domingo, 23 de outubro de 2016

Vitorino-Vou-me embora, vou partir...

Vou partir, sim!
"Vou-me embora para Pasárgada
Lá sou amigo do Rei."
Bem, não sou amiga do rei, nem vou para Pasárgada como canta o poema de Manuel Bandeira. Mas há sempre coisas boas a descobrir. Diz ele:
“E como farei ginástica
andarei de bicicleta
montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos do mar!
E quando estiver cansado
deito na beira do rio
mando chamar a mãe-de-água
pra me contar histórias…”
Também não vai haver nada disto...mas tem de haver muita coisa, claro! Deixei os amigos tristes, em casa. Eles não vão desta vez... 
E lá vou eu! "Vou-me embora, vou partir!" Até breve!

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Os Viajantes involuntários - ou a lenda de Butch Cassidy...



Ao sabor do tempo, neste blog, vou saltando de assunto para assunto porque a nada sou obrigada. Quem gosta, lê… Quem não gosta, não venha ler.
Fixo-me hoje na figura do 'fora de lei'  Butch Cassidy. 
E recordo uma frase que Bruce Chatwin  lhe dedica no seu livro “Na Patagónia” (*).
Bruce Chatwin escreveu um livro muito interessante de que já falei aqui. Livro cuja leitura me foi aconselhada pela grande amiga, Luciana Stegagno-Picchio, sabedora de literatura, lusitanista e mulher de cultura
Falava-me de Chatwin às vezes! Conhecia a minha vida de viajante e dizia-me sempre: “Tens que escrever o livro das tuas viagens!” Talvez um dia o escreva, quem sabe?

O livro de Bruce Chatwin anda também ao sabor do tempo, contando coisas variadíssimas de uma viagem à Patagónia longínqua. Onde, paulatinamente (como diziam os meus amigos são-tomenses), pára quando quer, apanha os meios de transporte que aparecem, sem pressa, numa viagem de conhecimento do mundo diferente. Em errância, como diz. 
Por vezes segue a pé, de saco às costas, ou vai montado num burro ou (com sorte!) num cavalo, à procura dum mundo que existiu no seu modo particular e que hoje parece perdido! 
Encontra gentes solitárias, vê terras selvagens, procura o sentido de uma vida que hoje aparentemente o não tem, nem tinha já- no  tempo  em que ele realiza a viagem.
Escrevia, pois, Bruce Chatwin, sobre Butch Cassidy, o que se segue:
Espírito imparcial, de lealdade selectiva, sonhava ser cow-boy e seguia a epopeia de Jesse James nos fascículos de cordel.” (Na Patagónia, pg 69)
Perdoem o à parte: quem não recorda com saudade esses heróis do oeste selvagem? Jesse James, Billy the Kid e Butch Cassidy? Quem não se sentia mais puxado para o lado deles? 
Eu, pelo menos, fascinava-me bem mais o lado deles do que o lado do sheriff Pat Garrett! Ou o da terrível Agência Pinkerton!

 Eu preferi-os tantas vezes! Rebelde, Sentia-me solidária com os bandidos fora da lei, sem deus-nem-dono, como cantava Léo Ferré ('Ni Dieu, ni Maître'). Solidária do que me parecia ser um ideal de liberdade e de justiça (seria?) que se afastava –ou estava acima? - da lei vigente… 
Qual a justiça, nessa lei?
Há tempos encontrei na internet, na biografia de Sundance Kid - que vai ser o amigo inseparável de Butch- uma frase do próprio, 'qualificando-se': “Sundance Kid, profissão: fora de lei”. Adorei o seu sentido do humor!
Bem, mas voltando ao que conta Chatwin:
Butch (…) aos 18 anos pensava que os seus inimigos naturais eram os grandes rancheiros de gado, o caminho de ferro e os bancos, dizendo a si mesmo que o direito se encontrava do lado errado da lei”. (idem, pg. 69)

