma história viva, com prosa colorida, pode muito bem não conseguir fazer o trabalho de sabujo do detective: quebrar alibis inquebráveis...” A própria Agatha Christie cairia nessa armadilha, continua Chandler: Poirot, o “engenhoso Belga que fala inglês numa tradução literal de um miúdo que aprende francês”, sempre teimosamente armando sarilhos com as suas ‘little grey cells”, cai em situações de completa impossibilidade de resolver o crime, apostando só na sua decisão absoluta, sem qualquer forma de comprovação dos factos.
Mas voltemos à incontornável Senhora do Crime, ou Rainha do Crime...

A sua biografia é das mais interessantes. Leio neste momento uma biografia de Linda Thompson, “Agatha Christie, An English Mystery”, e fico a conhecer a criança e a adolescente que foi. A sua curiosidade pelas pequenas comunidades fechadas, das aldeias do tipo da St Mary Mead onde vive a suave mas inflexível Miss Marple. Os seus heróis diversificam-se: Poirot e o encantador Capitão Hastings, Miss Marple, os namorados Tommy e Tuppence...
Diz-me a minha amiga e incondicional fan da escritora, Ana Luísa, que é indispensável ler a a sua Autobiografia. Acredito. Prometo que vou lê-la!


Agatha Christie aliou uma imaginação brilhante a uma grande habilidade como narradora, para conquistar gerações de público para as suas histórias de mistério e suspense. Dos seus livros já se venderam mais de 2 biliões de exemplares.
Viajante, exploradora, acompanha o segundo marido, o arqueólogo Max Mallowan, em várias expedições. Conhece bem o Egipto, do Cairo, às pirâmides e a Luxor, de que tira ensinamentos e inspiração para muitos dos seus romances: “Assassínio no Nilo”, por exemplo, e muitas outras pequenas histórias em que os heróis participam em expedições perigosas, buscas em túmulos, e onde a insídia e a avidez lhes causaram a morte.
Nessas viagens, passou por Istambul e não resisti a procurar, um dia, o quarto onde ela ficava, no encantador Pera Palace Hotel, com a sua atmosfera especial fin de siècle.
Construído em 1892, para receber os viajantes do Expresso do Oriente, por ali passou toda a gente importante do mundo, desde a célebre espia, Mata Hari até à inesquecível figura, fundamental para os turcos, de Ataturk.
Era natural que Agatha Christie o escolhesse: era a atmosfera dos grandes expressos que procurava, dos viajantes, dos mistérios do Expresso do Oriente que ela vai recuperar.
Com a sua escadaria principal de mármore branco imponente, a sala de entrada, com paredes altíssimas cobertas de mármore rosa, o hotel perdeu hoje um pouco da sua grandeza, entrando numa certa decadência. Mantém, no entanto, o fascínio, com uma situação única numa espécie de península entre o Bósforo e o Golden Horn, e um pouco abaixo o Mar da Mármara, no centro da velha Istambul, na Area Beyoglu, e é procurado pelos eternos romântico, na esteira de passado desaparecido e, com ele, a famosa hóspede, Agatha Christie.

O quarto é um quarto mobilado sobriamente, que hoje é o Museu Agatha Christie. É o quarto que ela “viu”, onde viveu, pensou as suas histórias enquanto se passeava pelo Taksim, entre o Topkapi, a Mesquita Azul, do Sultão Ahmet, ou a Aya Sophia e a sua cúpula fantástica...
Hoje fico-me por aqui. Volto, com a Agatha Christie, em breve...

terça-feira, 26 de maio de 2009

The International Mähler Orchestra, em Santa Maria da Feira

Concerto em Santa Maria da Feira: The International Mähler Orchestra
Ouvir:
http://www.youtube.com/watch?v=cOybOtYT1-0 ( Requiem, de Verdi)







Henni



o violinista Ivry Gitlis



Yoel Gmazou






Ivry Gitlis








Afonso Fesch


THE INTERNATIONAL MÄHLER ORCHESTRA (IMO)
Dirigida pelo Maestro YOEL GAMZOU
NO AUDITORIUM EUROPARQUE, em Santa Maria da Feira, no dia 27 de Maio, 4ª feira, às 21:30

Notícia sobre a "Internacional Mähler Orchestra" (IMO)

A "Orquestra Iternacional de Mähler" foi criada, em 2006, por Yoel Gamzou, reunindo músicos jovens de alto valor profissional, vindos de todas as partes do mundo, para tocar e aprender com mestres experientes. Logo a seguir à criação da Orquestra, foi grande o sucesso de bilheteira e da crítica musical. Nessa estação musical de 2006/7, no final, foi apresentado, na Igreja de St'Johns, na Smith Square, Londres, um Concerto em memória do grande Maestro Carlo Maria Giulini que foi muito apreciado. Nessa altura a neta do compositor Gustave Mähler, Marina Mähler aceitou ser patrocinadora da Orquestra, sendo hoje sua Presidente Honorária.

BIOGRAFIA de alguns componentes da IMO, que vão participar no Concerto:

Yoel Gamzou

Nascido numa família de artistas, o maestro israelo-americano Yoel Gamzou distinguiu-se como especialista de Mähler. Tendo começado a sua educação musical tocando violoncelo, começou no entanto a estudar para Maestro com 12 anos de idade. Tendo começado a estudar em Israel no Catherine Lewis Conservatory e na Universidade de Tel Aviv, Yoel foi depois estudar em New York, Paris e Milan, trabalhando com alguns dos maiores directores de orquestra. Yoel foi o último aluno do grande Maestro Carlo Maria Giulini, com quem trabalhou intensamente até à sua morte.

