domingo, 28 de fevereiro de 2010

O observador de Cormorans de Sunderland...


Há dias em que o céu baixo pesa...

Como diz Cesário Verde:

"O céu parece baixo e de neblina,/

O gás extravasado enjoa-me, perturba;/

E os edifícios, com as chaminés, e a turba,/

Toldam-se de uma cor monótona, londrina...

Ou como Jacques Brel, falando do "seu" Plat Pays (“avec un ciel si bas/qu’un canal s'est pendu...”).

Sente-se a cabeça vazia e parece-nos ecoar lá dentro, ao fundo, a canção da Billie Holiday, “Gloomy Sunday”.

Gloomy Sunday" foi uma canção famosa criada por um pianista e compositor húngaro -Rezső Seress em 1933- para um poema escrito por um poeta húngaro -László Jávor - e a canção fala da morte de alguém e do desejo de morrer.

A canção "Gloomy Sunday" ficou associada a Billie Holiday, cuja versão é de 1941. Parece que a canção fez suicidar dezenas. Acabou por ser proibida na rádio, na América.
O próprio pianista-compositor mata-se em 1968...
Um horror! Quando olhamos em volta e vemos os outros baixar os braços, caindo no pessimismo...
Nesses dias penso que mais vale é irem ler o “Observador de cacaróis”, da Patricia Highsmith para animar! Isso sim que é mesmo horrível! Bom para masoquistas (que eu não sou!)
Eu sei que há sempre um céu azul detrás de todas as nuvens e nunca desisto de o procurar.

E há mar e rios e sóis noutras paragens.

Foi a pensar nisto tudo que me veio à mente um outro observador:

"O Observador dos cormorans de Sunderland"!
E aqui venho falar desses Cormorans Grandes/ os corvos marinhos/ the sea ravens etc...
"São os vizinhos do lado de lá do Sunder", diz o observador do alto do seu poiso.
Um pouco de história dos Cormorans:
Cormorans (Corvos marinhos) ou Shags (Corvos marinhos cristados) são os nomes de duas espécies de um família encontrada na Inglaterra, os Phalacrocorax carbo (hoje chamados, pelos ornitologistas, Grandes Cormorants) e os Phalacrocorax aristotelis (os Corvos marinhos cristados, com uma crista no alto da cabeça).
Ambas as espécies descobertas por marinheiros e outros exploradores de língua inglesa noutras partes do mundo foram chamadas (em inglês...) Cormorants ou Shags para os diferenciar.
Em algumas localidades da China, como en Guilin, nas margeans do rio Lijiang ou no lago Erhai, emprega-se ao corvo marinho para a pesca. Ata-se-lhe uma corda na parte inferior do pescoço de modo que possa capturarosn peixes, mais não enguli-los... Faz o ninho em grande parte das costas do Oceano Atlântico, sobretudo na Europa e Norte de África.
O corvo marinho é um pássaro negro com cerca de 77-94 cm de comprimento e 121-149 cm de asas abertas. Tem um pescoço alto e a garganta amarela os adultos têm plumas brancas nas patas. Voa agitando as longas asas num voo estável, às vezes planando. É característica a sua silhueta de voo em forma de aspa.
Vivam os observadores de Cormorants!
Os outros que se queixam sem razão...mais vale irem ler "O observador de caracóis..."

Dedico este post ao observador do "arquivo fotográfico" e ao meu "colega" e amigo do blog "Trepadeira" outro grande observador da beleza!...


(*) Um pouco mais sobre o compositor Rezsó Seress:

Nascido em 3 Novembro de 1889, morre em 11 de Janeiro de 1968 cujo nome era originalmente Spitzer foi um pianista húngaro (nicknamed Rudi). Contrariamente ao que dizem alguns websites nunca esteve em Paris e viveu a maior da vida pobremente, em Budapeste.

Sendo Judeu, foi levado pelos nazis para um campo de concentração durante a segunda Guerra Mundial. Sobreviveu e entre momentos de emprego precário em teatros e em circos -onde foi trapezista- e de desemprego, acabou por se dedicar a escrever canções e a cantar, depois de um acidente.

Aprendeu a tocar piano com uma só mão, depois disso. Compôs muitas canções de sucesso.

Suicida-se em 1968.
(**) Sobre László Jávor só encontrei isto na wikipedia:
"It was a Hungarian poet who wrote the poem that was the basis for the jazz standard
Gloomy Sunday, composed by Rezső Seress, later also notably recorded by Billie Holliday."

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Lucio Battisti: "Ancora tu"

A pedido de uma leitora do falcão de jade -que vive "all'estero" e muito ama a Itália- deixo a canção "Ancora tu"...

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Mais música! Outro "cantautore" italiano: Lucio Battisti, famoso nos anos em que lá vivi...

Lucio Battisti nasceu em 5 de Março de 1943 em Poggio Bustone. (Situa-se na "Província de Rieti", Alto Lazio, zona de baixa montanha, muito perto já da Úmbria) e faleceu em Milão, a 9 de Setembro de 1998.




Foi um músico e cantor italiano, muito famoso nas décadas 70/80. É considerado um dos mais importantes autores e intérpretes da história da música ligeira italiana.
A canção que o tornou mais conhecido em Itália foi: “Una donna per amico”













"Non è Francesca... "













"Mi ritorni in mente..."

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Ilhas na Bruma: primeira passagem para África


Era a primeira ida a S. Tomé onde iria viver -ainda não o sabia- cinco anos.
A primeira parte da viagem passei-a a ler.
De vez em quando olhava pela janela oval que reflectia a luz do sol. A certa altura, descobri uma montanha enorme lá em baixo, com os picos cobertos de neve brilhante apontados para o céu, quase à altura das nuvens.
- O monte Atlas!, disse para mim.
Seria?, duvidei.
Entre nuvens e neve, sim, era o Monte Atlas, confirmaram.
Adiante, corria a terra vermelha sem fim e depois, mais adiante ainda, o deserto e as ondas de areia que o vento fazia mover, como numa praia as águas do mar: dunas movediças, pensei.
Entretive-me olhando, espantada, por ver tanta coisa bela, longe lá em baixo, na terra...
A África.
Li um pouco, talvez tenha adormecido e, quando olhei outra vez, vi a entrada do delta de Abidjan, com as suas costas recortadas e as “quase-ilhas”, pequenas penínsulas, o verde vivo, num corte geometricamente quadrado, dos palmeirais.
Esparsos, um ou outro coqueiro esguio estica-se para o céu. Grande parte dos passageiros desceu no aeroporto de Abidjan. Vieram os empregados da limpeza aspirar e depois pulverizar o interior do avião.
Mosquitos? Paludismo? Sim, com certeza ali haveria também paludismo.
A viagem continuaria até S. Tomé e Príncipe.
Entraram três ou quatro passageiros.
Mas a espera continuava, dentro do avião, para todos.
Devíamos partir dentro de uma hora, apenas, o voo atrasara-se.

Fora, vejo deslizar um pequeno avião de asas abertas, brancas e verdes, da “Air Africa”, com as hélices girando como uma ventoinha grande.
Os carregadores agitam-se com uns mini-carrinhos carregados de malas.

A senhora, que ia sentada do outro lado do corredor, deu um grito, levantou-se e correu pelo corredor até à porta.

- O meu cão!
A hospedeira, que falava, risonha, com um empregado ao cimo das escadas, virou-se para ela, atenciosa:
- Aconteceu alguma coisa?
- Oh! Sim! Meu Deus, é o meu cão que vai ali!
E apontava para um dos carrinhos lá ao fundo, já perto do hangar do aeroporto, que continha uma grande caixa com grades, espécie de gaiola de plástico grosso.
- Ali! Está a vê-lo? Desembarcaram-no!
- Sim, sim, minha senhora. Acalme-se, por favor... É só um momento

A hospedeira pegou num telefone e falou pelo bocal, suavemente. Pela janela, vi um homem sair pela grande porta envidraçada do aeroporto, a correr e a agitar os braços na direcção do avião.

O carro com a caixa gradeada imobilizou-se. Viu os sinais do outro, acenou com a cabeça e deu uma volta completa. Vinha de volta para o nosso avião.
A senhora respirou fundo, aliviada.

