domingo, 31 de maio de 2015

O RATINHO E O OURICINHO ESTÃO DESCONFIADOS!



Estou a pensar que o Ratinho e o Ouricinho estão com medo de que já eu não goste deles, agora que os pombinhos estão na varanda, como se fosse a casa deles, e chamam a minha atenção. E andavam tão contentes nesta Primavera!

Ontem ouvi esta conversa entre os dois:
- E nós já não contamos para nada?, perguntava, preocupado, o Ouricinho ao Ratinho Poeta.
- Sim, tens razão. Nós não somos tão bonitos como eles?

De facto, sem reparar que eles estavam ali perto, tinha dito ao Manuel: 
Que engraçados que são estes pombinhos! Viste os biquinhos? E as brincadeiras que fazem como se fossem dois meninos de verdade…”

Tudo começou com a história que já aqui contei: uma pomba fez o ninho num vaso da varanda. No vaso dos ibiscos amarelos. Por um lado, tive pena porque as flores ressentiram-se por não serem regadas – mas como podia ir molhar a terra do vaso onde a pomba ia pôr os ovos? 
No entanto, como de vez em quando deito um poucochinho de água no lado oposto àqueles onde a família está instalada, rebentaram duas flores magníficas e há uns botõezinhos a quererem nascer.


Pôs um ovinho – lindo, quase transparente e branco - e, poucos dias depois, o segundo ovo - igualmente pequenino e bonito. Fiquei deslumbrada com aquela vida a criar-se mesmo em frente dos meus olhos. 

Nunca tinha acontecido ter pássaros na minha varanda! As flores serviam de biombo para se esconderem e ficavam tão bonitos ká detrás.

Tive andorinhas na casa amarela da minha infância e tive pássaros lindos e coloridos no meu jardim de São Tomé: o truquis sum deçu, passarinho delicado, com uma cauda comprida como uma vara de leque japonês, a tremer, quando voavam. E uns pássaros verdes que faziam o ninho com tiras de palha entrelaçada - num trabalho laborioso e difícil que durava horas. E que baloiçavam suaves, pendurados dos ramos  da goiabeira…
Aqui chegaram os ovos e agora era outra “saga”: chocar os ovos! E lá fiquei na expectativa de ver se dos ovos saíam os pombos-filhos.
E ora vinha a mãe, a pombinha de riscas pretas e brancas nas costas cinzentas ou o pai que tinha o peito verde vivo mas era menos delicado e mais pesado no voo. E sentavam-se tranquilos e as horas passavam e imóvel o pombo “de serviço”.

Nessa altura, chamei os meus amigos para virem ver o espectáculo, mas eles afastaram-se logo, amuados, e fizeram uma reunião com outro passarinho que já cá vive há muito. O que disseram entre eles não sei, mas mantiveram-se afastados da varanda. 
O Ouricinho com o seu ar assustado espreitava às vezes à janela mas muito discretamente. Ou concentra-se a ver um quadro como se não fosse nada com ele.
O Ratinho, orgulhoso, esse isolou-se no quarto do Diogo. Ou vai espreitar as árvores da janela do meu quarto.
E faz yoga


Dei por eles a brincar mais a gatinha japonesa com outros ovos pintados, como se nada lhes interessasse dos ovos da varanda.
Depois de ouvir aquela conversa, tentei mudar a minha atitude e ser mais atenciosa. Claro, ciúmes de meninos que foram muito mimados por mim, mas não quero magoá-los de modo nenhum! 
Comecei a falar dos pombos que tinham nascido e que lutavam para viver, frágeis como eram. E como os pais deles estavam sempre atentos, com medo que alguma gaivota voasse baixo e visse as crias. Quantas vezes as gaivotas roubam os passarinhos recém-nascidos.

Levei-os à varanda, mostrei os ovos e contei-lhes como os pombos não têm casa, nem ninguém que lhes dê de comer e como têm vidas difíceis. 


Mais tarde mostrei-lhes os pombinhos nascidos. Curiosos como são, espreitaram tudo mas depois mostraram-se desinteressados.




 Lembrei-me de uma "short story" de Isaac Bashevis Singer que se chama “Pombos”. É um conto lindíssimo e comovente que vem incluído na colectânea de contos intitulada "Um amigo de Kafka".  