Participou, como director de orquestra, em vários concertos em Paris, Berlim, Spoleto. Vem pela primeira vez a Portugal. (*)

Ivry Gitlis
Ivry Gitlis nasceu em Haifa, Israel, em 22 Agosto de 1922, de pais russos. Recebeu o seu primeiro violino aos cinco anos e deu o primeiro concerto aos dez. Tocou com as mais prestigiosas orquestras incluindo: New York Philharmonic, Berlin Philharmonic, Vienna Philharmonic, Philadelphia Philharmonic, e Israel Philharmonic.
Ivry Gitlis é considerado um dos mais talentosos músicos da sua geração e muitas das suas gravações são considerads clássicas. A sua primeira gravação "Le Concerto à La mémoire d'un ange," de Alban Berg, ganhou o Grand Prix du Disque (Grand Record Prize) em France.

Afonso Fesch

Nascido no Porto em 1988, e residente em Vermoim, Afonso Fesch é um dos mais promissores jovens violinistas portugueses, titular de vários prémios e vencedor de diversos concursos.

Inicia o estudo do violino aos 7 anos na Escola de Música Pedro Fesch. Em 2000, começa a estudar com o Professor russo Yossif Grinman. Conclui o exame de 8º grau de violino no Conservatório de Música do Porto em 2004. Nesse ano, concorre ao Prémio Jovens Músicos (classe B) e obtém o 3º prémio. Foi, desde então, bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian. Em 2006 concorre ao 2º Concurso Internacional de Violino em Lisboa e recebe o prémio “Revelação Portuguesa”.

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PROGRAMA:

J. S. BachDuplo Concerto para Dois Violinos, com Ivry Gitlis e Afonso Fesch como solistas.
Solo de Ivry Gitlis
E. Chausson –“Poeme” para Violino e Orquestra, com Afonso Fesch como solista.
J.Brahams - Sinfonia nº 3
G. Verdi - Suite para Orquestra do Requiem (arranjo do Maestro Yoel Gamzou)
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(*) N. A. Yoel Gamzou é filho de uma grande amiga minha, Mikhal Gamzou, artista e escultora telaviviana. Vi o "Maestro" pela última vez, em Ramat Aviv, na festa do seu bar-mitzva. Tinha, então, 13 anos. Foi há dez anos...
É com imensa alegria que amanhã vou assistir ao Concerto na Vila da Feira. Por isso, estou emocionada e quis que participassem da minha alegria.
A Mikhal também vai lá estar.
No fundo é a sensibilidade, a emoção e a arte que nos conduzem.
Como me escrevia há dias a minha ex-aluna Sílvia B., "sempre achei que é essencial gostarmos daquilo que fazemos (e no caso dos professores isso é muito importante), e saber transmiti-lo sem ter de se esforçar muito, como se estivesse no sangue e na alma, contagiando assim os outros e fazendo com que os outros também queiram ser assim. Também queiram ser geniais e únicos naquilo que fazem..."

Como qualquer um de nós. Como Yoel Gamzou, de certeza.

O Maestro Carlo Maria Giulini

(nasceu em 1914 na Toscana e morreu em 2005, em Brescia)
Ouvir:

http://www.youtube.com/watch?v=HuQYV6rpW3I

A "5ª Sinfonia" de Beethoven, dirigida por Carlo Maria Giulini

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Ler um conto












Vou indicar o site de um trabalho que eu fiz, uma "acção de formação" intitulada: "Criar material didáctico para colocar na net".
Isto para "ganhar" uns créditos e subir de escalão... no velho tempo em que não havia esta nova "avaliação dos professores" -mas em que os professores sempre trabalharam e sempre foram avaliados...

http://www.geocities.com/mariajfalcao/

A minha África outra vez: A Nina e a Tina







Chamavam-lhes "irmãs" por serem como duas gotas de água na maneira de ser: a mesma delicadeza, a mesma tranquilidade nos gestos, a mesma frescura do sorriso aberto. Eram o meu repouso e o meu refúgio no calor húmido de certos dias da ilha, na agitação interior, na dificuldade que tinha em respirar antes das chuvas caírem de repente.
Quando a luz "ia embora", como elas diziam, e o ar condicionado parava, a angústia pesava no meu peito, deixando-me exausta, num nervosismo incontrolado, ao acordar. Quando a água secava no poço e a minha sede era imensa. Era nesses momentos que a Nina e a Tina me amparavam: nos humildes gestos cheios de paciência, no espanto ingénuo diante das coisas da vida de todos os dias, na simplicidade de aceitar, apenas aceitar...
Chegavam de manhã cedo. A Nina no seu vestido de riscas azul-turquesa, com os cabelos pretos e brilhantes, que esticava em casa com rolos, os lôros chamava-lhes ela, e que prendia num travessão de pedrinhas coloridas. De onde eles fugiam, sempre, espetados.
Tenho saudades do sorriso tímido com que me dava os bons dias. Saudades das conversas com a Tina, na cozinha enorme do anexo da minha casa de S. Tomé, onde ela passava a ferro a roupa e, a seguir ao almoço, ficavam as duas a dormitar, com a cabeça poisada nos braços, ou encostadas para trás, no espaldar das cadeiras. Ensinavam-me a falar forro, o dialecto da terra, e riam quando eu fingia que sabia falar:
- Bonjao, Nina, como nova sa oji? É assim?...
- Sim! E, depois, a dôtôra deve responder : “oji sa levi-levi, balêladu”...
- "Balêladu"?