Nascera em Beaver, no Utah, a 13 de Abril de 1866. Chamava-se Robert LeRoy Parker e os pais tinham vindo de Inglaterra, ainda crianças, e chegaram ao Oeste numa caravana de Mormões. 
A mãe era de ascendência escocesa. Foram sempre pobres, muito pobres, e tinham 11 filhos. Talvez por isso Butch tenha abandonado a casa e tenha largado o trabalho em que se esfalfava a trabalhar para os outros por uma paga de miséria.  E, por isso mesmo,  numa bela manhã, do ano de 1884, tenha decidido partir!

Esta sua partida coincidiu com a época dourada dos ricos ranchos (…) dos ‘cow-boys’ a viver uma vida de privações; dos barões do gado que pagavam salários miseráveis e tiravam dividendos da ordem dos 40% para os accionistas; (…) dos pequenos almoços com champagne no ‘Cheyenne Club’. (in Patagónia, pg.70)"

As privações vão-no empurrando para a frente. Assim, nessa bela manhã de Junho, anuncia à mãe que vai trabalhar para as minas de  Telluride,  despede-se dela e da irmã bébé - e lá se foi!
E sumiu de suas vidas, a cavalo”, conclui Chatwin. Nessa noite, o pai conta, desolado, que ele fugira depois de ter roubado umas cabeças de gado a um rancheiro!
É a partir daí que se vai chamar Butch Cassidy e vai ser procurado pela polícia. E torna-se numa lenda!
Os tempos correm e tudo muda. E chega o Grande Inverno de 1886-1887 que mata mais de três quartos do gado daquela zona.

A avidez, ligada à catástrofe natural, vai dar origem a outro tipo de ‘cow-boy’ marginal, o dos homens reduzidos à clandestinidade e ao roubo de gado, devido ao desemprego. (…) E à fome.

Pelo Oeste esses “desesperados” profissionais criam quadrilhas de ladrões de gado, de assaltantes de bancos. Porque a verdade é que nada têm a perder! Butch Cassidy vai ser um deles.

Durante aqueles anos, foi vaqueiro, domador de cavalos selvagens, marcador de gado, assaltante de bancos a meio tempo, mas era como chefe de quadrilha que os xerifes das redondezas o temiam”.
Em 1894, é preso, acusado de roubar um cavalo que não tinha roubado e que no máximo valeria uns 5$. Um pretexto, no fim e ao cabo. E passa dois anos na penitenciária de Wyoming.

Em 2 de Junho de 1899 a quadrilha roubou o Union Pacific Overland Flyer perto de Wilcox, Wyoming, um roubo que ficou famoso e que resultou numa enorme caça ao homem. Muitos homens da lei notáveis da época participaram na perseguição aos ladrões mas não os conseguiram apanhar.

"A pena e a prisão injusta azedaram ainda mais as suas relações com a lei e, de 1896 a 1901, o seu Sindicato de Ladrões de Comboios (sic), mais conhecido pela Wild Bunch (Quadrilha Selvagem), cometeu uma série de assaltos executados na perfeição”(wikipedia).

É aí que entra na corrida a Agência de Detectives Pinkerton, com a sua divisa "nunca estamos a dormir"
A verdade é que Butch Cassidy era adorado pelos fazendeiros pobres e era capaz de pagar a renda de uma pobre viúva - depois de ter roubado o cobrador das rendas. Paradoxos dos que procuram a justiça na vida… 
E diga-se a verdade: Butch Cassidy nunca matou ninguém. E sentia remorsos quando pensava nos mortos que a quadrilha ia matando.

Mas até esses belos tempos do “Wild Bunch” passaram. As fronteiras são mais seguras, os cavalos da polícia mais velozes. A Agência Pinkerton (**) põe a polícia montada dentro dos vagões de gado. Muitos filmes se fizeram sobre essas vivências! 

