terça-feira, 25 de maio de 2021

AGUSTINA BESSA-LUÍS E “O LIVRO DE AGUSTINA”

O que dizer deste livro tão pequeno que se lê sem parar até à ultima página? Descobri-o num dos e raros momentos em que me concentro na arrumação dos livros aqui por casa.

O tempo voa e este livro marcava a comemoração dos 85 anos de vida da escritora. Agustina Bessa-Luís (1) é uma escritora que aprecio muito e confesso que bem desejaria que tivesse sido dela o nosso Prémio Nobel.

Li muitos livros da autora. Saíam continuamente e recordo que os primeiros os li à medida que apareciam. Depois de "A Sibila" e de “Os Incuráveis” comecei, porém, a “saltar” um ou outro, e a lê-la apenas irregularmente. 

A sua capacidade e velocidade de escrita e o modo algo “barroco” da linguagem de alguns livros tornou cansativa a sua leitura. Reconheço que sempre com páginas magistrais e momentos de luz e de beleza musical inesquecíveis.

Depois de uma entrevista com Agustina, na sua casa do Porto, em 1988,  o jornalista “Monde des livres", Patrick Kéchichian, confessa que partira com a impressão de ter encontrado uma romancista que “cultiva tranquilamente o paradoxo, entre conservadorismo e não conformismo.”(2)

Leio hoje "O Livro de Agustina" (3). E neste livro onde está a Agustina barroca, dos sentidos paradoxais, dos enredos da língua, do 'encavalgamento' dos sentidos - que exigem tanto tempo de concentração? 

O livro flui como um ribeirinho que corre direito e tranquilo. Pode por vezes virar atrás, numa curva suave, para lembrar algo esquecido - sempre num ritmo simples e num estilo claro e essencial. Interessou-me, prendeu-me logo. A família é descrita com traços simples por vezes duros: 

O “Avô Teixeira”, avô paterno, a quem chama com alguma ternura “o perdulário valente”; o pai “Brasileiro e torna-viagem”, dono de casinos no Brasil e no Porto, e aqui sentimos a  emoção velada quando relembra esta figura; o “Tio do Mato”, de pele muito branca, loiro de ascendência inglesa, republicano ferrenho.

E da parte da mãe, os avós maternos, “gente do Douro” - o avô Lourenço que se definia como “cheminot” e era republicano;  a Mãe – a mãe, orgulhosa e fria, de mau génio - que a amava “sem demonstrações afectivas”. E a mãe e a “educação” feroz que começa com a “disciplina das emoções”.

Gostei do que li, do que me foi permitido vislumbrar sobre aquelas figuras. Gostei da menina independente, curiosa de tudo, que com o olhar abrangia o mar e a terra, as pessoas e tudo queria entender. E depois se fechava consigo a reflectir.

Clareza, sentido do humor, observação fina e rápida. E a menina passa pela vida, cresce, absorve o que a rodeia e depois isola-se para escrever o que viu e sentiu.

E não posso deixar de relembrar como a vi eu um dia entrar na minha casa em Roma, com o ar mais natural do mundo apesar de nunca me ter visto (ela conhecia bem o Manuel) e começar a falar como se me conhecesse desde sempre.

O meu cão Zac fez como ela, saltou-lhe para o colo como se a tivesse conhecido desde sempre e ela gostou dele. Fazia-lhe festas no pelo avermelhado de cão sem raça, mas nobre, meio raposinho e meio setter.

E começou a contar-nos histórias e lá vinha o seu humor negro, com um bocadinho de maldade inofensiva e a inevitável “ferroada” aqui ou ali, neste ou naquela entre risos divertidos e o colorido da linguagem. Agustina tinha um riso contagioso e o que contava era sempre interessante. As horas passavam rápidas. Fiquei a gostar dela e penso que os livros dela que mais tarde li tenham trazido à memória um pouco desse momento de encanto.