Os passageiros viravam-se nos assentos, espetavam as cabeças a olhar. Outros fingiam que não tinham visto nada, solenes, formais.
- Obrigada! Foi uma sorte eu estar a olhar pela janela. Nós íamos para S. Tomé. Se o cão aqui ficasse, nunca mais o via!
A hospedeira acenou com a cabeça. Talvez pensasse o mesmo. Talvez não.
O carro aproxima-se. A senhora pergunta, numa grande agitação:
- Posso descer?
- Não é preciso correr, ele vem aqui mais perto, para ver se é o seu cão. Tenho de ter uma autorização.
- Claro que é. Reconheço a gaiola.
- Pode descer, disse a hospedeira, pousando o telefone de bordo.

A mulher desce as escadas quase a tropeçar, chega-se ao pé da gaiola e estremece:
- Não é ele... Não é o meu cão...

Espantada, olhava ora para o cão, ora para a hospedeira. Por fim, envergonhada, pediu desculpa.

- Não faz mal, disse a hospedeira cheia de paciência, sorrindo. E continuou:

- Fez bem em dizer...
- Dei-lhe tanta maçada...
- É o nosso trabalho. Com certeza não a deixávamos partir com essa dúvida!
- Agradeço do coração.

Suspirou, como se confessasse alguma coisa importante:

- Sabe, o meu cão é como uma pessoa! Um amigo... O maior amigo.
- Eu sei, disse a jovem sorrindo. Também tenho um cão.
A senhora voltou a sentar-se ao meu lado, do lado de lá do corredor, murmurando:
- Que parva! Não podia ser ele. Este era tão grande! Mas se fosse? Era horrível, não era?, perguntou-me.
- Sim. Era horrível! Sabe, eu também tenho um cão...

Anoitecia. Em África o sol cai de repente.
Para evitar mais conversas com a senhora do cão, encostei-me para um lado e adormeci.

Sonhei com praias lindas? Não sei. Mais tarde vi-as, belas, a todas as horas. O poente sobre a baía de Ana Chaves, a estrada costando o mar em direcção a Angolares e a vista do Cão Grande, os coqueiros de linhas suaves, os barcos na pequena enseada de Santana.
Nessa altura dormia e creio que nem sonhava...
A tal senhora só voltei a vê-la, agitando-se no meio das malas e da tal gaiola enorme, abraçada ao cão, na aero-gare de S. Tomé.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Viajando pela Itália da música, com a poesia do "cantautore" romântico Ricardo Cocciante








Ricardo Cocciante, "cantautore" (palavra de difícil tradução, mas fácil de entender...)muito amado em Itália, nasce no Vietname, em 20 Fevereiro de 1946 de pai italiano, originário de Rocca di Mezzo (na lindíssima zona dos Montes Abruzzi), e de mãe francesa.

Aos 11 anos emigra para Roma, com a família.

É em Itália que se forma, artisticamente falando, mas vai manter sempre, graças à mãe, uma espécie de dupla identidade " italo-francesa".



É conhecido em França como Richard Cocciante. Viveu bastante tempo nos lungo negli USA e em França; e, recentemente, na Irlanda.

Entre os seus maiores sucessos contam-se as canções: "Poesia", "Bella senz'anima", "Io canto" e "Margherita"...

Ouçam, por favor... Espero que gostem.

Com um pequeno problema (cervicais & etc.) não posso escrever muito, deixo música...

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Louis Amstrong e West End Blues: sem palavras...


Música para distender e começar bem mais uma semana! Sarah Vaughan e Dinah Washinton

Dinah Washington nasce no Alabama, em 29 de Agosto de 1924 e morre a 14 de Dezembro de 1963.Foi uma das cantoras americanas mais importantes dos anos 40/50, intérprete de jazz, blues e música religiosa, pois desde pequena que tocava piano nas igrejas onde cantava “gospel”.
Aos quinze anos, começou a fugir de casa, à noite, saltando pela janela do quarto e ia cantar em bares e clubs. A verdade é que começou nessa altura a desenvolver seu gosto pela bebida.

Ainda muito novinha, Dinah tinha um poder de voz incrível, alé de maturidade musical. A fantástico articulação e a tonalidade de voz encantaram o bandleader Lionel Hampton. Contratou-a assim que a ouviu cantar, em 1943.
Depois desse começo com Hampton, Dinah Washington ganhou grande prestígio, sucedem-se gravações, apresentando-se em público e vendendo muitos discos até à data da morte, 14 de Dezembro de 1963, com 39 anos de idade.


Sarah (Lois) Vaughan nasce em 27 de Março de 1924, em Newark, e morre em Los Angeles a 3 de Abril de 1990.
Iniciou as lições de piano com sete anos e, como Dinah Washington, cantou “gospel” no coro da igreja, onde por vezes também tocou piano.
Foi uma grande cantora de jazz e foi uma das primeiras vocalistas a incorporar o fraseado do bebop.
É considerada por muitos como uma das mais importantes e influentes vozes femininas do jazz, com Billie Holiday e Ella Fitzgerald.
A voz de Vaughan caracterizava-se por uma especial tonalidade grave, pelas enormes possibilidades da sua voz e pelo controle do vibrato.


domingo, 21 de fevereiro de 2010

A "Correspondência" entre George Sand e Flaubert, uma amizade exemplar


Enquanto escrevia o meu último "post" sobre a biografia de Chopin, fui-me lembrando de outras coisas sobre George Sand. Já conhecia Nohant, a propriedade que George Sand possuía na região do Val de Loire e onde passou temporadas com Chopin e os dois filhos dela, Maurice e Solange .
E conhecia-a da "Correspondance" entre ela e Gustave Flaubert -"Gustave Flaubert-George Sand -Correspondance"- que se estende de 1863 a 1876, obra maravilhosa em que duas figuras se mostram na sua verdade...
Ela escreve de Nohant, no Val de Loire, e Flaubert de Croisset, na Normandia.

Um pouco de história biográfica de Sand:
"Aurore Dupin, baronesa Dudevant, que usava o pseudónimo de George Sand, nasce em 1804 e morre em 1876. Cresceu no castelo de Nohant, influenciada pelo liberalismo aristocrático da avó paterna. Estudou num convento de Paris, onde desenvolveu tendências místicas. De volta a Nohant, propriedade que herda da avó, viveu livremente, lendo e montando a cavalo, até ao seu casamento com Casimir Dudevant, em 1822. Têm dois filhos. Em 1830 ela vai viver para Paris e separam-se em 1831.
Colaborou no jornal Le Figaro e escreveu centenas de romances, a maior parte saídos em folhetins, ao uso da época. Conheceu Musset com quem teve uma relação conflituosa de 1833 a 1835. E em 1838 começa a sua ligação amorosa com Chopin. "

(Wikipedia)

Às vezes acrescentam:
"Temperamento livre e independente, George Sand faz uma vida livre e luta pela independência da mulher, e pelo fim da sua opressão."
Mas George Sand não é apenas a mulher que fumava, desenfreadamente, cigarros uns atrás dos outros, de boquilha em punho; que se vestia com trajes e chapeús masculinos (**); que se passeava por Veneza com Chopin e Musset; George Sand, a devoradora/ destruidora de homens.
É também as escritora infatigável que escreve mais de cem livros, quase todos com nível.
Alguns são belos, bem escritos e têm uma grande simplicidade, guardando certa ingenuidade ainda hoje.

Quando escreve La mare au Diable (1846), esse curto romance campestre, provavelmente ao falar das brumas que desciam à noite sobre os pântanos e nele faziam perder-se os viajantes, no qual ressalta a beleza de tudo o que é simples, talvez Sand rememore Nohant e alguns momentos tranquilos que ali viveu com Chopin.

De facto, é a ele que dedica o livro. Pertencendo aos herdeiros de Chopin só mais tarde, em 1931, La mare au Diable é oferecida por Auguste Zaleski Ministro dos Negócios Estrangeiros da Polónia a Aristide Briand, que os lega depois à "Bibliothèque Nacionale" francesa.

Como dizia antes, George Sand não é só isso.

É a mulher forte e doce, protectora e humana que aparece na “Correspondance” (1821-1880) .

A primeira carta desse encontro é assinada por George Sand, e enviada de Nohant, exactamente no dia 28 de Janeiro de 1863.

Gustave Flaubert publicara poucos meses antes Salammbô, (publicara Madame Bovary antes, em 1857, que se revelara um escândalo e é retirado, um livro acusado de imoralidade e que só é publicado, depois de um processo que o autor vence, em 1862).

Enviara-lhe um exemplar de Salammbô e ela escreve, a agradecer.

Começa uma amizade pura, em que é George Sand quem “protege” Flaubert e o anima e “acalma” nos momentos de desânimo, desespero ou fúria.

