quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013



A STENDHALMANIA (II) OU O "CLUB STENDHAL"...

“Le hasard fait que j’ai chercher à noter les sons de mon âme par des pages imprimés.”


Também pertenço ao Club Stendhal. Gosto muito de Stendhal que li,  jovem. “O Vermelho e o Negro” andava lá por casa, quando eu era miúda, e li-o, entusiasmada.


A leitura dos outros romances veio mais tarde, já na Universidade, onde tive uma óptima professora de Literatura Francesa, Maria Manuela Saraiva, que nunca esquecerei.

desenho de Frédéric Valonton

Nessa altura, li quase tudo. La Vie de Henry Brulard foi um dos que me interessou, talvez pela frescura que todo o livro tem, carregado do entusiasmo de alguém que nunca perdeu a juventude!
desenho da autoria de Stendhal

Stendhal é o pseudónimo de Henri-Marie Beyle que nasceu em Grenoble, em 23 de Janeiro de 1783, e morreu no dia 22 de Março de 1842, com um ataque de apoplexia fulminante, em Paris, na rue des Capucines.
casa de Stendhal, em Grenoble

Nesta casa "passou" Stendhal, na sua ida para a Campanha da Rússia.
Napoleão Bonaparte, pintado por David

Em 1800, era oficial da administração militar francesa, durante a Campanha da Rússia  de  Napoleão, e, em 1812, segue a carreira diplomática: cônsul da França, em Civitavecchia.

Homem culto e apreciador das  obras de Arte, amante da beleza, não admira que hoje se chame “síndrome de Stendhal” a uma doença psicossomática  que causa um estado confusional, arritmia, desmaios e mesmo alucinações! 

Doença cujos "sintomas" ele próprio terá descrito em “Rome, Naples et Florence en 1817"... Que s revelam em indivíduos especialmente sensíveis - quando “expostos” às obras de  Arte, sobretudo  em locais onde existem muitas  obras caracterizadas por grande beleza.

Cito as primeiras frases de um livro muito bom: Stendhal par lui-même, da autoria de Claude Roy (1), que me ajudou já nos tempos dos estudos.

“Henri Beyle, conhecido também sob os nomes de Louis Alexandre Bombet, Lisio Visconti, Cornichon, o chefe de batalhão Coste, Timoléon du Bois, William Crocodile, etc..., célebre sob o nome de Stendhal, escreveu dois romances que contam entre os muito raros obras consideradas perfeitas da literatura. Não escondo que este julgamento, postulado donde se vai seguir todo o ensaio que se segue, repousa em parte num sentimento pessal, ao qual outros espíritos podem não aceder.
(...) A perfeição de Le Rouge et le Noir e La Chartreuse de Parme parecem-me, no entanto, perfeitamente demonstráveis.”

edição de bolso, da "Folio"

uma bela capa de uma tradução portuguesa



E, ao longo de 190 páginas, Claude Roy vai fazer essa demonstração, de modo claríssimo, através dos textos do próprio autor.

Em 1840, Honoré de Balzac escreve na Revue Parisienne: “Considero o autor deste romance (La Chartreuse de Parme) como um dos melhores escritores da nossa época.”
(...)
“Mr. Beyle fez um livro onde o sublime éclate avança de capítulo em capítulo...O lado fraco desta obra é o estilo, enquanto mistura de palavras".

Balzac, escultura de Rodin

Em  resposta ao artigo de  Balzac, escreverá, em 16 de Outubro de 1840, duas ou três "versões" de uma carta que nunca enviará:

Fiquei muito surpreendido com o artigo que dedicou à Chartreuse. Agradeço mais os conselhos do que os louvores. Sentiu pena de um órfão abandonado na rua. Pensei não ser lido antes de 1880 (...) Recebi a revista ontem à noite e esta manhã já reduzi, de quatro ou cinco páginas, as cinquenta e quatro primeiras páginas do I volume da Chartreuse.

Tive um grande prazer ao escrever essas 54 páginas, falava das coisas que amava e nunca tinha pensado na “arte “ de fazer romances. (...) Penso que dentro de 50 anos um editor literário a publicará fragmentos dos meus livros que talvez agradem  por não existir neles “afectação” e, talvez, por serem verdadeiros. Ao ditar a Chartreuse, pensava que o facto de a imprimir logo de um jacto, a faria mais verdadeira, mais natural, mais digna de agradar em 1880, quando a sociedade  não estiver repleta de novos-ricos grosseiros." (2)

A "verdade" dos sentimentos e dos caracteres  desde muito cedo o interessava. Escreve no Diário, em 1811: “Só me preocupa retratar o coração humano. Para o resto, sou uma negação.”