De Singer que era uma 'amador' de pombos e que nunca saía à rua, em Nova Iorque, sem levar uns miolinhos de pão ou sementinhas para os seus amigos pombos que estavam na praça onde ia tomar o seu café. Quando algum polícia o “repreendia”, dava uma volta para entrar pelo outro lado. A verdade é que Singer amava tanto os animais que se tornou vegetariano! 
Segundo ele, "um passarinho, um ser criado por Deus, não pode ser sujo"…
Nem as criaturas de Deus deviam ser comidas.  Nem batidas, nem violentadas. Nem maltratadas e humilhadas. Ah, mas isso já é outro discurso...
E, então,  decidi contar-lhes a história de PombosFala de um velho professor que, depois da morte da mulher, se reforma. Como companhia arranja uma série de passarinhos desde canarinhos a papagaios e tantas outras aves pequenas.  Abria-lhes as gaiolas e deixava-os voar soltos, livres, por entre os livros da biblioteca. E eles poisavam-lhe na mão quando escrevia, ou na haste dos óculos e isso não o incomodava.
Um dia o professor morre (não vos posso contar a história toda! Mas ao Ratinho e ao Ouricinho contei) e qual não é o espanto dos que seguem o seu enterro? Um bando de pombos de várias cores voa por cima – exactamente por cima – dele. Acompanham-no até ao cemitério e desaparecem no ar que, de repente, ficou cinzento.

Acho que eles gostaram do conto de Singer e penso que vão olhar os pombinhos de outra maneira.

Eu gosto tanto deles! Como podem desconfiar da minha amizade!?
Claro, ciúmes de meninos é o pior que há na vida!


(*) Bashevis Singer nasceu em 1902, em Leoncin perto de Varsóvia. Não se sabe exactamente em que dia porque há duas versões... Poucos anos depois, a família move-se para Radzymin. Morre em Miami em 24 de Julho de 1991. Em 1978, recebeu o Prémio Nobel de Literatura.






quinta-feira, 28 de maio de 2015

Billie Holiday e o álbum 'Lady In Satin' (The Centennial Edition) - You Don't Know W...

Ainda no ano do centenário de Billie Holiday, nova edição de 'Lady in Satin'...

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segunda-feira, 25 de maio de 2015

HENRY JAMES E "CALAFRIO" : LITERATURA GÓTICA? LITERATURA!

edição americana, pintura de John Sargent

John Singer Sargent, The Vickers Children

Falar de Henry James é importante. Lê-se ainda este escritor? Muito menos do que se deveria. Insisto nos romancistas ingleses porque –para mim- são os melhores.
Henry James, por Jacques-Emile Blanche

Henry James, por John Singer Sargent

Quando, em 1949, Gaspar Simões (1903-1983), na revista “presença” (1) fala dele para os leitores que o não conhecem, limita-se a reconhecer um grande escritor clássico da literatura mundial. 
0s tempos da "presença": Régio e logo atrás Gaspar Simões

Gaspar Simões fala sempre com uma lucidez e um grande sentido do que é a admiração, a afinidade electiva, que o levou a outros romancistas ingleses. 

Aliás, é ele quem traduz em português a terrível novela de James,“The Turn of the screw” – intitulado “Calafrio” (Portugália Editora, colecção ‘O livro de bolso’, com uma capa muito feliz de Câmara Leme), na primeira edição portuguesa. Hoje existem novas edições, com outras traduções -que se sucederam nos últimos anos

Livro terrível, assustador e “envoûtant” (mágico, fascinante, que causa um "encantamento"), livro que se lê de um fôlego porque a atmosfera, o ritmo, a atracção criada em torno da trama são fortísssimos.

Há quem o considere um “romance gótico” o que não quer dizer nada de especial, a não ser que "fala de assuntos que misturam ficção e horror." Como também a sua novela "Jolly Corner" será uma "história de fantasmas".
O termo de Literatura Gótica aparece em Inglaterra a propósito da literatura que combina o horror, a ficção e o Romantismo. 
Gótico, de Edgar Alan Poe

Atribui-se a sua origem ao escritor Horace Walpole e à sua novela The Castle of Otranto (1764) subtitulada- Uma história gótica
Como "góticas" foram consideradas certas histórias de E. Alan Poe, ou A Dama de Espadas de Alexander Pushkin, ou Oscar Wilde (O Retrato de Dorian Gray) ou Karen Blixen (Contos Góticos).