George Sand deixa uma imagem, nesta correspondência de vinte e cinco anos, marcada por generosidade, bondade e compreensão.
Há quem defenda que a doce e suave personagem de Felicity, no conto “Un coeur Simple”, lhe foi inspirada pela convivência e pela influência que G.S exerceu sobre ele.

Diz Flaubert, de facto, em carta de Maio de 1876: “na minha história, "Un coeur simple", creio que reconhecerá a sua influência imediata..."
A última carta desta Correspondência é de Flaubert e chega a Nohant no dia em que G.S. cai de cama, em grande sofrimento com uma oclusão intestinal impossível de operar porque descoberta demasiado tarde -e de que vai morrer em 8 de Junho.

O que une os dois amigos, tão diferentes em tudo?
O mesmo amor à literatura, à verdade, à coragem. A seriedade no encarar a própria obra, a não cedência a ambições baixas e reles, à inveja que vêem grassar perto deles.
Durante a vida, ora um, ora outro, oferece ajuda monetária com a maior simplicidade, ao ponto de sacrificarem o que às vezes não tinham.
E são belas essas cartas em que se vê a generosidade, a dedicação, a admiração mútuas.

Flaubert é um impulsivo, um pessimista inveterado (em carta de 24 de Fevereiro 1870 diz: “La vie est décidemment une froide plaisanterie comme disait M. de Voltaire”).
Ainda, um temperamento violento, ciclotímico, masoquista.
Em 5 julho 1869 escreve : “Também acredito que podemos curar-nos quando se quer. Mas a vontade não é dada a toda a gente. Há na dor uma certa voluptuosidade que nos leva a abandonar-nos a ela.”
Personalidade que revela grande fragilidade, sensibilidade à flor da pele, sujeito a tristezas e melancolia, é Sand quem o entusiasma e "lhe puxa a alma para cima".
Quando morre o crítico e comum amigo, Sainte–Beuve, lamenta-se, em carta a Sand:
Como a nossa pequena banda vai diminuindo. Como os raros náufragos da Méduse (***) desaparecem...”
Quando se enerva, explode violentamente. E ela acalma-o.
Em Março de 1872, Flaubert exclama:
Ó Calma do grande Goethe, ninguém te admira mais do que eu, pois não há pessoa que a possua menos do que eu!”

E assina “Votre vieux troubadour Gve Flaubert", acrescentando no final, quase em forma de post-scriptum: "sempre agitado, sempre HHHindignado como S. Policarpo !”

Ela vai ser a amiga tranquila, dedicada, que o arrasta com o seu optimismo, o leva atrás da sua alegria e optimismo incuráveis, e pela observação das coisas simples.

É ela o espírito revolucionário, que acredita no progresso, que acredita que "a educação é o que há de mais importante na vida" -e que a aprendizagem de tudo deve começar na infância, logo que se começa a falar, e que se deve seguir até à morte:

La vie doit êre une éducation incessante. Il faut tout apprendre, depuis Parler jusqu’à Mourir”.
A amiga que lhe diz, logo ao princípio da amizade, o quanto o admira:
“É um dos raros seres que se deixaram permanecer impressionáveis, sinceros, amantes da arte, que se não deixaram corromper pela ambição ou cegar pelo sucesso. Enfim, terá sempre 25 anos...”

Que fala dos "artistas" lucidamente, e com ternura, dizendo:
“São crianças mimadas, e os melhores são grandes egoístas. Dizes que os amo demasiado; amo-os como amo os bosques e os campos, todas as coisas, todos os seres que conheço um pouco que estudo sempre. (...) Fazem-me mal que vejo mas que não sinto já. Sei que há espinhos nos arbustos. Isso não me impede de meter lá as mãos e encontrar flores. Se nem todas são belas, todas são curiosas.”

E acrescenta, irónica:
" Se não se pega na vida assim, não há ponta por onde se lhe pegue e, então, como fazemos para a suportar? Eu acho-a divertida, interessante e, por aceitar tudo, sinto-me ainda mais feliz quando encontro o belo e o bom. Se não tivesse um grande conhecimento da espécie, não te teria tão depressa compreendido, conhecido e tão depressa amado. Posso ter uma indulgência enorme, talvez banal, tanto que teve que agir, mas a apreciação é outra coisa.”

Em resposta, Flaubert diz-lhe:
"Chère Maître, a sua carta edificou-me. É a palavra, e o que me diz sobre a indulgência que se deve ter com os egoístas é tão belo que me deu vontade de chorar”.
Flaubert trata-a sempre por “você” e ela será sempre “mon chère maître", às vezes “ma chère maître, bon comme le pain”, e ela trata-o quase desde o início por “tu” e chama-lhe “mon vieux troubadour”.

No dia anterior à saída de L' Education Sentimentale, ela avisara-o, atenta:
“Vão-te louvar e destruir, e tu já está à espera disso. És demasiado superior tens a verdadeira superioridade para não teres invejosos... Mas és uma pessoa com a força para se não deixar abater por isso!”
Quando poucos meses mais tarde ele desanima porque L’Education Sentimentale (saira em 17 de novembro de 1869) foi mal recebida pelo público, e a crítica se mostra fria, é ela outra vez que sai a animá-lo e a defendê-lo:

Cher ami de mon coeur”, chama-lhe dessa vez, “(...) é um belo livro [e compara-o ao grande Balzac, que ambos admiravam], mais real, quer dizer o mais fiel à verdade, de uma ponta à outra. É necessária a grande arte, a forma requintada e a severidade do teu trabalho para não precisares das flores da fantasia. Deitas mãos cheias de poesia sobre a tua pintura, quer os teus personagens o compreendam ou não. Tudo isso é de mestre e o teu lugar está bem conquistado para sempre. Vive pois tranquilo tanto quanto te for possível, para durares muito e produzires muito.”

A seguir informa-se, protesta: “Não sei o que se passa com a crítica mas vai-me dando notícias. Se for preciso, zango-me e digo o que penso. Estou no meu direito.”

George Sand era uma escritora muito conhecida e apreciada no seu tempo, publicada, representada no teatro, com grande poder sobre os centros de opiniões literárias.
Em Fevereiro de 1869, Flaubert escreve criticando um amigo escritor:
Por quê fazer crítica nos jornais, quando se não morre de fome e se podem escrever livros! A sua Força encanta-me e espanta-me. Falo da Força da pessoa inteira, não a do cérebro apenas...

E, falando da crítica que só os artistas podem fazer, porque a única "criadora, porque se inquieta da outra em si, intensamente” continua:
"Seria necessário a essa crítica uma grande imaginação e uma grande generosidade, quero dizer uma faculdade de entusiasmo sempre pronta. E depois "gosto", qualidade rara, mesmo nos melhores...”

Ao que ela responde:
Dizes coisas boas da crítica. Mas para a fazer como tu dizes, sejam necessários artistas, e o artista está demasiado ocupado a fazer as próprias obras para se esquecer a aprofundar a obra dos outros”.
E, logo, atenta à beleza da vida e do que a rodeia, nota, a chamar-lhe a atenção:
"Meu Deus, que tempo lindo! Será que ao menos o gozas à tua janela? Aposto que o teu tulipeiro está cheio de botões. Aqui os pessegueiros e os alperces estão em flor...”

Flaubert não via nada, esquecia-se de abrir as janelas e de ver a vida. Mas há vezes em que repara, e na resposta diz:
Voilà que l’Hiver avance! J’ai rarement passé de meilleur ! »

E acrescenta : “tenho umas saudades suas loucas, como um verdadeiro animal !, ou antes, como um homem de espírito. O nosso bom Tourgueneff deve estar em Paris nos finais de Março. Seria simpático jantarmos os três.”

Flaubert eterniza-se por Paris, ela sabe-o sozinho, e escreve, a chamá-lo, várias vezes.
Em 18 de Janeiro de 1873, pede:
“Vem a Nohant. Se pudeses trazer Tourgueneff todos ficaríamos contentes [refere-se ao filho; Maurice, e à nora Lina, filho com quem tem uma relação muito boa de admiração recíproca], e terias o mais delicioso companheiro de viagem. Leste “Pais e Filhos” (***)? É muito bom!”
Flaubert adia sempre a partida, ela insiste:
Vem. Estás muito sozinho. Despacha-te a vir ter com os que te amam.”
Sabe que Flaubert anda enervado, furioso com um editor, receia pela sua saúde, inquieta-se com essas cóleras que acha desnecessárias:

"Vivo inquieta, não gosto dessas cóleras e "parti pris". Isso já dura há tempo de mais e é como um estado doentio, tu próprio o reconheces. Esquece. Não sabes esquecer?
Quer tirá-lo do buraco em que o vê afundar-se:
"Vives demasiado fechado sobre ti próprio e relacionas todas as coisas contigo. Se fosses um vaidoso e um egoísta diria que era um estado normal, mas em ti, tão bom e generoso, isso é uma anomalia, um mal que é preciso combater. Claro que a vida está mal arranjada, é injusta, penosa, irritante para toda a gente. Mas não ignores as imensas compensações que dá e que seria ingrato esquecer.