Lembro o de Sam Peckinpah, “Wild Bunch”, de 1969, e, mais tarde, "Pat Garrett e Billy the Kid" (1973),  filmes de grande violência. 
Muitos foragidos são mortos. Outros preferem esconder-se nas cidades. Alguns amigos de Butch morrem em brigas nos saloons, abatidos por pistoleiros profissionais que “vigiam” o jogo. Ou são metidos detrás das grades.Outros, ainda, alistam-se no exército dos Usa...
O que resta a Butch? Cumprir uma longa pena de prisão que o espera ou fugir para a Argentina? O destino vai decidir por ele...
George Roy Hill: 'Butch Cassidy e Sundance Kid’ (1969)
Em 1901, em Nova Iorque,  encontra Sundance Kid e a namorada, Etta Place. O trio especializa-se em outro tipo de assaltos e depois decidem fugir para a Argentina! A escolha estava feita!
 Soundance Kid e Etta Place (1900)

E vão continuando pela América do Sul, praticando assaltos não só na Argentina, como na Bolívia, Peru e Chile. A presença dos três é confirmada nesses lugares entre 1902 e 1907.
Diz-se que Butch morre na Bolívia, em San Vicente, a 7 de Novembro de 1908, morto pelo exército boliviano - mas a verdade nunca se soube.
 Filmes sobre esta figura lendária:
1969, ‘Butch Cassidy e Sundance Kid’, de George Roy Hill com Robert Redford e Paul Newman;
1979, ‘Butch e Sundance Kid: os tempos da juventude’, de Richard Lester, com Tom Berenger;
2011, “Blackthorn” (Os Implacáveis), do realizador espanhol Mateo Gil, com Sam Shepard, filmado na Bolívia, em que Butch Cassidy é perseguido até à fronteira gelada pelos homens do sheriff, implacável.
(*) O livro "Na Patagónia" foi publicado em 2004 pela 'Quetzal', na colecção Serpente Emplumada.

(**) "A maior parte dos contratos da 'Agência Pinkerton' girava em torno de evitar que grevistas (principalmente líderes sindicais) ocupassem ou se aproximassem das fábricas em que trabalhavam. Fundada por Allan Pinkerton.

O incidente mais famoso da agência nessa área de actuação foi o da greve de Homestead de 1892, quando centenas de agentes da Pinkerton forçaram violentamente o fim de uma greve, matando nove pessoas." (wikipedia).


quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Saudades de Vinícius de Moraes

Faz hoje muitos anos que nasceu Vinicius de Moraes o grande poeta do Brasil que cantou, tocou, bebeu, viveu …e depois um dia morreu! 

Nunca esquecido, no entanto! Nasce em 19 de Outubro de 1903 no Rio de Janeiro. Foi um poeta e um compositor. Publicou dezenas de livros da mais bela poesia de amor. Escreveu a peça "Orfeu da Conceição" (1956) que iria ser o filme "Orfeu Negro", com uma das mais belas bandas sonoras do mundo ! 
E o poema:
"Manhã tão bonita manhã
Dum dia feliz que chegou
O sol no céu sorriu...
E em cada cor brilhou..."

Filme franco-brasileiro, realizado por Marcel Camus, em 1959. Com música de António Carlos Jobim e letra de Vinicius de Moraes(1956).

Em 1929, inicia o Curso de Direito que termina em 1933. Em 1938 recebe uma bolsa de estudo e vai para Londres, onde estuda Inglês e Literatura na Universidade de Oxford. Trabalha na BBC até 1939.  
O sucesso musical começa com a canção “Garota de Ipanema”, feita em parceria com Carlos Jobim. 
Dizem que é um “hino” da música popular do Brasil! Vinicius foi também diplomata e dramaturgo. Canta e toca com outros grandes da canção brasileira! Toquinho é um dos 'alunos' dele.
Esteve em Itália. Aquando da ditadura dos coronéis, ele, conselheiro cultural em Roma decide ficar por lá. Volta para o Rio muito mais tarde, nos anos 60. 