Era uma palavra estranha e doce... E eu continuava, a brincar:

- "Moála si sa glavi », Nina ?...
-"Eu, moála glavi?! Não, mulher feia, não, dôtôra, eu sou mulher bonita..., protestava, rindo devagarinho.
A Nina, que fora minha lavadeira anos antes, passara a trabalhar na cozinha, quando a Milly se foi embora, num dos seus ataques de fúria.
O gosto de aprender cada coisa, os gestos ritmados e vagarosos, a alegria tranquila depois de uma palavra de encorajamento, era assim a Nina. Os movimentos seguros mas suaves, o ar de gazela assustada, o sorriso, a adivinhar quando não percebia, enterneciam-me. A emoção contida aproximava-nos. Identificava-nos o mesmo pudor.
A outra irmã, a Tina, chegara nessa altura, para ser lavadeira. Mais velha, tinha uma inteligência viva, um ar sério, o equilíbrio numa forma de resignação, sem a timidez da Nina. Cada palavra sua era pensada, ia direita ao coração dos outros para os ajudar. A Tina era um filósofo, fatalista mas cheio de humanidade, um filósofo africano.
E a vida passava levi-levi. Nunca as ouvi queixarem-se, apesar de falarem da vida difícil, das doenças dos filhos, do paludismo que não largava as crianças, que as não largava a elas, que não largava a irmã mais nova da Nina, grávida, e, sempre, com paludismo.
- Como vai a vida?...
- Vai lentamente normal, dôtôra..., respondia ela.
Um dia houve um almoço com muitos convidados, e a Nina preparou tudo, atenta aos pormenores .
Estava uma tarde fresca, era a Gravana, os tons vermelhos e dourados estavam lá fora nos caroceiros junto ao mar, e a acácia do largo da igrejinha desconsagrada estava cheia de flores vermelhas, pensava eu, enquanto tomávamos o café na varanda.



Olhava, no meu jardim, a goiabeira perfumada, a papaia-flor, as caramboleiras, a cerca pintada de branco, junto à cancela da entrada. Foi nesse momento que tocaram à campainha.
A Nina atravessou a relva, no seu passo vagaroso, ficou a falar com uma rapariga da terra. De repente, desfaleceu. Tremeu, ergueu o braço sobre a cabeça, tapou os olhos com a mão e todo o corpo se agitou em soluços. Voltou a correr para a casa.
Procurei-a na cozinha. Lavava a louça, de cabeça baixa.
- Nina, o que foi?!
Olhou-me nos olhos:
- Oh! dôtôra! Nem sei como contar...A minha irmã piquinina morreu, com o bébé lá dentro... Paludismo...
Falava simplesmente, como se fosse uma coisa natural. Acontecia todos os dias, eu sabia, mas aquela resignação quase me chocava...
- Oh! Nina!
O que lhe podia dizer mais? Abracei-a com força.
- Descansa um bocadinho...Vai para casa, com a Tina, vai ver a tua mãe...
- Depois, dôtôra, depois... Tenho trabalho ainda para fazer...
Não quis descansar, não quis parar, acabou o serviço, como todos os dias, devagarinho.
- A gente sofre cá dentro, dôtôra, o que a gente sente não precisa mostrar..., ia dizendo.
A Tina, silenciosa, acenava com a cabeça.
Quando deixei S. Tomé, lembrei-me desse momento. Abraçava-a com força, como da outra vez, a despedir-me agora, e ela dizia:
- Eu vou chorar depois, dôtôra, o que a gente sente está cá dentro, dura sempre...
- Eu sei, Nina, eu sei... Não é preciso mostrar...
A outra irmã olhava-nos, a abanar a cabeça. A Nina tinha os olhos molhados e desviou a cara para eu não ver que chorava.