Lúcida, generosa, e inteligente reconhece:
"Que importa que existam cem mil inimigos se formos amados por dois ou três seres bons?"
Consegue convencê-lo a aceitar o convite para ir a Nohant.

De facto em carta de 20 de Março, Flaubert escreve-lhe de Paris:

Acabou de sair daqui o gigantesco Tourgueneff. E fizemos um juramento solene. No dia 12 de Abril, véspera de Páscoa, vai ter-nos a jantar em sua casa. Foi uma decisão difícil, acredite. Tudo é tão difícil de concluir.”

A amizade dura. Flaubert passa em Nohant grandes temporadas e George Sand vai visitá-lo a Croisset, onde conhece a mãe de Flaubert, que ali vive e domina, mas que vai adorar George Sand de quem fica amiga.

E George Sand agradece, em resposta:

“Fui muito feliz durante os oito dias passados com vocês. Nenhuma preocupação, um bom ninho, uma bela paisagem, corações afectuosos e a tua bela figura com algo de paternal! Apesar da idade, sente-se uma protecção de bondade infinita e quando, numa noite, chamou à sua mãe “minha filha” fiquei de lágrimas nos olhos.”

Até ao fim, este sentimento de amizade profunda e de ternura entre os dois perdura. É bom ler estas cartas. Dá confiança na vida. Nos sentimentos. Na amizade.

Era inevitável não falar desta correspondência que sempre me comove e que continuo a ler, e reler, religiosamente, com medo de a terminar...

________________

(*) "Gustave Flaubert-George Sand , Correspondance" - texto editado, prefaciado e anotado por Adolphe Jacobs, Flammarion, Paris, 1981

(**) referência ao quadro de famoso contemporâneo Delacroix, Le radeau de la Méduse

(***) “Desejava ardentemente perder o meu provincianismo e informar-me diretamente sobre as idéias e as artes do meu tempo (…) mas estava a par das dificuldades de uma pobre mulher em gozar esses luxos (…) Assim, mandei fazer um redingote-guérite, bem como calças e casaco a condizer. Com um chapéu cinzento e um enorme lenço de lã, tornei-me na imagem de um estudante. Não consigo expressar o prazer que me davam as minhas botas. Com aquelas solas revestidas a ferro, sentia-me firme a andar pelas ruas e corri Paris de uma ponta a outra. Dava-me a sensação de que poderia dar a volta ao mundo. Com aquelas roupas não temia absolutamente nada." ( no livro autobiográfico "Ma vie” )
(****) Este romance de Ivan Tourgueniev (ou Tourgueneff, 1818-1883) fora escrito em 1860 e traduzido para francês, pelo próprio Tourgueniev, em 1863.
Flaubert encontra-o num jantar no conhecido restaurante parisiense Magny e logo ficam amigos. Quanto a G. Sand, conhecera-o nos anos 40, mas foi através de Flaubert que trava conhecimento mais íntimo com o escritor russo. A seguir, ele vai estar em Nohant muitas vezes.

Algumas trabalhos sobre G. Sand
(que não li, confesso):
Em 1975 Curtis Cate publica a biografia: "George Sand."
Em 1993 Francis Steegmuller e Barbara Bray publicam a tradução em inglês da "Correspondence" entre Flaubert e Sand.
Em 2000 Belinda Jack escreve: "George Sand: A Woman’s Life Writ Large."

Deixo uma frase de George Sand, citada nessa biografia: "Preferia acreditar que Deus não existe do que acreditar que Ele é indiferente".

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Chopin: o Príncipe dos Românticos...Nunca esquecido

Never forgotten é o título do artigo que lhe dedica The Economist ao falar da Biografia publicada recentemente, "Chopin: Prince of the Romantics", assinada por Adam Zamoyski.
Chopin: Príncipe dos Românticos

É o nome da biografia –de Adam Zamoyski, “Chopin: Prince of Romantics”- que saíu há pouco em Inglaterra sobre o compositor Frédéric Freançois Chopin.
No dia 22 deste mês, segunda-feira, passa o bicentenário do nascimento de Chopin.

A publicação da biografia integra-se neste bicentenário.

"Trata-se de uma biografia escolar, diz o articulista de The Economist (*), mas bastante agradável de ler".

Que importa que se festejem os 200 anos? Importa é que seja ouvido, que se mantenha intacto o amor pelo músico polaco de nascimento (francês, dirão os franceses...).

E, de facto, ainda hoje é profundamente amado e considerado este “revolucionário que abriu o caminho à música moderna”, como dizia o compositor francês, Saint-Saëns.
Nunca escreveu uma peça musical má, tal como Sebastien Bach e Claude Debussy”.

Apesar de se encontrar na vanguarda da música romântica, os seus gostos musicais permaneceram clássicos. De facto, aos compositores de sucesso do momento, como Mendelssohn ou Lizt, preferia as composições de Bach e de Mozart.

Baseio-me nesse artigo em tudo o que se refere à tal biografia que ainda não li, mas vou comprar.
Zamoyski fala da “sua personalidade instável, tímida, doentiamente individualista cuja educação impecável, a modéstia e humor efervescente alternavam com petulância e mania de mandar...”
"Teve grandes e leais amigos (como Lizt), mas a sua vida amorosa foi uma saga deprimente de paixões irrequietas".

Lizt dizia que ele estava pronto a dar tudo “mas que não se dava a ele próprio”.
E Chopin dizia de si: “Quando se trata dos sentimentos eu fico sempre em síncope...”

A única excepção foi talvez a relação com a escritora francesa Georges Sand (o romance dela “La mare au diable” conta esses momentos de vida vividos juntos).
Georges Sand, mais velha, sente-se cativada “por essa criaturinha angélica”.

A ligação é, porém, tumultuosa e termina bruscamente em 1847.
Adam Zamoyski pergunta: "até que ponto foi física essa relação?"
"Chopin sai dela fragilizado, a sua falta de saúde torna mais forte o trauma emocional.
Sofre de frequentes infecções, ansiedade, dores de dentes, gripes, culminando com a tuberculose. Faltam-lhe as defesas, o organismo ressente-se
. "
O biógrafo fala da possibilidade da sua doença final ser uma "fibrose cística” (**) não diagnosticada no tempo, doença ainda hoje de difícil cura, dolorosa.
Mas “infortúnio dos artistas, e dos génios esse estado doentio, de mal-estar constante, deu-lhe mais tempo para se dedicar à sua arte."

De facto, evitava sair, ou apresentar-se fora em concertos.

Em 1848, abandona Paris, fugindo à dificuldade política do momento e refugia-se em Inglaterra e na Escócia. O cansaço das viagens e o stress fazem-no sofrer, enervam-no.
Perguntava, desesperado:

Por que razão Deus não me mata?”

Regressa a Paris, a situação de saúde deteriora-se rapidamente, começa a cuspir sangue.
Morre, triste e só em Outubro de 1849, dizem que dando "suspiros de partir a alma".

É dele a frase: “O tempo é o grande crítico”.

Creio que o tempo que passou e julgou–duzentos anos são suficientes. Chopin continua a ser apreciado.

E Chopin ficou, para sempre, como um grande artista, um compositor que nos ajuda a sonhar, que nos acompanha no nosso pousar os pés na terra, quando é mais doloroso deixar a poesia, e será amado. Never forgotten, nunca esquecido!









(*) The Economist da semana de 6 a 12 de Fevereiro, com o título: “Never Forgotten” é citada a Biografia: Chopin: Prince of Romantics (Harper, 365 páginas, 12,99 £)

(**)A Fibrose Cística (ou mucoviscidose) é uma doença genética autossómica e engloba-se num grupo de patologias denomiadas D.P.O.C (doença pulmonar obstrutiva crónica) que se caracterizam por haver uma obstrução crónica das vias aéreas, diminuindo a capacidade de ventilação.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Os livros policiais da dupla italiana "Fruttero & Lucentini"




Há alguns anos já, comecei a ler os livros de "Fruttero & Lucentini". Dois amigos de longa data, nascidos em Torino, que, cedo, começam a escrever a quatro mãos.
São eles Carlo Fruttero, nascido em 19 de Setembro de 1926 e ainda vivo, publicou, agora sozinho, um romance “Donne informate sui fatti” (2006), e Franco Lucentini que nasce em 24 de Dezembro de 1920, em Turim, e morre em 5 de Agosto de 2002. Dois bons escritores italianos que se associaram para escrever. O binómio, às vezes abreviado em "F&L", também chamado “a firma”, assinou, durante anos, colaborações no jornal La Stampa, de Turim, numa rubrica chamada “L’Agenda di F.&L.”.