Puschkin e Dama de Espadas

Retrato de Dorian Gray, na Lippincott's

História de fantasmas (Ghost stories)? Mas o livro de Henry James é muito mais do que isso. É o calafrio que, desde o início, nos prende e assusta -para não dizer “aterroriza” - ao sentir a dúvida e a incerteza sobre a realidade dos factos. A tradução à letra referiria o "apertar do parafuso" que se gira infinitamente... E o que pode causar faz calafrios!
Nas primeiras páginas, muitas são as palavras que designam “medo” ou “terror”: scared, dread, dreadful, fear, afraid… palavras que traduzem medo são repetidas, frequentemente.
Caspar David Friederich
Uma história de mundos ocultos? De posse? Sobre pessoas possessas? E fantasmas perversos que vêm da morte perturbar os vivos? 
Ou, apenas, a infindável e angustiante alucinação de uma jovem preceptora que se vê metida numa "realidade" irreal, que não domina e que lhe escapa? 
John Singer Sargent, "Conrad e Reine Hamond"
(a preceptora ao pé do lago?) John Singer Sargent, The Brook, 1903

A professora-narradora (que imagino pintada por John Sargent) apercebe-se de uma relação extra-sensorial dos seus pupilos Miles e Flora com alguém -desconhecido para ela- que quer “levá-los”. 
Quem são? Um criado do "tutor" e a antiga preceptora das crianças, Miss Jessel.
John Singer Sargent: assim imagino Miss Jessel 


Ambos mortos no ano anterior sem se conhecer bem as causas. E que, segundo a boa cozinheira, Mrs Groves, "privavam demasiado com as crianças". 
Lamb House, onde se "passa" a história

O ambiente é o dos poemas românticos, onde os personagens evoluem dentro de uma natureza bela que possa ser uma companhia.
H. James, desenho de John Sargent (1913)

o parque de Lamb House

Nessa natureza (que me lembra a  de Caspar David Friederich), as crianças jogam - diante da governante-preceptora- um jogo perigoso. Um dia esta aperecebe-se que, nas suas brincadeiras, nos teatros, nas poesias que declamam, elas fingem a vida e tentam comunicar com os mortos? Como saber mais? E como impedi-lo? 
Caspar David Friederich, Chalk Cillfs on Rugen

No cenário de sonho, duma casa-castelo encantada, com lagos e parques e salas e torres, é o mistério e o enigma que se abrem na nossa frente, nesses locais assombrados. Porque a vida e a morte se tocam e não querem separar-se. 
Lago, do  americano Henry Twatchman

Até que ponto entendemos a história? Até que ponto as coisas são o que pensámos? Vamos continuando, sem respirar quase, atrás dos acontecimentos e das interrogações – daquilo que se  do que se entrevê, através dos olhos da narradora, do que não se vê e queremos adivinhar
Até ao fim, restam muitas dúvidas. As últimas páginas são intensíssimas, cada palavra pode ser isto ou aquilo. O que vai acontecer à pequena Flora e ao menino Miles?
John Sargent
John Sargent

Será que a preceptora teve razão em agir assim? Ou teria sido melhor não ter feito nada? Quando "despossuídos", o que acontecerá?


Houve, ao longo dos tempos, múltiplas interpretações desta “realidade” contada por James. Pouco importa, cada um tem a sua ideia, porque, quando o escritor acaba a obra, ela passa a pertencer ao leitor...

Cada página é um desafio ao nosso entendimento, ao equilíbrio mental e, até, ao sentido da realidade de cada um, e ao seu senso comum.
Há mais mundos? Claro que há, já o dizia José Régio. E há mundos em que o mal predomina? Pelo que se lê, no livro de James, também há.

E existe o prazer do mal (malvado, perverso: o “evil”, palavra cujas "nuances" são tão difíceis de traduzir em português), o prazer de perverter a inocência? 