A casa amarela: as estrelas



Berthe Morisot,
Menina no lago


Van Gogh, Noite estrelada


Quando estávamos de férias na Serra, na quinta dos avós, gostava de ir sozinha até à pinheira à noite para mostrar que não tinha medo.
Eram magníficas essas noites de Agosto, no Alentejo da minha infância. Nunca vi um céu assim, escuro, profundo e tão carregado de estrelas. Disseram-me que, quanto mais se anda para o Sul, mais as noites são negras, e mais vivas as estrelas se vêem brilhar.
Isso não sei, sei que eram maravilhosas. Via as constelações como nunca mais consegui ver tão nítidas em nenhum lugar: a Cassiopeia, a Ursa Maior, a Ursa Menor, a Andrómeda de que o meu pai me falava tanto, a Estrada da Santiago, nebulosa transparente, a esfiapar-se na noite. Mais tarde, no hemisfério Sul, em S. Tomé, fui encontrar o “Cruzeiro do Sul” e fiquei pasmada a olhar para aquelas estrelas. Só aí me lembro de ter sentido uma emoção, um fascínio tão forte perante a noite estrelada.
Passávamos o Verão inteiro na quinta. Estava situada na Serra de S. Mamede, a uma certa altitude e, talvez por isso, o céu parecia ainda mais perto. Salpicado de luzinhas, as estrelas pareciam mais brilhantes, e as estrelas cadentes, essas, mais tocáveis... Sentia o peso do céu em cima da cabeça, do peito, como se eu própria fosse prisioneira de uma qualquer forma de sentimento mágico.
E era nessas noites sem lua que eu experimentava a minha coragem, desejosa do risco e da aventura. Não queria ceder ao medo "que nos vigia a meio da ponte estreita que é a nossa vida", filosofava eu nessa altura...
Atravessava a quinta, passando pelos tanques de águas negras que, durante o dia, tinham um espelho de água azul transparente onde gostava de me sentar, a com as mãos lá dentro, a chapinhar. Atravessava junto das hortas e subia até ao pinhal. De lá, debaixo da copa do grande pinheiro manso de onde pendia o baloiço, acenava com um lenço e gritava “oh! oh!”, que era o sinal combinado para provar que tinha conseguido chegar lá sozinha.
Via as minhas irmãs agitarem os braços junto da casa iluminada, lá tão longe... Olhava em redor, parecia-me ouvir ramos a estalar, o grito da coruja, ou um coelho bravo a saltar entre as giestas e as urzes. Sentia o coração aos saltos na garganta, mas não arredava pé. Ficava ainda a gritar, a acenar.
O regresso era numa correria serra abaixo tropeçando no restolho, prendendo os pés nas raízes que me pareciam mãos de bruxas mas quando chegava aos tanques, o coaxar das rãs e o tsstss dos ralos eram uma companhia. Arranhada, vermelha e com a respiração acelerada, chegava cansada e feliz. As minhas irmãs recebiam-me com palmas e risos.
Na varanda ao cimo das escadas, coberta de glicínias e da folhagem vermelha da vinha virgem, o meu pai lia sob uma lâmpada à volta da qual giravam as borboletas entontecidas pela luz, e as grandes libélulas.
Erguia os olhos do livro, e perguntava-me:
- Então?...
- Nada...
Eu sorria.
Ele não sabia mas eu vencera o medo...
( Clair de lune, de Claude Debussy)
Renoir, Nini no campo

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Infância: a primeira separação






Lembro-me bem do dia em que me separaram da minha irmã, devia eu ter cinco anos, e ela era um ano mais velha. Adoecera com tosse convulsa e, para não ser contagiada, o meu pai achou melhor que eu fosse para casa duma tia da minha mãe.
Ela ficou, ao cimo das escadas, a ver-me partir. Queria descer, vir ter comigo e gritava. Recordo o seu bibe branco, enfeitado de folhos nos ombros, a camisola vermelha de lã angorá, as botas curtas e as meias de renda até ao joelho. Eu olhava-a, cá de baixo, e choramingava, nada me consolava de a deixar, e o grande laço de fita escocesa, que me segurava os cabelos, caía desmanchado para um lado.
Tinha sido um Inverno muito frio o desse ano. Dias antes, debruçada à janela alta da nossa casa amarela, tinha visto sair os meus pais para irem ao cinema -o velho Cine-Teatro com o seu tecto pintado de azul, céu no qual corriam figuras cheias de grinaldas de flores; com as frisas e os camarotes forrados de veludo vermelho escuro, e o rebordo suave do parapeito onde encostava a cara para espreitar para a plateia e descobrir o meu avô, que me dizia adeus com a mão.
À janela, nessa noite, vira o meu pai abrir o guarda-chuva e nele pousarem devagar pequenos flocos brancos que logo se desfaziam em gotas que escorregavam pela seda preta até ao chão brilhante, onde uma mancha esbranquiçada, da neve que já prendera, começava a formar-se.
É a única recordação de neve da minha infância.
A noite em que me levaram era fria também. Havia três primas já crescidas naquela casa estranha, que ficava ao fundo de uma rua estreita onde, ao anoitecer, passava um burro com duas bilhas de latão cheias de leite. Habituei-me a correr à janela para o ver, para me distrair, outras vezes, desinteressada, adivinhava, apenas, os cascos a escorregarem nas pedras redondas e polidas da rua.
Durante horas, as minhas primas penteavam-me, faziam e desfaziam-me as tranças, punham-me laços, vestiam-me vestidos com golas engomadas, às pintinhas de todas as cores que a minha mãe bordara. Brincavam comigo o dia inteiro para me tirarem daquela tristeza em que me deixara a ausência da minha irmã doente, dos meus pais, e da irmã pequenina que me olhara de olhos muito abertos quando me fora despedir.
Nesta casa, havia um gatinho que dormia ao fundo da minha cama e a quem eu dava leite num biberon de bonecas, das muitas bonecas de louça, velhas, com vestidos gastos e olhos de vidro parados. Havia também brinquedos de madeira que eram mesas e cadeiras e armários pintados com flores de várias cores e eu fazia casinhas com tudo aquilo.
Os dias passavam, lentos, e era à noite que eu mais pensava na minha casa onde sabia que o meu pai lia, debaixo da luz do candeeiro de vidrinhos verdes e brancos. Lia e sublinhava tudo e riscava os livros todos, deixando-me sempre espantada por ele poder riscar os livros e eu não...
À noite, lembrava-me disto tudo e ficava triste.
Não sei quantos dias passaram, perdera a noção do tempo, mas foi numa noite, depois do jantar, que ouvi tocar a campainha da porta.
Eu brincava, fazia uma “cantareira” com os brinquedos em cima de um sofá e começava a ter muito sono. Alguém foi abrir e, de repente, ao fundo do corredor, soaram uns passos rápidos que se aproximavam.
Virei-me para a porta da sala que se abria e larguei tudo: sabia que era o meu pai que me vinha buscar. Fizeram-me a mala a correr, eu não podia esperar mais.
E saímos os dois, na noite. Eu, com o meu casaco felpudo, um barrete de lã vermelha, que apertava debaixo do queixo, e as minhas botas grossas. O meu pai com um sobretudo comprido que o fazia parecer ainda mais alto, com o cachecol escuro e umas luvas de pele amarela.
Atravessámos o largo da Sé, deserto. Por detrás da igreja, a lua brilhava, linda, encoberta por nuvens cinzentas que, pouco a pouco, se desvaneceram. Eu sentia-me quentinha, com a minha mão pequenina na mão enorme do meu pai, a saltitar para poder acompanhar as suas largas passadas, feliz, a voltar para casa.