O mais interessante é o que se passou anos mais tarde. A Agustina Bessa- Luís foi a Israel convidada para um Encontro de Escritores em Jerusalém.

Fomos buscá-la ao aeroporto Ben Gourion. Não tinha chegado. Voltámos para casa, mas os telefonemas feitos para o marido, não nos sossegaram. Ansioso no Porto e sem notícias, só sabia que ela tinha partido e o avião saíra em horário.

Voltámos a meter-nos no carro mas desta vez levámos o Zac connosco. Entrámos no aeroporto – o Zac também entrou – passámos sem problemas e voltámos a informar-nos sobre o voo: os passageiros já tinham todos desembarcado, disseram. 

Ouvimos os alti-falantes chamarem o nome dela. Olhámos em volta, nada. O tempo passava. Reparámos numa fila de gente sentada do lado esquerdo, o Zac entretanto ia puxando por nós para aquele lado. Qual não é o meu espanto quando vejo que ele correu para uma senhora pequenina, vestida com roupa de lã branca e suave, que estendia os braços para o cão. 

Não houve nenhum sinal de espanto, como se fosse naturalíssimo termos esperado por ela mais de uma hora ou mesmo mais tempo. Nem surpresa alguma por ver um cãozinho que conhecera há mais de dez anos tê-la encontrado.

Disse apenas: “Eu sabia que alguém me havia de encontrar.”

Ao ler agora o livro de Agustina também eu não sinto espanto. A escritora sabia muitas coisas, vira muitas situações, vivera noutros mundos. Pensei no livro de José Régio “Há mais Mundos”, um grande livro a reler (4). Ela conhecia e acreditava nesses mundos.

Quero apenas referir este livrinho auto-biográfico magnífico e a simplicidade com que a grande escritora o escreveu. Vemos passar aos nossos olhos a criança que queria outras coisas. 

A menina de cinco anos que se identifica com a pequena sereia de um quadro.

"A pequena sereia de cinco anos está retratada na pintura de Vieira da Silva. É leve como uma pluma e, no entanto, é profunda como o mar."(5)

"Uma sereia de cinco anos, como se vê o quadro da Vieira da Silva, é uma coisa muito séria”, explica a autora. Parece um camarão, um búzio, um bicho marinho que viaja na imensidão do oceano. É o destino dela mover-se na imensidão do oceano".

Vemos, depois, crescer a mulher que queria ser “a melhor” fosse no que fosse. Seria a Pintura? Fora um sonho que tivera, uma ilusão durante algum tempo.

Depois veio a descoberta dos livros, a paixão com que os devorava, como se escondia para melhor os entender. E escolhe a Literatura. E a  decisão e a de escrever e ser “a melhor”. E não há dúvida que o foi.

 Viajar na imensidão do oceano (da vida) seria o destino dela? 

O que é o destino de cada um? É Agustina quem responde quase no fechar do livro: “o destino não é uma fatalidade, é um conflito breve com um sonho”. 

Esta curta autobiografia corre como um ribeirinho de águas nem sempre serenas. Fez-me bem lê-la. Por isso quis falar dela.


    (1) Nascida em Amarante, Vila Meã, em 15 de Outubro de 1922, morre no Porto em 3 de Junho de 2019.

(2) “O Livro de Agustina Bessa-Luís”, edições "Guerra e Paz", 2007. A primeira edição é de 2002, Três Sinais, Lisboa 

     (3) Sobre o desaparecimento da escritora, in Le Monde :
https://www.lemonde.fr/disparitions/article/2019/06/11/mort-d-agustina-bessa-luis-ecrivaine-portugaise_5474720_3382.html

(4) José Régio, "Há mais mundos", Portugália Editora, 1962

(5) op.cit. Capítulo "A Pequena Sereia", pgs 79-80 

 https://pt.wikipedia.org/wiki/Agustina_Bessa-Lu%C3%ADs