Morreu em 9 de Julho de 1980, no Rio, em consequência de uma isquemia cerebral.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Amos Oz: Os livros esses amigos!



Hiroshige, Crisântemo 

Há instantes difíceis em que a ausência dos que se foram nos pesa - sobretudo se esse alguém foi importante na nossa vida e marcou a nossa infância. Ficamos atordoados e temos a sensação de que o tempo passou depressa de mais. E que é tarde para tanta coisa! 

meio da beleza que nos rodeia, efémera também, essa ausência deixa-nos tristes e perplexos. E pensamos que, agora, estamos nós na linha da frente. E que não temos a protecção deles. Cabe-nos a nós a tarefa de proteger outros. De ser o ponto de referência, o 'marco' de que falava José Régio, na sua "Carta a um Juvenil Individualista" (*)
Berthe Morisot, Menina com pássaro

Senti necessidade de reencontrar a paz interior. Voltei aos livros, abandonados na mesa de cabeceira, porque não há como um livro para nos inspirar tranquilidade. E, simultaneamente, dar-nos uma certa paz e aceitação. Nada é para sempre, nada é verdadeiramente nosso, a não ser a paz interior e a frescura do ar, escreveu Kobayashi Issa.  

“Nada me pertence –
Só a paz interior
E a frescura do ar”
Passemos aos livros. Retomei a leitura de “Uma história de Amor e Trevas”, de Amos Oz, que vou lendo devagarinho. Tem mais de 800 páginas! Abri-o, ao acaso, nas páginas em que recorda a mãe, que se chamava Fania. Lembra a sua morte que o deixa abalado até ao âmago. Uma dor sem explicação, uma morte sem absolvição, porque ele não perdoa à mãe tê-lo abandonado, suicidando-se com 39 anos e deixando-o, sozinho, no principiar da vida. 
Tinha doze anos e meio. Sofre e rebela-se. Revolta-se contra o mundo: porque a nossa dor é como se fosse culpa do mundo inteiro! 
E o jovem Amos não entende por que lhe foi dada essa dor. Pensa na mãe com raiva, sem perdão. Não consegue desculpar esse abandono!

"No decorrer das semanas e meses que seguiram a sua morte, não pensei nem um momento no sofrimento dela. Tapei os ouvidos para não ouvir o grito de desespero silencioso que sucedera a essa morte e que soava na casa toda. (...) Sentia apenas humilhação e cólera. (...) Não lhe perdoava ter-se ido embora sem uma palavra de adeus, sem um beijo, sem uma explicação."
Mais tarde, depois da publicação do livros "Jusqu'à la Mort", a melhor amiga da mãe, Lilenka,  escreve-lhe: "Sinto-me o último dos Mohicanos agora que os meus amigos se foram. Gostava de falar da tua mãe. Um dia será..." 
Lilenka relembra, brevemente, essa amizade enorme -que vinha de Rovno, a pequena cidade da Polónia onde tinham crescido, no seu mundo de judeus, da escola  hebraica, a Tarbout, antes do cataclismo que os obrigou a irem para Israel. 
A mãe, Fania Mussman, é a última a partir. Primeiro seguem os pais, depois as irmãs, Sonia e Haïa.  Tinham estudado todas em Praga porque a Polónia se tornara  demasiado perigosa para os judeus. Acabado o curso, partiram para não voltar mais.
Há muito tempo que os judeus de Rovno se sentiam inseguros, como sobre um vulcão prestes a explodir. 
Reuven Rubin, Concerto com vista
Procuraram o lugar onde estariam a salvo mas em que muitos não encontraram o sonho que esperavam. "Essa aspiração ou desejo de alguma coisa que não pertence a este mundo".
Nem a paz de espírito. Nem a frescura do ar. Jerusalém era uma cidade agreste dura, gelada de Inverno, escaldante de Verão, uma cidade pobre. 
Reuven Rubin, Jerusalém

O resto da família de Fania, foi trucidada, nos anos 43-44, pelos nazis, secundados por Ucranianos e Lituanos, sob a indiferença dos Polacos. Como desapareceram muitos, por parte da família do pai, os Klauzner, entre os quais o irmão mais velho com a mulher e um filho de 3 anos.