terça-feira, 19 de maio de 2009

África, ainda: a princesa tonga

Gauguin, duas mulheres taitianas





mulher africana



A princesa tonga





A minha cozinheira, a Milly, é uma tonga (*), do sul da ilha de S. Tomé. Tem o rosto redondo, a pele sedosa cor de canela, e os seus olhos doces podem ser distantes e frios. Não é alta, a sua elegância está no porte da cabeça, onde as tranças do penteado formam uma espécie de coroa. Pouco mais terá que vinte anos mas tem o corpo deformado pelo primeiro parto, que deixou tortos os ossos da bacia, fazendo-a coxear. O último filho quase a matou, ao nascer, e ficou assim, de ventre alto e inchado, como se eternamente grávida. Sorri e espalha-se no rosto redondo um ar infantil que apaga a expressão fechada. Quando se zanga com os filhos, quando a vida lhe pesa, desespera e vem ter comigo:
- Dôtôra, é dimais, eu vou matar minha vida! Tché...
Mas logo esquece tudo e, pouco depois, ouço-a cantar na cozinha. Sei que ao som da música ensaia uns passos de dança. E, no ritmo e na delicadeza dos gestos, o corpo ganha uma leveza que esconde toda a imperfeição.
A lavadeira e ela –e os filhos- costumam reunir-se no terreiro que fica ao pé do tanque, sombreado por uma latada de uvas vermelhas, junto da horta onde o senhor Semedo plantou maquêquês, mandioca e gindungo.
Ali ficam pela tarde a comer, ali descansam, conversam, encostadas sobre a palma da mão, ali penteiam os cabelos com os longos e finos pentes de madeira, antes de os entrançarem nos mais diversos modos.
Volta-me a imagem dela, pouco tempo depois de estar em minha casa. Tinha ido chamá-la porque havia uma reunião na escola do filho e já estávamos atrasadas. Abri a porta da cozinha e fiquei a olhar, surpreendida. Sentada na borda inclinada do tanque, com os pés e as pernas dentro de água, nua, tinha apenas a envolver-lhe os cabelos um turbante feito de um avental azul sabiamente enrolado. A filha e a lavadeira esfregavam-lhe as costas cheias de sabão. Riam.
Quando me viu, olhou-me com os olhos puros, e disse:
- Dôtôra, eu não podia ir “chuja”...

Pensei que era o banho de uma princesa tonga.

Não resisti a associar, na imagem acima, uma pintura de um pintor que muito amo: Gauguin. Encontro nele a mesma pureza, a mesma naturalidade da minha princesa tonga...
Paul Gauguin, duas mulheres taitianas


(*) tongas : ver no link:
sobre os tongas e os forros, em S. Tomé:
http://hdl.handle.net/10316/1584


domingo, 17 de maio de 2009

Histórias da casa amarela: as "maias"

A Primavera, de Boticelli







A Primavera tinha chegado e as flores amarelas, mais as papoilas, apareciam por toda a parte, na Serra e nos campos em redor da cidade. Nós fazíamos colares, pulseiras, enfiando as flores, uma a uma, com uma agulha larga, num fio de algodão.
As janelas estavam abertas desde manhã e a brisa entrava suave e repousante. As andorinhas começavam a voltear e a fazer os ninhos nos beirais dos telhados.
O calor do Verão ainda vinha longe.
Pela tarde, ouviam-se umas vozinhas ao fundo da rua e, logo, a Rosalina vinha chamar-nos, afogueada:
- Meninas! Vem aí a “maia”!
A “maia” era uma rapariguinha, ainda uma criança, que podia ter sete ou dez anos, enfeitada com flores, com um vestido, talvez da mãe ou duma irmã mais velha, branco e de renda, já muito lavado e gasto, por cima da sua roupinha e com a saia rodada à volta, apanhada pelas mãos das outras meninas que a rodeavam, formando uma concha aberta, cheia de pétalas de rosas e outras flores.
Trazia os cabelos enfeitados de grinaldas, colares de flores amarelas ao pescoço, grandes e pequeninos, pulseiras. Tinha as faces coradas com rouge e os lábios pintados de vermelho ressaltavam vivos no meio da mancha amarela das boninas e malmequeres.
Meninas da rua, meninas pobres, princesas de um dia de Primavera, que vinham anunciar a sua chegada, trazer a alegria das suas cantigas e pedir algum dinheiro.
Ouço as vozes desafinadas:
“Ó maia, ó maia,
Ó maia das cachopas,
Por onde vai a maia?
Vai por essas barrocas.