Isto a partir de 1972.

Reunidos e publicados em três volumes, esta chamada “Trilogia do Cretino” (“La prevvalenza del cretino, 1885, La manutenzione del sorriso, 1988, e Il Ritorno del cretino, 1992), voltam mais tarde, em 2002, agora em formato económico, numa síntese feita pelos seus autores que se intitula “Il cretino in sintesi” (título fantástico!)na Mondadori Editore, Milão, e, em 2003, na colecção dos Oscar Best-sellers da mesma editora.

Falam de tudo, da literatura à cultura em geral, passando pela política (o último capítulo do livro é mesmo um dicionário político-satírico, de 50 palavras) e nada -e ninguém- escapa ao olhar crítico e irónico que "destrói" o cretino:

Per lo stupido il cretino è sempre l'altro, diziam eles...
Além dos artigos, publicam juntos traduções e romances –sobretudo policiais, criando a figura do Comissário Salvatore Santamaria (interpretado no écran por Marcello Mastroiani) -os célebres “gialli” da Mondadori! A palavra “gialli” (giallo, no singular) refere-se à cor dos livros da colecção policial, “amarelos”, pois.
Desde o início, foram muito apreciados pelo público italiano. Assinaram também livros de ficção científica, dirigindo durante vinte anos a colecção da Mondadori desse tipo de livros, a Urania (1961-1986).

Nos anos 80/90 tiveram um programa literário, na televisão italiana, programa que revelava a enorme cultura de ambos, e em que me lembro de ouvir Fruttero (salvo erro... ou seria Lucentini?) dizer que lera a Guerra e Paz, de Tolstoi, e Os Irmãos Karamazov, de Dostoieviski, nas viagens de autocarro, de casa para o trabalho e vice-versa, e que, devido ao tamanho dos livros, os cortou em vários montinhos de folhas... Assim, metia-os no bolso e tirava-os onde e quando queria, e lia.
Que eu saiba não existe tradução portuguesa de nenhum dos seus livros: aqui deixo a sugestão para quem possa –e queira- fazê-lo.
Talvez a obra-prima seja o romance “L’Amante senza fissa dimora” (O Amante sem residência fixa), livro inesquecível de poesia, cujo herói, Mr. Silvera, é uma espécie de judeu errante que de, terra em terra, vai errando até poisar em Veneza. E que me lembra ,inevitavelmente, na figura e no seu deambular por Veneza outro aventureiro "errante", o Corto Maltese de Hugo Pratt...
História de mistério, de amor, história fascinante, um thriller, que se passa em três dias, em Veneza, entre uma princesa romana e o misterioso personagem que é o guia acompanhante de uma excursão, Mr. Silveri...

Para vos excitar a curiosidade, deixo o primeiro parágrafo do livro (tradução minha livre...).

"Quando Mr. Silvera se decide enfim (look, look, Mr. Silvera!) a soltar o cinto de segurança e a inclinar-se por cima dos seus companheiros de viagem a espreitar pelo obló, Veneza já tinha desaparecido; vê, apenas, um longínquo fragmento de mar cor de alumínio e, perto, um trapézio de alumínio, a asa.
The lagoon!- repetem os turistas do seu -e do outro- grupo que enchem o voo AZ 114, -A Laguna!"

Quem me dera que houvesse já alguma tradução, para poderem ler os que não lêem italiano!
Deixo uma pequena lista das obras, por ordem cronológica:
O primeiro livro data de 1972, e intitula-se La donna della domenica. Em 1975, Luigi Comencini realiza o filme do mesmo nome com Marcello Mastroiani, Jacqueline Bisset e Jean Louis Trintignant..

Começa assim:

Na terça-feira de Junho, em foi assassinado, o arquitecto Garrone olhou mil vezes para o relógio. Começara ao abrir os olhos na obscuridade profunda do quarto, cuja janela bem vedada não deixava passar nenhum raio. Enquanto a mão, impaciente se estende ao longo do fio, à procura do interruptor, fora invadido por um medo irracional: seria demasiado tarde e que a hora do telefonema tivesse passado...”

É a primeira vez que aparece a personagem do Comissário Santamaria que se vai encarregar de investigar o morte do ambíguo arquitecto Garrone.
1ª ed. 1972, Mondadori

A che punto è la notte? (Em que ponto está a noite?/Como vai a noite? -tradução difícil)
Livro cheio de suspense, passado em Turim, tendo como personagem principal outra vez o Comissário Santamaria.

1ª edição 1979, Mondadori

Em 1990, o realizador italiano Nanni Loy realiza para a televisão a adaptação dessa história, com os actores Marcello Mastroiani, no papel do Comissário, e a actriz francesa Marie Laforêt.

Il Palio delle contrade morte
Passa-se em Siena durante o Palio, a corrida de cavalos que se realiza no Verão, na belíssima praça de Siena, em forma de concha, a Piazza del Campo.
1ª ed. 1983
Enigma in luogo di mare
Passa-se numa pequena e luxuosa localidade ao pé do mar, na Maremma toscana, no Natal.
1991

Surgiu há pouco uma brilhante ideia, em Itália: a publicação de mais textos tirada da colaboração entre Fruttero e Lucentini aparece Fruttero & Lucentini. “I nottambuli” , o título do livro, editado por Avagliano Editore (pagg. 304, 12 €).
Livro dedicado aos que aman, amavam e amarão as fábulas mas que hoje, crscidos, têm que olhar para além delas. è um livro para os que nas noites de insónia sonham de olhos abertos.
Trata-se de uma recolha de escritos que propõem uma espécie de passeio nocturno ideal em companhia de escritores famosos e de personagens livrescas, misto de história e de fantasia que se cruzam com o mundo da arte e da política.
Para terminar, não quero deixar de citar um blog, o único que encontrei que fala destes autores, o Blog Incursões, no dia 5 de Janeiro de 2008, no post intitulado o leitor (im)penitente 29:

“(...) uma homenagem aos leitores de Fruttero e Lucentini, sobretudo ao livro “A mulher dos domingos” se é que houve tradução portuguesa. E ao filme que era delicioso (Jacqueline Bisset, Marcello Mastroianni e Jean-Louis Trintignant, realização de Luigi Comencini, 1975). Como é sabido Franco Lucentini suicidou-se, acabando assim a mais interessante dupla literária italiana. Carlo Fruttero acaba de publicar, cito a edição francesa que é a que tenho e li, “Des femmes bien informées” (Robert Laffont). Uma homenagem ao livro que os fez famosos e que acima referi. Três dos meus leitores são fans deste duo e decerto gostarão de saber que a velha fonte não secou. Ora aqui está um toque de nostalgia que fica sempre bem num balanço de livros. "
No blog Incursões, que se encontra agora em:


terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Mais um Carnaval...


Mais um Carnaval... ~

Dias atrás, uma senhora –já de certa idade- queixava-se, numa loja, onde fui:

Oh! Já não é como antigamente. O Carnaval dos meus tempos é que era verdadeiro! Havia o Corso no Estoril, na Avenida da Liberdade. Tudo tão bonito!”
E lá ficou a suspirar pelos seus “good old times”.

Vim para casa a pensar nisso.

Sim. Tudo muda. Já dizia o grande Camões que tudo é feito de mudança...
Lembrei o soneto magnífico a que o tempo e a mudança não tiraram o encanto:

"Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o Mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades."

Mas isso não é negativo, pensei...
O poeta diz também: "tomando sempre novas qualidades", e mais adiante, "novidades".
E, mais adiante: " O tempo cobre o chão de verde manto./Que já coberto foi de neve fria!
Eu "leio" aqui qualidades como coisas boas, a Primavera que se segue ao Inverno, etc.
Deixemos o resto... Por que não?
Pensei nos carnavais da minha infância e adolescência. Só nessa altura, apreciei deveras o Carnaval.

