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Vou contar mais uma
história dos amigos Ratinho e Ouricinho e dos outros do grupo. Há muito que
não escrevo sobre eles. Tempos estranhos para mim e para eles. Ultimamente viam-me sempre calada, sem e, se calhar, foram-se habituando.
Claro
que ouvia de vez em quando grande algaraviada e sabia de onde vinha: era da janela do meu quarto onde decidiram instalar-se no parapeito. Falavam uns com os outros, riam mas não me diziam nada.
Lembro-me dos tempos em que decidi ter estes amigos. Há tantos anos! Primeiro veio o Ratinho Poeta; depois ele arranjou um aluno, o Ouricinho; depois a Gui trouxe a Gatinha japonesa e, pouco a pouco, o número foi aumentando. Havia sempre lugar para mais um.
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Já são muitos e vão sempre aparecendo mais. Como na canção "traz um amigo também" eles foram trazendo uns e eu outros. Uma vez trouxe de San Francisco o índio Navajo.
Aliás os dois amigos tinham ido a San Francisco comigo e foi lá que fizeram amizade. Ele ensinou-lhes muitas coisas e eles ficavam embasbacados a ouvir falar das planícies onde os índios corriam nos seus cavalos, livres.
Outros foram-se chegando a eles e a amizade é mesmo assim: contagiosa. O tempo passou e continuaram a dar-se bem uns com os outros. Com uns grupinhos fechados, de vez em quando, mas unidos.
Estavam zangados comigo. A verdade é que este Inverno fui viajar a uma cidade muito fria e deixei-os sozinhos
Era Inverno, nevava mas, quando os dias estavam bonitos e o sol aquecia, gostava de ir até uma praça muito agradável e tranquila, a Hlavné Nemestié - onde havia um
Café que me encantou, o "Maximilian Chocolat Café".
A
cidade onde fui era Bratislava e estive com a minha filha - porque há momentos em que há uma forma de solidão que nos aperta e temos sair
de nós e ir ter com os outros. Sabemos que o que nos parece sufocar e nos faz estar tristes - eles também o sentem.
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Estive, pois, uns tempos longos e Bratislava. Demos passeios pelo país, fui rever Viena, que não está longe, vi o rio Danúbio que já tinha visto em Budapeste e é sempre majestoso e lindo. Há muitos lugares bonitos na Eslováquia.
Como estava a dizer, adoro Cafés e encontrei muitos na minha vida. Na chamada mitteleuropa - que se refere ao Império Austro-Húngaro de que a Eslováquia fez parte.
O meu Café em Bratislava foi o "Maximilian".
Interior do Café Maximilan
Os Cafés eram o ponto de encontro da burguesia mas também - e especialmente - um lugar de Cultura.
Café degli Specchi, em Trieste
Lembro os Cafés de Trieste, cidade que ficou sempre ligada aos "costumes" austro-húngaros. Cafés que guardam uma atmosfera semelhante à destes cafés da Mitteleuropa - muito diferente do resto da Itália ou da Europa.
A verdade é que foi em Bratislava que encontrei aquele que os amigos chamam hoje um
intruso.
Um simples ratinho, tal como o Ratinho Poeta. Um simpático Rato cor-de-rosa
com dois dentinhos saídos e uma cauda longa como uma pequena cobra.
Muito meigo e brincalhão, começou a fazer-me boa companhia. E conquistou-me, como na história do "Principezinho". Não sei quem "cativou" quem: eu falava e ele ouvia - e poucos dias depois já estava a dormir na minha almofada.
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Quando voltei para casa trouxe-o comigo. Nunca esperei a reacção dos amigos que cá tinham ficado - e que foi muito negativa. Não esperava isso deles. Tinham sempre recebido bem todos os que iam chegando.