Ó minha senhora!
Chegue lá à janela,
Venha ver a maia
Que parece uma donzela...”

Nós debruçávamo-nos da janela, voltávamos para dentro numa excitação enorme, a buscar os trocos, guardados para os gelados e gulodices no porta-moedas da cozinha, e corríamos a deitar o dinheiro pela janela. Às vezes, juntávamos rebuçados embrulhados em papéis, amêndoas, o que tínhamos à mão.
As moedas caíam no chão, caíam no vestido e elas paravam, riam às gargalhadas quase soltando a saia da "maia" para poderem apanhá-las.
Seguia-as um grupo de garotos descalços, brincando com uns arcos de ferro ou arame que tilintavam na rua. Corriam à frente e atrás delas, procuravam agarrar primeiro as moedas mas as “maias” não os deixavam e faziam briga.
Depois iam todos, rua adiante, a cantar. Outras pessoas vinham à janela e a brincadeira continuava até ao cimo da rua.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Histórias da casa amarela: as andorinhas

Coisas que eu via da janela da minha casa amarela...






Numa Primavera as andorinhas vieram fazer o ninho no beiral alto da casa amarela, por cima da janela do nosso quarto. Foi um alvoroço em nossa casa.


Elas vieram, no azul do céu claro, voltejando, iam, vinham, agitando as negras asas elegantes e a cauda aberta como dois bicos.
Nós íamos as três, pé ante pé, espreitar o que faziam. Era um ninho! Na parede lisa, mesmo junto às telhas, começou a aparecer uma forma redonda, esbranquiçada, que parecia feita de barro branco, com um buraco circular. Nunca tinha visto um ninho assim.
Corri a perguntar ao meu pai como é que elas faziam os ninhos e ele mostrou-me um livro com desenhos de pássaros e que explicava:
“Os ninhos das andorinhas são feitos de palhas e lama. A andorinha vai transportando estes materiais no bico..."

De vez em quando ouvíamos barulho e lá vinham as duas andorinhas, ora uma ora outra, trazer coisas no bico: as palhinhas e o tal barro que ia formando uma argamassa bem forte.
Eu ia para a janela da sala de estar, ao lado, encostava a cabeça na mão e ficava, sonhadora, a ver os arabescos que faziam volteando no ar e, depois, as cabecinhas negras a espreitar lá de dentro do ninho.
Pouco a pouco, tudo acalmou e elas só voltavam ao fim da tarde, e saíam de manhã cedo, mas a maior parte do tempo ficavam por ali, parecia-me que a cantarolar. Era um pipilar lindo, com sons agudos e doces.
Um dia uma das andorinhas, desorientada, ao regressar à tardinha, entrou pela janela do quarto. Andou às voltas, às voltas e foi cair na cozinha numa bacia de água.
- E se ela morre?, gritámos.
Fomos a correr chamar a minha mãe e ela veio e, com todo o jeito, tirou-a da água, pegou-lhe e alisou as penas molhadas que tremiam.
Recordo os olhinhos assustados a fechar e a abrir, e o medo que foi passando, numa forma de aceitação, expectativa, talvez confiança -quem sabe o que pensa uma andorinha?
A minha mãe embrulhou-a num cobertor cor de rosa das nossas bonecas e pô-la numa almofada, com uma tigelinha de água e miolos de pão esfarelado, ao lado.

Estivemos um bocadinho a vê-la e a minha mãe disse para a deixarmos sozinha porque estava muito assustada.

Saímos, silenciosas, deixando-a no quarto, perto do parapeito da janela. Não sei quanto tempo passou, creio que foram alguns momentos apenas.

Da janela da sala onde me tinha posto a espreitar, via-a de repente voar, voar longe, como se precisasse de se enxugar, ganhar forças.
Respirei fundo. Não a vi voltar nessa noite, mas na manhã seguinte havia de novo o pipilar e a agitação do costume à entrada do ninho.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

A andorinha e o Príncipe












"As andorinhas são um grupo de aves passariformes da família Hirundinidae. A família destaca-se dos restantes pássaros pelas adaptações desenvolvidas para a alimentação aérea. As andorinhas caçam insectos no ar e para tal desenvolveram um corpo fusiforme e asas relativamente longas e pontiagudas. Medem cerca de 13cm (comprimento) e podem viver cerca de 8 anos."
(in Dicionário)
"Dezasseis milhões de pássaros migratórios voam todos os anos da África Sub Sahariana para a Europa e das 50 espécies que o fazem a mais amada é a andorinha."
(in The Economist, Maio de 2009)
Golondrina, rondina, hirondelle, andorinha, swallow são as diversas traduções dessa pequenina ave que nos traz a Primavera. Em África outros nomes de sentidos sugestivos nos falam das andorinhas: inconjani (o pássaro que ilumina), nyamkaleme (o pássaro que nunca se cansa), giri giri (o encanto mágico).
As andorinhas vivem perto do homem, há milhares de anos, aparecem já desenhadas nos vasos gregos, e Virgílio e Ovídio referem-nas nos seus versos. Uma lenda conta que foram as andorinhas que afastaram os espinhos da testa do Cristo. Se não, como é que então se explica o vermelho que têm nas faces?
Quem não recorda a história da andorinha e do Príncipe Feliz, de Oscar Wilde?
A andorinha amiga da estátua dourada, com olhos de safiras e boca de rubi, do Príncipe, que o acompanha até o Inverno chegar e morre de frio, numa manhã gelada?
Quando se vem despedir do seu amigo porque o frio está a chegar e o bando das suas amigas vai partir para os países quentes do Sul, o Príncipe pede-lhe um favor antes de ir: quer saber como vive o seu povo desde que ele morreu.
Ela vai pela cidade e vem contar todos os dias os sofrimentos, a pobreza, o drama das pobres gentes. E, pouco a pouco, o príncipe vai-se despojando das folhas douradas que o cobrem e que a andorinha leva no bico para aliviar essa pobreza, a dor de nada ter.
A andorinha vai perguntando: Estás contente? Já posso partir para o Egipto?
Mas o Príncipe chora porque ainda há quem sofra na sua cidade. E a andorinha vai ficando...
Depois vão os olhos de safira no bico da andorinha, depois o rubi, e a estátua fica despida.
Mas o Inverno chegou, e é tarde para a andorinha voar para o Egipto.
Numa manhã de céu branco, prenunciador de neve, vem o varredor limpar o parque e varre a andorinha morta, olha para a estátua do Príncipe e lamenta vê-la despida da sua riqueza, nua, uma vergonha para a cidade.
E assim acaba a história de uma andorinha e do seu amor pelo Príncipe Feliz...