No entanto, Stendhal  e a sua verdade foram “desconhecidos” durante anos! A sua sensibilidade, a sua capacidade de recriar um “mundo”, a “alma sensível” que ele foi, são ignorados.
ilustração da 1ª edição francesa de O Vermelho e o Negro

Ele próprio dizia:
Stendhal, na École Central, por Jay

Penso que dentro de 50 anos algum  literário há-de publicar fragmentos dos meus livros e talvez eles agradem porque sem afectação e talvez porque verdadeiras.”(citado por Claude Roy, op. cit.pg. 60).

E para falar de si ou, como ele escreveu, “noter les sons de mon âme par des pages imprimés, Stendhal usava o “eu” e explicava:

“Não é por egotismo que eu digo “eu” mas sim porque não há outro meio de contar tão depressa."

edição da Relógio d'Água

Falar de Stendhal, é falar de nós”, diz o autor do artigo a que me referi no post anterior, Jerôme Garcin (no Nouvel Observateur de 7-13 Fevereiro). 


Falar...falar...Falar, sempre. No desejo de se descobrir, falando, de se compreender e ser verdadeiro. De se contar. E isso implica uma grande paciência que pode durar uma vida...

Escreve Claude Roy, na página  6 da Introdução:

“Stendhal que, no fim da vida, era capaz de “falar” em cinquenta e dois dias as quinhentas páginas de La Chartreuse, ditadas assim, e sem qualquer alteração".

E acrescenta (pg. 47):

Vêem-se as emoções e as paixões sucederem-se como as imagens de uma lanterna mágica”.
 (...) "Uma página de Stendhal é sempre o resultado de uma montagem, no sentido em que as gentes do cinema usam o termo. É uma sucessão de imagens cujo ângulo de visão (de filmagem) varia continuamente. O próprio romancista se inquieta: a preocupação de ser breve talvez me deite a perder...”

Segundo Claude Roy,  esta técnica do romance nasceu da reflexão sobre os efeitos da prosa no leitor. 

Foi ele o primeiro a formular uma estética da objectividade que vai fazer o seu caminho, no romance posterior.

Confessava no Journal: “existe um modo de emocionar que é mostra os factos, as coisas, sem revelar qual o efeito que causam, que pode ser usada por uma alma sensível (...)” 


 La Vie de Henri Brulard, é a obra confessional por excelência, onde, naturalmente e acima de tudo, procura conhecer-se. 

Onde evoca a sua infância nem sempre feliz, os pais, os estudos, a escola Central de Grenoble. Com os Souvenirs d’Egotisme (obra escrita entre 1835-6 e publicada só em 1890), é a obra autobiográfica mais importante do escritor.

Não pretende uma obra objectiva e imparcial, não se observa friamente a si e aos que povoaram a sua vida, revolta-se muitas vezes contra as injustiças e os sofrimentos que alguns lhe causaram na infância.

Henri Beyle-Stendhal será sempre “o amigo, inspirador de conivências, capaz de cristalizar amizades e suscitar vocações auto biográficas”, como refere Jerôme Garcin, no seu artigo...

Henri Martineau, um dos especialistas e "amantes" de Stendhal, afirma (3):

Talvez seja exagerado dizer que o melhor romance de Stendhal foi a sua vida. Mas a verdade é que, ela testemunha de um ardor, uma variedade e uma fantasia sedutoras.”

Stendhal amava escrever. Era um prazer a “observação dos sons da alma”, era a vida. Escrever foi sempre uma fonte de prazer! 

No fundo, é através da sua obra que conhecemos os “petits faits divers” da sua infância e adolescência.

"Prazer de escrever, de ser lido pelas pessoas de quem gosta – uma espécie de élite de sensibilidade, os “happy fews”. E igualmente prazer porque lhe dava prazer reviver o passado."

Stendhal é uma figura que nunca envelhece. E age e “reage” como um adolescente, com paixão, até ao fim da vida, inventando e reinventando a aventura e os entusiasmos da sua vida. Tem uma juventude no que escreve e no modo como o escreve.

Sonha e ama. Ama Milão, a Itália, a música! As “Crónicas Italianas” testemunharão desse amor profundo.

Matilda Viscontini, um desses amores italianos

Em Milão encontrei  os maiores gostos e os maiores sofrimentos, e isso é que faz a pátria, encontrei ali os primeiros prazeres.”