Claro
que o Rato cor-de-rosa é maior do que eles e é bonito; claro que é de uma cor diferente - e, infelizmente, nós
sabemos que essas coisas contam na vida. Até por causa dos ciúmes que sempre surgem sem nos darmos conta disso. E o Ratinho e o Ouricinho são muito ciumentos. A Gatinha japonesa vive noutro mundo, tem outra filosofia , não liga a essas coisas. Há gente a girar por todo o lado. Aparece de repente e, quando se instalam, os que
já lá viviam começam a encontrar defeitos e a pôr as culpas de tudo neles, os estrangeiros.
O estrangeiro, o "métèque", o diferente, que Georges Moustaki tão bem cantou, nem sempre o aceitam.
San Francisco
Chama-se “racismo” e os amigos sabem o que é porque já lhes
tinha falado disso quando trouxemos o índio Apache, de San Francisco.
Mas
os bichinhos esquecem como as pessoas e quantas vezes também eles esquecem promessas
feitas solenemente: “Nunca mais!” - tal como as pessoas.
E é pena porque da solidão não sai nada de concreto e afastar o outro não nos leva a lado nenhum. Quanto a mim ficamos mais pobres e mais sozinhos se recusarmos a mão de alguém.
Estive
a ler duas frases que, por acaso, encontrei numa velha agenda – enquanto procurava
outra coisa: os irritantes códigos e ‘passwords’ que não estavam lá e nem sei
onde guardei.
Uma
das frases era de Elie Wiesel e diz mais ou menos: “Os dois sentimento mais fortes não são o ódio e o amor - mas sim o amor e a indiferença.”
Ele sabia um pouco disso porque esteve em Auschwitz: como era grande a indiferença para com tudo o que acontecia aos judeu. E, mesmo lá dentro, como se modificavam as pessoas pelo instinto de sobrevivência.
A verdade é me fez pensar é a indiferença que nos impede de fazer certos gestos; e que há coisas que fingimos não ver. E muitas outras coisas que se esquecem quando jurámos não esquecer. Como a estrela amarela dos judeus.
Luther King: "I have a dream"
A segunda frase é
de Martin Luther King - tão falado e tão esquecido hoje - personagem importantíssimo da história da defesa dos Direitos dos Homens. Tão importante e tão incomodativo para o sistema que foi assassinado!
Acho que a maior parte das
pessoas já não sabe - ou nunca soube - o que foi “A marcha sobre Washington” em 1963 nem o que disse no seu discurso "I have a dream". O sonho era que todos os homens se unissem e tivessem as mesmas oportunidades.
A frase de Martin
Luther King falava da indiferença: “Pior do que aqueles que cometem actos censuráveis são os que os
vêem e olham para o lado.” Os que olham para o lado para não ver ...
Muitas outras coisas se esqueceram na procura de “andar de acordo com os outros” - amparados no grupo que é "maior" ou parece mais forte e
que - julgam eles - tem mais poder.
Esses vão atrás de um chefe, como os carneiros nos rebanhos. Sabendo que, quando se vai em rebanho, ou na multidão, podemos ser covardes, porque o rebanho nos protege.
Mas já estamos a passar para outra conversa. Quero falar do novo Ratinho a quem chamei Aviv - lembrando um
amigo que tenho em Telavive e a quem gosto
de chamar assim porque “aviv” quer dizer Primavera - renascer- em hebraico e esse amigo ajudou-me num momento muito difícil.
Ora o Ratinho cor-de-rosa fez-me pensar também que depois da neve a Primavera ia chegar e ia ser linda. Já começavam a ver-se folhinhas novas no jardim.
Chegámos da viagem. Os amigos estavam à minha espera mas de repente fez-se um grande silêncio quando viram o desconhecido de repente fez-se um grande silêncio.
: - Têm aqui um amigo novo e ele gostava de ser
vosso amigo - disse eu.
Foi então que do meio do grupo à janela se ouviu uma voz
fininha a dizer :
“Já temos muitos amigos, não precisamos de mais...”