domingo, 10 de maio de 2009

Truman Capote e Harper Lee















Harper Lee e Truman Capote






Harper Lee


Truman Capote
Truman Capote, (1924-1984), escritor americano nascido em New Orleans e mundialmente conhecido. Muitas das suas obras situam-se em locais -e falam de realidades- do Sul dos Estados Unidos da América.
Apreciado pelo seu estilo directo e cuidado, foi também uma celebridade, relacionado com gente rica e famosa que vai encher a sua biografia.
Talvez o seu livro mais conhecido seja In Cold Blood (1966) IN COLD BLOOD, A Sangue Frio, que combina factos reais com ficção, para contar a história dos dois assassinos de uma família de agricultores, no Kansas, assassinos esses que ele próprio vai entrevistar na cadeia -e acabará por ser um best-seller.
Com certeza conhecem os dois filmes que recentemente saíram: "Capote", realização de Bennett Miller (2005) com um grande actor, Philip Seymour Hoffman, no papel de Capote e Katherine Keener, no de Harper Lee; e "Infame", filme de Douglas McGrath (2007), com outro grande actor, Toby Jones, e com a grande Sigourney Weaver (Harper Lee).
No entanto, para mim, os mais belos dos seus livros são, sem dúvida, o primeiro livro Other Voices, Other Rooms, (1948) -Outras Terras, Outras Gentes (havia uma edição linda, hoje esgotada, da Colecção Miniatura) - que conta a história da adolescência e do crescimento, amargo e doce, de um rapaz no Sul rural... e o poético: The Grass Harp (1951), A Harpa de Ervas.
Sempre recordei este último como um livro maravilhoso sobre a adolescência -e a adolescência neste livro estende-se a pessoas adultas como a tia Dolly, o Juiz, a criada preta, Catherine Greek, quando todos decidem que, como protesto, vão "viver" para a árvore onde Collins (o herói) tem o seu esconderijo... Levam comida, agasalhos e... Têm que ler...
Ao relê-lo, pensei: "há tanto tempo que não me sentia tão bem!"
É um livro bom, cheio de ternura pelas pessoas e pelas coisas, que fala da natureza (o som musical das ervas que se ouve, no cimo da árvore, como se fosse uma harpa) -tudo é de uma pureza fantástica e faz-nos acreditar que a vida vale a pena.
O miúdo Collins, a doce Dolly, o Juiz, a Catherine Greek (maravilhosa mulher!) agarrada ao rádio que não larga nunca e será a sua companhia no fim...
Mas queria associar esta leitura à do livro de Harper Lee, amiga e condiscípula de escola de Truman Capote, To Kill a Mockingbird (tradução difícil pois não existe o "mockingbird" em Portugal (acho eu... Se souberem, digam-me, sim?). O dicionário diz que é um pássaro que existe na América que imita o canto dos outros pássaros e o som da fala do homem...
Truman Capote e Harper Lee, dois escritores que foram amigos, e que escreveram dois livros inesquecíveis sobre a passagem da infância para a adolescência.
O livro de Harper Lee, To Kill a Mockingbird (1960) que vai ganhar o Prémio Pulitzer de ficção em 1961 e, em 1999, foi votado como "A Melhor novela do Século" pelo Library Journal.
Sobre ela direi poucas coisas, prefiro que a procurem, mas aqui vai esse pouco.
Nelle Harper Lee nasceu em Monroeville, cidade do Alabama, em 1926. Em criança foi uma "maria-rapaz" e uma precoce leitora.
A figura de Jean Louise, "Scout" (como era conhecida em casa), é autobiográfica, assim como Dill é o seu vizinho, e amigo de sempre, Truman Capote. A figura do pai Atticus Finch é inesquecível, pela coragem, honestidade, aceitando como advogado por defender uma causa que ele sabe perdida (antecipadamente perdida: um negro que é acusado de violar uma branca).
No livro surge-nos o mundo sulista, com esses dramas, visto pelos olhos da pequena Scout e do irmão, Jem: problemas do racismo, das diferenças de classe social, a grande pobreza de muitas famílias rurais nos anos da "depressão", tudo isto aparece e nos atinge, pela força da escritora. Tudo visto, porém, com um certo humor e muita ternura.
Conclusão: têm de ler a história de To Kill a Mockingbird (podem clickar aqui pra saber mais) - que foi começado no Verão de 1959 e publicado em 1960, tornando-se desde logo um best-seller.
Deixo-vos o prazer de a encontrarem e de a lerem.
Aliás, de os lerem aos dois...