Havia ainda os mascarados, é certo, mas já a minha avó dizia que nada era como tinha sido no tempo dela.
E falava dos carros enfeitados com flores de papel, puxados a cavalos, e, dentro, as "máscaras" com mantilhas, vestidos vistosos, os cabelos encaracolados a ferro quente, mascarilha negra de seda, irreconhecíveis.
E contava como se divertiam, as "partidas" que faziam, etc...
Para mim o melhor era o "dia-a-dia" do Carnaval, os dias e as noites.
Quando o meu avô passava ao serão e trazia sempre um “disfarce”, para nos divertir: um nariz, óculos e bigode à Groucho Marx, uma capa negra, uma "caraça" assustadora, enfim, pequenas coisas que eram uma brincadeira para nós.

Outras vezes acompanhava-nos, à noite, mascarados todos, ele, eu e as minhas irmãs, para ir de visita a amigos, cruzando grupos divertidos que nos saudavam e tentavam “meter medo”, pelas ruas da cidade cobertas de “confettis” (papelinhos era o que nós lhes chamávamos...) e serpentinas penduradas das sacadas dos prédios altos da Rua Direita, as luzes acesas detrás dos vidros, a música, os risos.

Ou sou eu, hoje, que "recordo" assim?
Que importa?

Tudo nos servia para nos vestirmos "de carnaval"...
Passávamos busca aos armários e gavetas da minha mãe a tirar tudo o que fosse seda e colorido para fora, pijamas, lenços écharpes e eis-nos princesas indianas, rainhas dos Orientes, sheiks do deserto, Madames Butterfly...

Vou-vos contar uma história desses tempos...
Eu gostava de me disfarçar sempre de homem: era sheik das arábias, ladrão de Bagdad, pirata, conforme o que encontrava nas tais gavetas da minha mãe...ou do meu pai.

Pintava um bigode de rolha queimada, carregava as sobrancelhas, punha um pano branco na cabeça, atava uma gravata, ou o cinto de seda torcida do robe do meu pai, e um lençol que era o manto a esvoaçar e sentia-me o Lawrence das Arábias!
E lá ia com as minhas irmãs e com o avô, a pavonear-me pela cidade ou a visitar a família.

Num ano desses, a minha mãe decidiu mandar fazer na costureira da nossa rua uns fatos de Carnaval a sério.

A pequenina ia vestida de “holandesa”, com uma sainha de seda até aos pés, azul, um aventalinho de renda e uma touca de cambraia de onde saíam as trancinhas louras.

Eu e a minha irmã mais velha iríamos mascaradas de “camponeses jugoslavos”.
Ela era a rapariga, linda num vestido de flores e ramagens de várias cores, camisa branca com folhos, botas vermelhas e uma coroa de espigas douradas cheias de fitas de várias cores a cair dos lados do seu cabelo muito bem penteado; eu, o rapaz, com umas calças largas de cetim negro apanhadas nos joelhos, um colete bordado com um “galão” verde e prateado e uma camisa de cambraia muito fina. Os sapatos eram uns escarpins de cetim preto com bordados iguais ao colete. No alto, uma calota também bordada, em cima dos caracóis.

Sim, dos caracóis...
Porque nessa manhã tínhamos ido arranjar o cabelo ao cabeleireiro, o Sr. Relvas, que tinha o seu salão de coiffure na Rua da Sé, perto da casa dos meus avós.
Quando me vi ao espelho, só me apetecia chorar: os meus cabelos lisos e curtos, ainda ontem, estavam agora em caracóis agarrados à cabeça: parecia um carneiro preto!

(O pior foi a ideia que a minha mãe teve de nos levar ao fotógrafo da terra. Para minha tristeza, depois de férias, vi-nos -vi-me- na montra do fotógrafo, em foto ampliada e colorida à mão. Estava imortalizada a minha imagem de carneirinho preto. )

E aqui fica a minha história de um carnaval de outros tempos, os meus, os nossos...
Que tal a fotografia? Eu e a minha irmã, nesse dia de Carnaval...

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Serge Reggiani o romântico cantor francês e a nostalgia: "Madame Nostalgie" e "L'italien"

O actor de "Casque d'Or", onde contracena com uma Simone Signoret belíssima!
Parece que o clube dos românticos aumenta... Mais um comentário:
" Se ser sensível, atenta ao mundo e às belezas das coisas, presentes e passadas, é ser romântico, então já somos duas. Se há coisas horríveis neste mundo, também há coisas muito belas e, por vezes, esquecidas e invisíveis – a precisarem de ser resgatadas da invisibilidade e do esquecimento (como a história daquela sua amiga judia, com as marcas da História na pele).
O que mais me atrai no seu blogue é uma sensibilidade e um amor ao Outro/a e à Vida que torna vívido tudo o que “toca”. E são tantas as teclas!... Obrigada por tão generosa partilha!..."
(Pode pôr no blogue o comentário, se quiser…)
Lurdes










Serge Reggiani nasceu em Itália. Conhecem a canção "L'Italien"? Serge Reggiani, o romântico cantor francês, actor inesquecível..

Biografia:
Actor, cantor, poeta e pintor, Serge Reggiani nasce em Itália, a 2 de Maio de 1922, em Reggio Emilia.
Aos oito anos, nos anos tremendos de Mussolini, seguindo o pai, judeu e antifascista, abandona a Italia e transfere-se para França.
Em 1948 torna-se cidadão francês.

Em 1937 a sua vida muda, uma vez que consegue entrar no Conservatório das Artes Cinematográficas. Depois do diploma, começa a interptretar pequenos papéis em filmes, e no teatro, que lhe permitem ingressar em 1939 no prestigioso Conservatório Nacional das Artes Dramáticas.

O actor


Apesar de nunca atingir o top na sua carreira de actor, triunfou no teatro em 1959 com uma interpretação que ficou famosa na peça de Jean-Paul Sartre, Les Séquestrés d'Altona.

O seu temperamento dramático fá-lo ser amado pelos autores existencialistas.
Mas, progressivamente, vai-se afastando do teatro para se dedicar ao cinema.

Em 1959 começa a ser conhecido na radio pelo seu talento de cantor, iniciando a carreira musical.
Continua a interpretar papéis, que no entanto salvas raras excepções são secundários, que desempenha sempre na perfeição.

É um actor com uma presença inesquecível, apesar da discrição, e com uma dicção incomparável. A sua interpretação de Don Ciccio Tumeo, em "Il Gattopardo" (1963) de Visconti, é ainda hoje considerada perfeita. É o próprio realizador que insiste para que ele faça esse papel.

Era um intérprete sensível e preparado. Os seus personagens, reservados, românticos, melancólicos e humaníssimos, foram amados por quem viu os seus filmes.

O cantor e o músico

Na música começa a distinguir-se pela sensibilidade, calor e delicadeza com que interpreta as suas canções, mesmo as mais “duras”.

Em 1966 encontra George Moustaki, outro grande da canção francesa (judeu nascido na Grécia em 1934), e convence-o a escrever material para as suas canções. Trabalham juntos trocando letras, músicas e canções.

Sucessos como: Sara, Ma Liberté, Madame, Le petit garçon, Votre Fille a Vingt Ans, Ma Solitude, entre outras.

Em 1970 lança-se numa terceira carreira, publicando um volume de poesias.
Em 1990, depois do suicídio do filho Stephan, Reggiani abandona o espectáculo para curar a depressão e tratar a dependência do álcool.
Nos últimos anos da sua vida dedica-se à pintura.
Morre em Paris aos 82 anos, com uma paragem cardíaca.

Alguns filmes:
Le Voyageur de la Toussaint, 1942, de Louis Dacquin (tirado de um livro de George Simenon).

Em 1943, na Paris ocupada pelos alemães, obtém um papel de relevo em Evasion (1943), de Claude Autant-Lara.

A partir daqui terá papéis importantes em filmes de grandes realizadores, como Quand Paris dort (1946) de Marcel Carné, ou Casque d’Or (1952) de Jacques Becker, com Simone Signoret, ou no filme Tutti a casa (1960) de Luigi Comencini, com Alberto Sordi.










Espero que gostem...

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Lembrar Jacques Brel. Toujours...


Hoje uma leitora pediu-me que continuasse a ser romântica... Achei graça.
Vinha isto a propósito de Jacques Brel.
Dizia:
"Achei curioso que cite no seu perfil a Jacques Brel ou "O Monte dos Vendavais". Se ainda continua a ser uma romântica, fiel àqueles tempos da inocência, tem a minha mais sincera admiração."Ne me quittes pas", por favor!
Uma anónima muito gastada"

Respondi-lhe e aqui deixo a promessa que lhe fiz: romântica, sempre!
E fica a canção "Ne me quitte pas" para todos os que nos queiram seguir nesta aventura...
Como tudo o que é verdadeiro, e sentido profundamente, esta canção é eterna.
Minha querida amiga! Jacques Brel será ouvido sempre, por novos e menos novos, porque é uma pessoa maravilhosa!