Era o Ouricinho, claro. Ele e o Ratinho Poeta estavam de costas viradas para mim.
Logo
a seguir, porém, ouço um discurso mais longo que parecia preparado:
“Sim, é muito
interessante ires viajar. Deixas-nos aqui sozinhos em casa e ainda por cima trazes um intruso!"
Interrompi: - Ratinho querido! – era a voz dele - tu sabes que veio a Halyna tomar conta de vocês e da casa! Não estavam sozinhos.
O Ratinho Poeta continuou sem se virar: "Era muito diferente, eu e o Ouricinho ficavamos a tomar conta da casa. Sabes que não é a mesma coisa. Tu és a Jana,
a amiga de há tantos anos que desaparece assim sem mandar notícias. E..."
Tossiu, pouco à vontade, e acrescentou:
"E agora
apareces toda contente com um qualquer que encontraste não sei onde.”
- Encontrei-o em Bratislava, Ratinho. Sabem que estive em casa da Gui.
O Ouricinho pergunta, trocista:
- E
há assim lá tantos ratos?
Percebi
que não ia ser assim fácil. Disse apenas:
- Vão pensando e quando tiverem
decidido alguma coisa venham falar comigo. Estou cansada e vou-me deitar.
Silêncio. Fui-me deitar. O Rato cor-de-rosa andava atrás de mim, - e como dormia na almofada da minha cama
complicava mais as coisas . “Horror!”, deviam eles pensar. Nem queriam olhar para
lá.
É verdade que eu tinha-me afeiçoado ao Aviv. Era um 'paz d’alma' e habituara-me a conversar com ele à noite. Não era nada parvo e sabia consolar-me com poucas palavras e
mostrar-me que a “a vida é mesmo assim!”
E
explicava, sabiamente com a sua voz tranquila:
“Nem todas as pessoas gostam das mesmas
coisas, não querem habituar-se ao que é diferente deles e que não conhecem”.
Eu senti-me triste.
“É assim em toda a parte. Chamaste-me Aviv, sabes que os judeus nunca são amados.”
Zanguei-me:
- Não é verdade, Aviv! Eu gosto de ti. Chamei-te assim porque quer dizer "Primavera"!
Ele ficou calado.
o Jaba
O
sapinho verde, o Jaba, que dormia na almofada, do outro lado da
cama, tinha já aderido ao
nosso grupo. Disse:
- O Aviv tem razão. Julgas que não tive
problemas por ser verde? E que culpa tinha eu? Não fiz mal a ninguém. Mas
estavam sempre a gozar comigo “ó verde!”
Fiquei
pasmada e só pensava “então com os animais é
a mesma coisa, também há racismo...”
Falei, agora indignada:
- Mas isso é racismo!
O
Ratinho, o Ouricinho e os outros já se tinham virado para nós e ouviam tudo, calados. Fiquei
triste.
"Então o que o Saint-Exupéry escreveu no Principezinho não era verdade?"
Senti-me
pequenina, insignificante. Com os meus grandes discursos sobre a liberdade, a igualdade e a fraternidade não sabia muita coisa do que se passava
no mundo. Seria eu também indiferente?
O Aviv chamou-me:
- Jana, posso chamar-te assim como eles te
chamam?
Acenei
com a cabeça e ele continuou:
- Sabes, penso que vives numa tua forma de utopia em que
julgas que basta a tua vontade e um pouco de conversa com os outros para eles
te entenderem logo e estarem do teu lado.
Abanou a cabeça e continuou:
- Não, Jana, a vida lá fora não
funciona assim.
Continuei
calada, quase acabrunhada. Eu era assim? Vivia como a avestruz? Agora queria ouvir tudo o que iam dizer até ao fim. Julgava ter aprendido
tudo sobre racismo e a rejeição do outro. Afinal a vida lá fora não era como eu pensava.