sábado, 9 de maio de 2009

as ruas da minha terra


As ruas da minha terra

Recordo os cheiros de certas ruas, a miséria mesmo ali ao lado, a rapariga grávida, saída há pouco da adolescência, rodeada de filhos, nascidos uns atrás dos outros e que, candidamente, à vizinha, que, ironizando sobre o estado dela, lhe perguntava: “Ó Mariazinha, por que tens tantos filhos?”, respondia: “Minha senhora, o que hei-de fazer? A minha vocação é ter filhos...”
Todos em rancho à volta, agarrando-se-lhe às saias, ou gatinhando, ranhosos, com ar doentio, a sair da casa escura, rés do chão sem janelas, com o cheiro a mofo e a couves que vinha lá de dentro.
Sentada numa cadeira baixinha, a mãe dela, ainda nova, magra, cinzenta, resignada, a remendar, a coser, à porta para ter um pouco de sol. Falava sempre com respeito ao meu pai que muitas vezes lhes fizera análises de graça e dava remédios. Eu fazia-lhe muitos cumprimentos, sorria, porque me parecia que lhe devesse dar qualquer coisa e não sabia o quê.

Havia ruas, lá para cima, para os lados do castelo, do qual se viam só as ruínas, com casas pobres e meninos descalços, mal vestidos, sujos, com calções rotos ou vestidinhos rasgados, que brincavam a puxar latas de sardinha e jogavam com uma bola de trapos ou arcos de arame, empurrados por uma varinha que fazia um ruído estranho nas pedras da rua.
Mulheres, que me pareciam todas velhas, sentadas em bancos, às portas, catavam os piolhos às filhas, com um pente muito fino que lhes arranhava a cabeça e elas gritavam, sacudindo as tranças desfeitas e agarrando uma boneca de trapos sem olhos.
Ou olhava e o espanto abria-me os olhos ao ver aqueles meninos que não tinham os brinquedos que eu tinha e que não tinham vestidos novos nem sapatos. Alguém me puxava pelo mão e me tirava dali.

Mas havia também outras ruas, alegres e que cheiravam bem, a flores e a bolos, a rua da Mouraria, por exemplo, que recordo cheia de luzes, enfeitada com grinaldas de flores de papel de lado a lado, vasos de mangerico perfumado, bandeirinhas espetadas na terra, os altares dos santos com panos e rendas, cheios de bonecos, de rifas, a rádio a tocar toda a noite. Era Junho, o tempo dos santos populares, e o meu pai levava-nos de rua em rua a ver os altares, deixava-nos saltar as fogueiras e íamos até ao Corro ver o bailarico e a banda.

Havia, mais longe, a rua da Sé, que descia do Largo da Sé que eu achava linda, no seu estilo entre o maneirista e o barroco, com duas torres que se erguiam para o céu azul. Era na rua da Sé que moravam os meus avós, uma rua inclinada com calçada de pedras cinzentas. Lembro-me das casas brancas e das janelas, de guilhotina, com seus vasos de malvas e de hortênsias azuis.

Paralela, descia do Largo a rua da Misericórdia, atravessada por um arco a meio, perto da igrejinha da Misericórdia da qual só lembro a porta de madeira antiga. Iam dar as duas ao Largo dos Correios, onde o meu avô teve um Café, o Café Central, e, daí, confluíam na rua Direita, ainda mais íngreme, de basalto reluzente do uso, e perigosa nos dias de chuva.
Muitas vezes caí nas pedras polidas e feri os joelhos, levantando-me envergonhada, a olhar para todos os lados. E recordo os burros, a puxar as carroças carregadas de fruta e hortaliças, que, ao descê-la, escorregavam, quase caindo e viam-se saltar as chispas das ferraduras riscando nas pedras do chão.
Com lojas, casas antigas, varandas de sacada bonitas, a rua Direita. Sei que numa delas nasceu o poeta José Duro de que só conhecia nessa altura a efígie, um medalhão de bronze que me parecia enorme, com um rosto delicado, nas costas de um banco de pedra no Passeio da Corredoura.
Passava por lá todo o movimento pois era, nessa altura, o centro da cidade e do comércio. Sempre cheia de gente a subir e a descer e de luzes à noite. Lembro-a, de Inverno, em noites nevoentas, quando descíamos do Café Central de volta a casa e a minha avó parava ao fundo da rua, na esquina com a subida para a Igreja de S. Lourenço, a comprar castanhas assadas.
A mulher que vendia as castanhas, numa barraca de madeira minúscula, agitava o assador e eu via o fumozinho subir e ouvia as brasas crepitar. A avó falava um pouco com a mulher e depois levava-nos a casa por essa subida que ia dar, pelo Largo do Teatro, à rua dos Canastreiros onde ficava a casa amarela.
Lembro ainda o cheiro das castanhas e sinto o calor no corpo e nas mãos bem cobertas com umas luvinhas de lã a segurar o embrulho de jornal cheio de castanhas.