"Testemunhas e vítimas do ódio crescente que lhes votavam os vizinhos polacos, ucranianos e alemães e que se exprimia pelo anti-semitismo católico e ortodoxo." (pg.318)

Nesse ano 1943-44, 25.000 almas, jovens, mulheres, velhos e crianças foram conduzidas à floresta de Sosenki onde a mãe e as amigas costumavam passear, no Verão. 
Escreve Amos Oz (pg. 366): "entre os ramos, os pássaros, os cogumelos, as groselhas dos arbustos e as bagas, os Alemães e comparsas, em dois dias apenas, fuzilaram-nos, ao lado das fossas já cavadas."
"A tua mãe vinha de uma família destruída e destruiu a vossa", escrevia Lilenka, tentando explicar o inexplicável, o suicídio de Fania. 
Todos mortos: os condiscípulos da mãe e das suas irmãs, os professores da escola, o director por quem as meninas se apaixonavam, o professor distraído, a professora de ginástica, o professor de pintura, até os idiotas lá da terra. 

"Os ricos, os proletários, os religiosos, os assimilados, os baptizados, os tesoureiros, (...) os aguadeiros, os comunistas e os sionistas, os intelectuais, os artistas e os idiotas e quatro mil crianças." (pg.366).
"Toda a gente", diz Oz.
Mais tarde, o escritor interrogar-se-à sobre a melancolia do olhar da mãe. "Havia como um fino véu de tristeza sonhadora nela. Emoções secretas e sofrimentos românticos, nessas meninas de boa família de Rovna." (...) Alguma coisa nesse ensino do liceu desses anos 20 uma espécie de musgo romântico enchera a alma da minha mãe e dessas amigas, havia na sua juventude uma bruma afectiva muito densa, russo-polaca, a meio caminho entre Chopin e Mickiewicz. 

Entre o sofrimento do jovem 'Werther' e de Byron, algo de crepuscular entre o sublime, o tormento, o sonho e a solidão dos pirilampos enganadores e das aspirações e do desejo que obcecaram a minha mãe praticamente toda a vida e a seduziram até ao momento em que, presa na armadilha, se suicida, em 1952."

A relação com o pai -muito tímido sem capacidade de mostrar a afectividade- era diferente, afastada. Não conseguem entender-se, na dor enorme,  fechados um ao outro, cada um no seu sofrimento. Vivem isolados do resto do mundo, e da família também, sem receber ninguém, durante quase uma ano. Aos 13 anos, Amos Oz quer ir viver e estudar para o 'kibbutz' de Houlda. 
"Foi nessa altura que me pus a pensar um pouco nela. À noite, depois das aulas, do trabalho e do duche (...) eu ficava sozinho e ia-me abrigar num banco de madeira da sala de aula. (...) E cada pormenor dos últimos tempos me passava frente aos olhos."

Lembra uma passagem, tirada do conto de S. Y. Agnon, 'À fleur de l'âge', escritor que ele conheceu, na infância e juventude em Jerusalém,  e que admira profundamente. Escreveu Agnon:
"A minha mãe morreu na flor da idade. Com trinta e uma nos de uma vida amarga e efémera. Passava os dias fechada. Não saía, não via as amigas. Não queria. (...) A nossa casa triste e silenciosa não se abria para ninguém. A minha mãe deitada, pouco falava. Mas quando à mínima palavra para mim era como se asas imaculadas se abrissem e me levassem para as esferas celestes."