Racismo? Sim, havia
racismo mas eu preferia não ver nem ouvir o que se tem
passado à minha volta. Fechei-me nas minhas convicções. Aquele bichinho da terra
tão pequeno ia ensinar-me a vida? Quem sabe? Achei melhor ficar a ouvir. Mas pedi-lhe:
- Eu quero ouvir tudo mas peço-te só que fique para amanhã o resto, pode ser? Estou cansada e tenho muito sono. Amanhã à noite continuamos a conversa.
Não era verdade,
precisava de pensar um pouco.
- Vamos fazer como nas “Mil e uma noites”. disse eu.
O Ouricinho não resistiu e perguntou.
- O que é as "Mil e uma noites"?
- Um livro...
Voltei-me para o Aviv e disse:
Deixamos a conversa onde a deixaste. E amanhã à noite e todas as noites a seguir continuamos a história e falamos sempre um bocadinho. Todos! Olhei para a janela mas dali não veio nenhuma reacção. A
noite descera, a conversa preocupara-me e queria dormir.
No parapeito
da janela havia um grande movimento - sussurros e agitação. Eram os amigos a falarem
baixinho sobre a nossa conversa. O que diriam eles amanhã?
- Boa noite, disse eu.
Houve um murmúrio e depois em coro:
- Boa noite, Jana.
Fiquei a pensar antes de dormir. De onde me teria aparecido a ideia das “Mil e uma noites” (1) ? Era como se, de repente, tivesse visto o livro em frente dos olhos: o meu livro! O que me tinham oferecido
num Natal - prenda que eu adorara.
Recordo que era
um livro de formato diferente. Muito comprido e estreito com as páginas de uma cor
rosado-salmão. Tinha muitas ilustrações mas só lembro a Princesa com um turbante
sentada numa almofada de seda a contar, a contar. a Princesa que era final a Sultana Aul
A
heroína chamava-se Sherazade. Ela sabia que cada noite que passava era um
dia de vida que ganhava. Por isso não podia chegar ao fim da história de repente e ia adiando para a noite seguinte mais um pedacinho da história. Eram histórias diferentes e ela deixava-as sempre num momento de suspense!
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhKG8gCz7GtBiKSlI4vYBDFDG80sdlksYTm3WmoDrMZ8xaBq98MjPsXUhhUK9v3_0BN33hRjWaGM0VIOGQ57gZmRkNzRlfCHGfxcea5SmX0m8SgtFQTAs9Mox8AeKec5KTA9iSCEe0hnKmu_4qv-5O2HsPVLu6UGqxRk6gx_UZSgoRm7nKDQjYGydqnR0ZR/s1600/Persa%20Babil%C3%B3nia%20Pergamonmuseum_Ishtartor_07.jpg)
Era uma figura emblemática da mulher que tem coragem e paciência, sabe resolver os
problemas dando uma volta às coisas.
Rimsky-Korsakov
E pensava, e pensava. E vinham-me tantas recordações à cabeça! Lembrava-me agora de uma bela música de Rimsky-Korsakov - músico russo de que o meu pai tanto gostava e que ouvíamos lá em casa. Escrevera uma composição a que chamou "Sherazade".
E houve ballets inspirados na música.
"Sherazade", Ballet russo
E veio-me a imagem da boneca da minha irmã mais velha: ela tinha-lhe chamado Sherazade. Como o tempo passou depressa! Nesse ano eu tivera de prenda um bebé-chorão com um biberon. Quase me tinha esquecido destas coisas. E são tão importantes.
Concluí : Pois é, a gente esquece...
Ainda bem que amanhã vamos continuar a conversar.
***
(1) O
livro das “Mil e uma noites” é uma obra que atravessou os tempos fazendo parte da
memória do Oriente e do Ocidente. A origem terá sido persa ou poderá ter vindo mesmo da
Índia mas existia apenas uma tradução em árabe. Estes contos fariam parte da tradição oral árabe como o teriam feito anteriormente dos persas.
Sheherazade é uma adaptação sonora do nome em
persa.