Um cantor, músico, compositor e actor! (lembram-se de "L'Aventure c'est l'Aventure" ou de "L' Emmerdeur"?)- fantástico, com uma voz inesquecível. Escolhi este video mais antigo em que, sem acompanhamentos mais sofisticados, se "ouve" melhor a sua voz.

Deixo-vos uma imagem (cómico/trágica) de um filme dele...
O humor também é uma coisa maravilhosa!


Bom Carnaval! E Bom Dia de S. Valentino.


sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Livros, sempre...




Anónimo disse...
"Não lhe interessaria falar um pouco de si mesma, isto é, da vida, mas através dos seus próprios olhos e das suas próprias experiências?Gosto dos seus gôstos,mas nâo tenho tempo já para falar de literatura,prefiro escutar o que as pessoas interessantes como você têm para aportar da sua própria colheita."


Agradeço que me achem interessante o suficiente para falar mais de mim e do que aprendi. Não é falsa modéstia, é pensar que se fala muitas vezes de mais de nós próprios. E, aliás, já muito falei nas minhas Histórias da Casa Amarela e outras...


Continuo a falar de Literatura... Mas obrigada, à mesma.

Comecei a "reler", nestes dias Rumo ao Farol, de Virginia Woolf. Já aqui falei dela e gostei de voltar a ler o livro com mais atenção agora. Às vezes difícil, sempre interessante. Com evocações extraordinárias, uma grande visibilidade das figuras (nas luzes e nas suas sombras, por dentro e por fora) e das paisagens: o mar, as ondas, o farol, as cores...
Mas não era de Virginia Woolf que vinha falar, mas sim do “livro” na tradução (muito boa) da Relógio d´Água.

Gosto de espreitar tudo dos livros e fui ver o que havia já publicado, naquela colecção. Fiquei agradavelmente surpreendida com a quantidade de livros (bons) publicados.
É sempre subjectiva a apreciação deste tipo, inútil dizê-lo.

O que é um “bom” livro para mim, pode não o ser para outros, claro. Mas, se eu não disser o que é bom, para mim, se evitar dizer aquilo de que gosto, para que serviria se quer falar, comunicar, estar para aqui a dizer o que digo?...
Por isso aqui estou a falar destes livros que "acho bons"!

Muitas das minhas antigas alunas, me vêm pedir de vez em quando, ainda hoje: "professora, diga-me alguns livros para ler em férias..."

Lá vou dizendo. Muitas vezes hesito, penso que se calhar não existe já a velha edição pela qual li esses livros, e não estou segura que os encontrem. E muitas deles (e delas) só lêem traduções. Fico agarrada a certos títulos que sei que existem.
Ou que existiram...
Hoje deixo já aqui uma lista de bons (óptimos!) livros.

Não faço publicidade à editora (que até merece!!!), mas não posso deixar de falar dos livros dela!!! E da possibilidade real de os encontrarem na "Relógio d’Água".

Aqui ficam, para quem quiser...

Thomas Mann: A Morte em Veneza, O Cisne Negro
Joseph Conrad: Linha de Sombra
Scott Fitzgerald: Sonhos de Inverno, Este Lado do Paraíso, O Último magnate, Terna é a Noite, O Grande Gatsby
Alain-Fournier: O Grande Meaulnes
Katherine Mansfield: Viagem Indiscreta, O Garden-Party
Karen Blixen: Contos de Inverno, Novos Contos de Inverno, África Minha
Boris Vian: A Espuma dos Dias
Jack Kerouac: Pela Estrada Fora, Big Sur
Evelyn Waugh: Reviver o Passado em Brideshead
Truman Capote: A Harpa de Ervas, Outras Vozes, Outros Lugares
Malcolm Lowry: Debaixo do Vulcão
Irish Murdoch: O Mar, o mar
J.D. Salinger: Franny e Zoeey
Carson Mac Cullers: A Balada do café triste
Italo Svevo: Senilidade
Clarice Lispector: Perto do Coração Selvagem
Virginia Woolf: A Casa Assombrada, Mrs. Dalloway

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Por que razão Jane Austen é lida ainda hoje?


Por que se lê, hoje, no século XXI, uma escritora que viveu entre o século XVIII e o XIX com o entusiasmo com que, de facto, se lê Jane Austen?

Quem foi? O que se sabe dela realmente? Quem a lê?, serão perguntas pertinentes.

É de facto uma pergunta com sentido.
Basta reparar no número de "biografias" sobre a escritora...
Achei curiosa a descoberta de um livro publicado nos USA pela Random House e que se intitula: 
Chama-se “33 writers on why we read Jane Austen" de que vos falarei mais adiante.
Mas, para já, o que se sabe dela?
Diz Claire Tomalin na biografia humaníssima que lhe dedicou:


“Não é uma história fácil de investigar. Não escreveu notas autobiográficas e se manteve diários, nada deles lhe sobreviveu. A irmã destruiu o volume de cartas que tinha na sua posse, e uma sobrinha fez o mesmo no que se referia às cartas que escrevera a um dos irmãos, e apenas uma mão-cheia delas apareceram de outras fontes. 
Em número de 160 no total, e nenhuma delas escrita durante a infância; a mais antiga data de quando tinha vinte anos.
A primeira nota biográfica que se conhece, escrita logo após a sua morte, consta de poucas páginas escritas pelo irmão, Henry, que nos explica que a vida dela “não foi de modo algum uma vida com acontecimentos” (“not by any means a life of events”). Passam-se mais cinquenta anos até aparecer uma "memória" do sobrinho, que confirma a mesma ideia, afirmando: “of events her life was singularly barren: few changes and no great crisis ever broke the smooth current of its course”.

Claire Tomalin diz que nada de traumático se passou na vida dela, do tipo de coisas e dramas que acontecem na vida das crianças dos livros de Dickens. Isso não nos impede -se olharmos atentamente para a sua infância- de concluir que nem sempre foi calma a vida no presbitério de Steventon.

Muito pelo contrário, -continua Claire Tomalin- a infância dela foi cheia de eventos, de desgostos e mesmo de traumas que deixaram nela as suas marcas. (...) Mas que ela conseguiu ultrapassar.”
Jane não casou. Num tempo em que o matrimónio era um fim em si, para muita jovem.

Aos vinte anos, encontrou em casa de amigos, Tom Leffroy, o seu “irish friend”, o amigo irlandês, como lhe chamava numa das cartas que “sobreviveram”.

Encontraram-se num Verão, em casa de amigas, as três irmãs Briggs -que viviam na Manydown House- uma mansão lindíssima, rodeada de um parque. 

Ele, um estudante irlandês que vem preparar o estágio de advogado em Londres, ela ua jovem sem fortuna. Pobres os dois, foi ela que o afastou quando percebeu que se estavam a apaixonar. O amor deles não tinha futuro.


Sete anos mais tarde, o herdeiro dessa propriedade, Harry Brigg-Wisley, irmão dessas amigas propôs-lhe casamento. Aceitou nessa noite, mas, na manhã seguinte, tinha mudado de ideias, e recusa.
Jane nunca casaria por interesse e sem amor. Preferiu ser uma mulher independente e solitária, a meio de uma casa cheia de gente a entrar e a sair.

Tudo o que sofreu de tristezas, desejos, ou assuntos referentes a coisas mais íntimas foram “censurados”,nas suas cartas, por Cassandra, a irmã mais velha.
No entanto, nas que sobreviveram, há “flashes” da sua vida e da atitude perante a sua obra. Nalgumas cartas a Cassandra, ou à amiga Martha Lloyd, ou às sobrinhas e sobrinhos a quem confiava as suas opiniões sobre os romances que estava a escrever levanta-se o véu sobre essa aparente 'ausência de acontecimentos'. 

Tudo dependia da "intensidade" com que se viviam esses poucos "eventos"...

Contava ela a Anne Austen, sua sobrinha, em 9 de Setembro de 1814:

"Há três ou quatro famílias nesta aldeia: é o [material] que tenho para trabalhar!”