A jovem governanta tenta proteger os seus pequenos educandos, vidas inocentes e preciosas: “innocent  precious lives” (p.32) E, sem saber como melhor fazê-lo, dedica a sua vida a tentar “salvá-los”: uma missão quase impossível, quando o instinto de "posse" vem de outros mundos…
O relato que a narradora escreve, ao recordar toda  a história, é uma tentativa de explicação do inexplicável, do “inominável” e da missão que ela assumiu: salvar e defender aquelas alminhas contra o perigo forças das trevas. Ser um écran, um biombo protector, na frente deles
John Singer Sargent, ("Little Flora"?) Laurence Millet, 1887

I was there to protect and defend the little creatures - in the world the most bereaved and the most loveable in their helplessness (…) we were together; we were united in danger. They had nothing but me, and I –well, I had them, I was a screen – I was to stand before them.” (p.33-34)
Zinaida Serebriakova, Janela

Na bela janela de grandes vidraças, um dia "vê" uma pessoa estranha à casa. Procura no jardim e não encontra ninguém.  Começa a falar das “aparições” que se sucedem. Visões suas, apenas? Imaginação? Quem mais as suas visões? As crianças "vêem" o que ela vê? 
John Sargent, (o pequeno Miles?) Lancelot-Allen, 1897

Um dia, outra vez da mesma janela,  vê o pequeno Miles a olhar para uma das torres. Quando sai, a mesma personagem, que vira dias antes e a assustar, está no alto da torre, imóvel. Miles finge que não está a ver nada. 
O equilíbrio emocional da jovem é abalado e o medo invade-a, não por ela mas por essas criaturas preciosas que ama. Quando elas a abraçam, acredita que são anjos. Mas serão?
Zinaida Serebriakova, Auto-retrato com crianças

John Sargent, Tempestade

My heart had stood for na instant with the wonder and terror of the question whether she too would see.”
 Paula Rego: perverter a inocência?


Teria Flora “visto” o que ela viu? Mas como era possível que permanecesse calma, indiferente, como se nada tivesse acontecido? E, se  vira, porque fingira que não vira?
O drama desenrola-se e sentimos como nossa a ansiedade da que é a responsável única pelas crianças (porque o tutor delas, no seu enorme egoísmo, assim o quisera e fora essa a condição por que a aceitara) e desespera-se, no terror de as não poder salvar.
John Sargent, Gordon Fairchild 


E, seguindo Henry James, perdemo-nos indo atrás do sentido do "indizível".  Onde os mortos querem voltar à vida para buscar os vivos que amaram.

É o artista quem nos conduz. "O artista esse monstro esquisito, na sua caminhada obstinada e na sua sensibildade incansável", como ele diz (citado por R.W.B. Lewis na Introdução à edição americana de Bantam Books, 1981). 
Rye, no Sussex

James fala da sua experiência, sempre. Neste caso, é a recordação de uma estadia numa casa maravilhosa, a Lamb House, no Rye, Sussex, onde sente a beleza, o repouso e o prazer enorme do local e, simultaneamente, quase incompreensivelmente, o medo dos lugares. Vive ali entre 1897 e 1916.
Lamb House, onde Henry James viveu 

Dessa estadia vai sair a novela que se "passa" - alterando os nomes- em Bly (em vez de Rye), no Essex (e, não, no Sussex), que se transforma num lugar assustador. Termina o livro em Dezembro de 1897.


(1) Henry James nasce em Nova Iorque em 15 de Abril de 1843. Era irmão do médico, psicólogo e filósofo, William James e de Alice James, diarista e epistológrafa, personalidade psicótica que morre muito cedo com um cancro do seio. 
William James (1842-1910)
Alice James (1848-1892)

Henry estudou em Harvard. Depois veio para a Europa, e continuou os estudo em Inglaterra, França e Suíça. Por volta de 1869, acaba por fixar residência em Inglaterra, no Rye. Vive na Lamb House,  no Sussex, de 1897 a 1916.

Em 1915, obtém a nacionalidade britânica. Morre em 28 de Fevereiro de 1916.
Nomeado para o Prémio Nobel de Literatura em 1911, 1912 e 1916.
John Singer Sargent (1856-1925), Auto-retrato

(2) João Gaspar Simões, um dos fundadores da revista "presença", foi também romancista (Elói ou romance numa cabeça, 1932, Pântano 1940, Amigos Sinceros 1941),  crítico literário, tradutor de Dostoievsky, Tolstoi, George Eliot e Jane Austen.