Sobre a música italiana, diz em carta à irmã, Pauline Beyle, em 1800:


A música agradou-me pela primeira vez, em Novara, alguns dias antes da batalha de Marengo (*). Fui ao teatro; passavam “Il Matrimonio Segreto”. Esta  música, exprimindo o amor,  agradou-me.”

Napoleão empolga-o, admira o seu progressismo e desilude-se por vezes com o Imperador. Escreve um livro sobre a vida do Imperador.

 E vemos nas suas páginas correr a dramática Campanha da Rússia sob as ordens de Napoleão  -  e  “surge” aos meus olhos A Cartuxa de Parma e o desespero e desorientamento do herói, Fabrizio del Dongo.


Gérard Philippe foi Fabrizio, no filme de Christian-Jacques (1948), com a belíssima Maria Casarès

Moscovo em chamas, incendiada pelos russos

A  dolorosa retirada do exército francês, “vejo-a” sempre através das páginas desse maravilhoso romance!

retirada do exército napoleónico

retirada das tropas francesas, vencidas pelo "General Inverno"


Pergunta Jean Prévost, estudioso da obra do romancista (publicação do Centenário de Stendhal).

retrato de Jean Prévost


 “O que nos trouxe este desconhecido? Por que razão mais de trinta sábios do mundo inteiro se interessaram por ele e se dedicaram à sua glória? (...) Disse coisas novas sobre o amor: procurou dentro do seu coração, ajudou a conhecermo-nos melhor. E encontrou um novo modo de escrever.”


Ou, talvez, porque Stendhal pertence  àqueles escritores que refere Claude Roy,  os quais “por uma certa intensidade, uma espécie de densidade da criação romanesca, parecem ser o apanágio dos romancistas –em oposição aos romancistas “profissionais” (...)-,  a que gostaria de chamar “puros”. Os que não obrigam o romance a sair deles, e o deixam amadurecer como o pinheiro, na sua ferida, deixa amadurecer e cair gota a gota (...) a lágrima da resina.” (op. cit. pg. 41)

E penso que pela verdade do que conta, pelo sonho que durante toda a vida perseguiu e escreveu.
selo dedicado a Stendhal


Diz Martineau:

outro autor do "Club", Jacques Laurent

Stendhal sonhava o amor.  Evadia-se no sonho. O sonho (repetiu ele mais de 100 vezes)  foi sem dúvida  o que preferiu ao longo da existência. A ele ficou a dever horas de constante e segura felicidade. Podemos dizer sem receio de sermos inexactos que passou tanto tempo a sonhar a vida como a vivê-la.” (op. cit. pg. 403 ou 6)

Os romances mais famosos são, talvez,O Vermelho e o Negro(1830) e A Cartuxa de Parma(1939) que, com o primeiro romance, Armance(1827) e com As Crónicas Italianas (1839),foram publicados em vida do escritor. 

Journal",La vie d'Henri Brulard e Souvenirs d'Egotisme foram publicados postumamente.

Por isso, mais do que os novos livros que saíram agora, em Paris, o interessante é ler e reler Stendhal.

Toda a obra é digna de uma leitura atenta que, aliás, será sempre um prazer... O mesmo prazer com que ele escreveu!

(*) Nota: 

A Batalha de Marengo realizou-se em 14 de Junho de 1800, durante  chamada Campanha de Itália. Batalha entre  Napoleão e o general austríaco Mellas, no Piemonte. As tropas francesas saíram vencedoras. Stendhal participou nela, como sargento do 6º Regimento de s Dragões das tropas napoleónicas. De facto, Stendhal desde os 16 anos que trabalhava como secretário do seu primo Pierre Daru que era o Ministro a Guerra de Napoleão.

Batalha de Marengo, Maio de 1800, quadro de Louis-Françoies Lejeune


Batalha de Austerlitz (1805), quadro de François Gérard -  ganha por Napoleão contra os "Três Imperadores"

O general Kutuzov, na Batalha de Borodino

* * *


(1) Claude Roy: "Stendhal par lui-même", Editions du Seuil,  colecção “Ecrivains de toujours”

(2) transcrita por Claude Roy, pgs 150-154.

(3) “Le coeur de Stendhal”, Henri Martineau, Albin Michel, 1983, p.129

(4) Jean Prevost: "La création chez Stendhal", Mercure de France, 1951 (com um Prefácio de Henri Martineau)

* *

Haydn “Sonata Eb para piano”, interpretada por Horowitz:



1 comentário:

  1. Uma "lição" interessantíssima!
    Imagino como, tal como a professora de que fala, também a Maria João deve ter influenciado os seus alunos. Os professores podem ajudar fazer a diferença no caminho que leva os alunos a serem ou não bons leitores.

    Um beijinho grande

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