Sente companhia nesta dor semelhante à sua. Imagina a mãe de outro modo, vítima da vida que lhe caíra em sorte: desadaptada ao clima duro, ao calor e ao gelo, à pobreza dos judeus askhenazitas de Jerusalém. 
Vê-a, agora, numa "aura de solidão e de melancolia que flutuam, em redor dos aristocratas introvertidos, nas peças de Tchekhov ou nos contos de Gnessin." 
A páginas 459, fala do amor pelos livros, desde rapazinho, e das conversas que tinha com a mãe e como ela o levou a amá-los. Todas as noites inventava uma historia para ele, de duendes, fadas, feiticeiras. Na noite seguinte, tinha de ser ele a inventar uma história para contar à mãe. 
“Tinha eu sete ou oito anos - (…) a minha mãe disse-me que, com o passar do tempo, os livros podiam mudar -pelo menos tanto como mudam os seres humanos- com esta diferença que as pessoas deixam-te mais cedo ou mais tarde, basta que não encontrem já em ti algum proveito, ou prazer, ou interesse, ou sentimento, enquanto que os livros nunca te abandonam. Podes esquecê-los muitas vezes, ou pô-los de parte durante longos anos, ou para sempre. Mas mesmo que os tenhas atraiçoado, eles nunca te pregarão nenhuma partida: vão esperar, silenciosamente, humildemente, na prateleira. Dezenas de anos mesmo. Sem uma queixa. E, de repente, na noite, sentirás um desejo enorme de procurar um livro – um livro que puseste de parte ou que praticamente se apagou da tua memória muitos anos antes. Mesmo assim, ele não te desiludirá, descerá do seu poleiro para te fazer companhia quando precisares. Sem reserva, sem procurar pretextos, sem se perguntar se vale a pena, se tu o mereces. Responderá imediatamente ao teu apelo. Nunca te abandonará.”
A mãe explica-lhe como os livros podem ser os nossos grandes amigos. Os mais fiéis! Como não  assinalar o pessimismo destas palavras de Fania Mussman... 

Para escrever as suas histórias simples, sobre "aquilo que está à nossa volta”, da banalidade dos dias e das pessoas (in)vulgares que, no entanto, encheram o nosso passado, e acompanham o nosso presente, 'ajudou-o' o escritor americano, Sherwood Anderson (*): "Winesburg, Ohio" cuja tradução Oz lê em 1959. 
Sherwood Anderson

Quantas vezes  li e reli esse livro! Chama-se "Cidade dos Estranhos", na velha edição da colecção Miniatura, e tinha uma capa de Bernardo Marques. Hoje, existe uma nova edição, intitulada Winesburg, Ohio (saída em 2010, nas edições Ahab, com uma nova tradução).

Porque o escritor não tem de descobrir assuntos sublimes! Tem de ser original, de falar do que viveu e sentiu, de um modo pessoal, do que lhe for mais próprio. Influencia-o, pois, na escolha de assuntos  simples da vida, do passado, da família, dos sítios onde nada acontece e onde tudo aconteceu! 
Dizia Amos Oz: “O mundo escrito…anda sempre à volta da mão que o escreve, onde quer que aconteça o que ele escrever: onde tu estiveres, é o centro do mundo.” Histórias de amor e trevas
Uma história de amor e trevas, 
filme de Natalie Portman

Passe-se a história -seja ela qual for!- em  Winesburg, no Ohio ou Telavive, esteja o escritor onde estiver, o centro do mundo é ele e o que vai escrever!
Assim, eis-me a abrir outra vez o livro que deixei inacabado, muitos meses atrás. E a descobrir novas coisas. Como acontece sempre com os livros.

"Os outros deixam-te, mais cedo ou mais tarde, basta que não encontrem já em ti algum proveito, ou prazer, ou interesse, ou sentimento, enquanto que os livros nunca te abandonam."


(*) José Régio, Lição inútil ou carta a um Juvenil Individualista, “presença”, nº 14/15, de 23 de Junho de 1928