Sempre à roda das mesmas terras e das suas gentes, uma passagem com família em Bath (Jane não aprecia a ideia do pai, e desmaia quando sabe a notícia); a mudança para Southampton, a seguir à morte do pai, em 1806, indo viver para casa do irmão Frank, e, outra, depois, em 1809, para Chawton onde o irmão Edward, bem estabelecido na vida, lhes empresta uma casa.


Poucas semanas antes de morrer, vai viver para Winchester.

Os primeiros sintomas da doença de Jane, dores nas costas, cansaço e fraqueza surgiram em 1815.
A doença de Austen foi muito discutida, pensando alguns recentemente que se tratou da doença de Addison (Sir Zacharie Cope, em 1964).
Claire Tomalin(depois de consultar sobre o assunto alguns médicos, como o Dr. Eric Beck) fala hoje de um linfoma de Hodgkin.

Li num blog brasileiro dedicado a Jane Austen (JASBRA), que também essa doença parece afastada, inclinando-se o articulista para uma tuberculose.

No final de 1816, a doença agravou-se, ainda que intermitente. A partir de Março de 1817, Jane foi ficando cada vez mais fraca, deixando de parte o livro que continuou a escrever até ao fim, pegando no lápis quando não podia segurar a caneta, Sanditon.

Toda a sua vida e experiência se confina às pequenas terras onde viveu, e aos seus habitantes. Também nas múltiplas idas a Londres que adorava e que a deslumbrava. 
No entanto, o aprofundar desse conhecimento breve e a observação, atenta e arguta, dos seres que a rodeiam, levam-na à criação de personalidades distintas.


Como diz Somerset Maugham: “são sempre as mesmas pessoas, os mesmos sítios, que surgem, mas vistos de pontos de observação diferentes”, nos seus romances.


Romances esses que foram muito apreciados, na época, pelo próprio Príncipe Regente, futuro George IV, pessoa de grande cultura, que possuía uma colecção completa das suas obras em cada uma das suas residências.

Alguns livros e opiniões sobre a escritora
Começo por Sir Walter Scott, seu contemporâneo, e autor famoso no seu tempo, aprecia o trabalho de Jane Austen, no artigo “Review of Emma”, publicado em Outubro de 1815, na Quartery Review 14, falando no seu “toque requintado que transformava as coisas vulgares e os sentimentos das pessoas mais comuns em interessantes assuntos e caracteres.” De facto, Walter Scott (1871-1832), (citado por Somerset Maugham no tal livro intitulado “33 writers on why we read Jane Austen”), admirava a sua capacidade de “criar” personagens vivas, além do talento inegável para descrever as relações, os sentimentos, e os acontecimentos da vida quotidiana.

Esta jovem, escrevia ainda ele, tem o talento de descrever as relações e os sentimentos e caracteres da vida quotidiana, o que é para mim a coisa mias maravilhosa que já encontrei” (“The young lady had a talent for describing the envolvements, feelings, and characters of the ordinary life which is to me the most wonderful I have ever met with”).

E elogia-a por conseguir o que a ele é negado: “The exquisite touch which renders commonplace things and characters interesting from the truth of e the description and the sentiments”.

Somerset Maugham acrescenta:
“É estranho que Walter Scott tenha omitido a referência ao maior talento da “young lady”: de facto, a sua observação era profunda e o sentimento edificante mas era o seu humor que dava força à sua observação, e uma espécie de ingenuidade criadora que dava vivacidade ao seu sentimento.” (pg. 77 do livro citado).

Alguns puseram-lhe restrições como a romancista inglesa Charlotte Brontë (1816-1855) e a poetisa E. Barrett Browning (1806-1861), que a achavam limitada; ou, mais tarde, Henry James (1843-1916), que acusa a sua literatura de ser “gentil”: ela era, para ele, aquela “dear Jane”: a querida (e inofensiva) Jane.
Depois da Biographical Notice que o irmão publicou em 1818 e, sobretudo, a partir da Memoir do sobrinho James-Edward Austen Leigh (1870) é que se começa a criar um culto em volta da sua obra e da sua pessoa.


Opiniões de escritores ingleses
Anthony Trollope (1815-1882) é um dos primeiros a afirmar:
Miss Austen was surely a great novelist. What she did, she did perfectly.”

George Eliot (1819-1880):
The greatest artist that has ever written” e “The most perfect master over the means to her end.”( “a maior artista”... e “o mestre mais perfeito”)

Virginia Woolf (1882-1941): “The wit of Jane Austen has for partner the perfection of the taste” ( a inteligência aliada à perfeição do gosto).

Por que se lê hoje Jane Austen?
Acho que uma boa resposta se encontra no livro interessantíssimo que me foi assinalado (blog “sobreorisco”) e que revela essa atracção incontornável pela figura e obra de Jane Austen.


Intitula-se, como já referi atrás: 33 writers on why we read Jane Austen (Random House, New York, 2009, edição cuidada por Susannah Carson, com prefácio de Harold Bloom, Colecção “A Truth Universally Ackknowledged”
Traduzindo livremente o título será: “33 escritores explicam por que lemos Jane Austen".


Alguns desses 33 escritores são, por exemplo, (sigo uma ordem alfabética):

Kingsley Amis (1922) e o filho, Martin Amis (1949), Amy Bloom (1953), Anne S. Byatt (1936), Harold Bloom (1930), Eva Brann (1939), James Collins (1958), E.M. Forster (1879), C. S. Lewis (1898), David Lodge (1935), Somerset Maugham (1874), Rebecca Mead (1966), J.B. Pristley (1894), Ignes Sodré (psicanalista brasileira que vive e pratica a sua profissão em Londres desde 1969), Janet Todd (1942), Lionel Trilling (1905), Ian Watt e Virginia Woolf (1882).

Citei apenas alguns, tentando mostrar a variedade de sexo, idades, séculos, nacionalidades.


Escritores, críticos literários, professores que se debruçaram sobre este fenómeno.

Como por exemplo Janet Todd, professora de Inglês na Universidade de Abeerden (e autora de “Introduction to Jane Austen", publicada pela Cambridge University Press, 2006, na Colecção “The Cambridge Introductions to Literature”) que diz:


Jane Austen é a única -com Shakespeare- a cativar a atenção popular como, por outro lado, a receber as maiores atenções por parte dos estudiosos, hoje mais do que nunca”.

O seu livro começa por uma frase que pode ser considerada “polémica” dado que muita gente, erradamente, a considera uma escritora ligeira, suave, o que hoje se chamaria light, escritora “para mulheres”: literatura feminina como já ouvi dizer, o depreciativamente.´


Janet Todd diz: “Jane Austen is one of the greatest writers of English Literature”.
Um dos maiores escritores da Literatura Inglesa! 

Lembro, num aparte, que Gaspar Simões que sempre a admirou e defendeu. Régio “entrou” na literatura de Austen muito mais tarde e “reconhece” a sua grandeza, quando lê “Ema”, em 1944.
Está escrito na 1ª página do volume da Edição da Inquérito, ao lado da sua assinatura. Por acasos do destino, esse livro está hoje na minha posse, porque, pouco antes de morrer, mo emprestou.E não pude devolver-lho.
"Porque nenhum leitor, nem nenhuma época, esgota os livros dela. Há sempre algo que nos escapou, e, por outro lado, cada nova leitura enriquece quem a lê”.


Para terminar esta longa conversa, deixo as palavras de Claire Tomalin, no "Postscriptum" ao livro:

"Na última página terei que me virar para Jane-ela-mesma: para a criança para quem os livros eram um refúgio; para a rapariga cuja imaginação a leva a escrever histórias tão cedo; para a jovem que gostava de dançar e de brincar (...); para a irmã dedicada que tinha sempre tempo para todos mesmo quando o que lhe apetecia era sentar-se a escrever no seu canto, em paz; para a mulher que tratava igualmente senhores e servos; para o autor fantástico no seu brilho de mestre da sua arte; para a mulher moribunda que tem a coragem de resistir à morte mesmo quando já nos dentes dela; para a pessoa que preferia ficar silenciosa a criticar os pontos de vista dos outros se isso os magoasse; e que guardava os recortes sobre o que diziam dela para os ir ler sozinha.

Esta é a minha imagem preferida de Jane Austen, a rir-se das opiniões do mundo. Tão bom saber que tinha tanto riso dentro dela. Hoje, com o imenso número de opiniões que existem, há assunto que dá para rir, para sempre!"


Completamente de acordo!Para mim, o que Claire Tomalin me ensinou sobre Jane Austen, 'esse pouco', diz ela, que são mais de 300 páginas, e esta conclusão final, leva-me a pensar: que bom que existam pessoas (escritores) assim!