quarta-feira, 10 de julho de 2024

A PORTALEGRE DE CAMIONETA!

De repente decidi-me: vou a Portalegre! E fui lá parar de camioneta! Nunca tinha ido nem sozinha, nem de camioneta.

Tudo é diferente conforme a perspectiva, sabemos. Ao chegar ao Alentejo a paisagem muda muito e, vista do alto da camioneta, era um quadro impressionante. Parecia-me um longo quadro impressionista a desfilar como em filme.

Ao ver aqueles campos amarelos como dantes, um ou outro sobreiro ou azinheira empoleirados no cimo de uma colina, as flores roxas e as giestas amarelas, comovi-me.  Foi através de uma nuvenzinha de lágrimas que fui chegando à minha terra. 

Fim de Primavera, ainda não tinham aparecido os campos de papoilas mas eu sabia que iam chegar. Chegam sempre sem as esperarmos e os campos mudam-se para a cor vermelha.


 
Emil Nolde, "Papoilas"

Seriam as saudades? A necessidade de me recompor depois de algumas partidas do destino que nos apanham sempre desprevenidos? 

O que é isto da nossa memória. Há muito que pensava viajar, ver coisas diferentes e afastar-me por uns dias de tristezas sem remédio. E acabava sempre a pensar no meu Alentejo. Era disto que eu precisava.  A

Os campos pareciam agora pequenos quadros impressionistas com pedacinhos de Monet, de Bonnard ou até de Renoir. A beleza comove-nos, penso. 

O coração começou a acelerar, a garganta ficou presa num soluço. A solidão dos campos envolvia-me, entrava em mim apesar de rodeada de gente que viajava comigo.

A viagem foi, assim, entre tecida de pensamentos nem sempre alegres. E as cores dos campos, dos casais brancos, dos montinhos muito arrumados com duas ou três árvores e algumas trepadeiras vermelhas e mal-me-queres amarelos enchiam-me os olhos de cor.

As nuvens revoltas no céu, mudando constantemente de posição, de tamanho e de cor eram uma alegria para o olhar e um repouso. Pouco a pouco a minha alma acalmou.

Portalegre sempre bela, quer houvesse névoa, chuva ou sol ardente, aparecia-nos de repente, talvez ao virar de uma curva da estrada. De repente lá estava a cidade que se via num alto, entre duas serras.

Suave e imponente, com as torres do castelo, os picos da Catedral ao longe, à chegada. E um carreirinho de pinheiros a subir pela serra acima que eu conhecia tão bem.

Era esta a minha memória. A seguir vinham as saudades, como vêm sempre desde a partida de tantos meus amores dali. As mesmas saudades que sentia quando, vinda de outros lugares, chegava a Portalegre.

 

Era a imagem do meu pai, à porta da casa da quinta com um leve sorriso e o cigarro na mão. Ouvia o carro descer pela azinhaga e lá estava atento à nossa chegada, à porta da casa. Um beijo e uma palmadinha na cara, sempre a sua saudação. 

 Penso que comigo tinha uma atitude um pouco mais tímida, tal como também eu a tinha, aparentemente sem grandes manifestações afectivas – que só tivera talvez em criança e adolescente.

 

 Lembro  o meu Salmo preferido, o 42.11 - que prefiro na versão em inglês antigo, de King James – simplesmente porque o meu primeiro “Livro dos Salmos”, que foi comprado em Telavive, era uma edição em hebraico e inglês clássico. 

 Why art thou cast down, O my soul?

And art thou disquieted within me?" 
 

Portalegre sempre bela, quer haja névoa, chuva ou sol ardente, aparecia de surpresa, ao virar de uma curva da estrada. De repente lá estava a cidade que se via numa pequena altitude, entre duas serras. Sim, bela, e que me faz sentir bater o coração mais forte  dentro do peito. Por quê esta tristeza?

 "Porque estás tão triste ó minh'alma ? E tão desinquieta no meu peito?"

 

A cidade ficou mais vazia para mim há muitos anos e era como se agora tivesse um buraco no peito onde tantas pequenas coisas estavam guardadas. Imagens, gestos, imagens, conversas, silêncios.

Mas desta vez havia muita gente que eu queria rever: a irmã, a família, os amigos. E tantos lugares novos que descobri, depois, no carro da minha amiga Luísa, às voltas na Serra de São Mamede. Tanta beleza natural!

 

Via agora o Rossio sempre lindo, na minha ideia. Por lá anda o lindo Coreto, agora com muitas árvores à volta e encostado a um lado. Sem música.

O Coreto não tem igual: tanta suavidade - a cor da pedra, as escadas que subíamos, a brincar, antes de chegar a Banda que ia tocar à noite nos dias de Feira. E volta a memória das festas...

Chegava a feira – aliás, as feiras. Alegrava-me sempre a ideia das festas. E trepava pelas escadas do Coreto acima, e descia e subia, até vir alguém dizer-me para me sentar porque íamos ouvir a música.

Ouvia com a face encostada na mão apoiada no braço dobrado. Tinha um laço nos cabelos e entrava noutro mundo.

Ouvia, sim, e gostava  e gostava de ouvir, mas quando chegava o intervalo brincava e corria outra vez à volta do nosso elegante Coreto.

E descia a noite. Quantas vezes vi a lua lá no alto do céu - azul bem escuro - a brilhar sobre a minha cidade. Desta vez tudo foi diferente. Mais calmo? não sei - talvez um tempo mais pensativo com muitas interrogações sem resposta.  

Vinham mais suaves e distantes as lembranças, as árvores no Outono, as ruas, a Catedral, a Corredoura. Os passeios no Rossio tão mudado.

 

E agora a ver a Serra de São Mamede com surpresas ainda para mim. 

  

Como a descoberta do Miradouro das Carreiras - onde a Luísa me levou - que se bate com tantos miradouros famosos do mundo - na sua simplicidade da natureza exposta num belo dia de Primavera. 

 

Desta vez até houve lugares novos que descobria agora no carro da minha amiga Luísa, às voltas pela Serra. Tanta beleza natural!

O tempo passou a correr.  E voltei outra vez na camioneta. Na viagem de regresso já não havia a mesma excitação.

Sentia-me como se tivesse um buraco no peito onde tantas pequenas coisas estavam guardadas para sempre. Imagens, gestos, imagens, conversas, silêncios. Um pouco da vida perdida. Mas que não morrera.

Ia olhando com mais atenção coisas que me tinham escapado na vinda. As pequenas aldeias, aglomerados de poucas casas brancas, um pequeno largo com bancos e mais nada. Ou os "montinhos" de casas branquinhas, espalhados e com vacas e rebanhos por ali. 

A vegetação, rara, no meio da planície que a Primavera enchia de flores azuis e de giestas a nascer. Os sobreiros com o tronco ferido e vermelho e as folhas de um verde acinzentado.

Creio que vinha mais meditativa - sabia que cada instante passa inexoravelmente e nunca mais será o mesmo. 

E que cada hora devia ser aproveitada porque se o passado ficou para trás e não volta mais e se o futuro não sabemos como será - ou até "se será"- é esta a nossa hora de viver.

Olhava para fora como se quisesse ver muito, ver mais e guardar tudo cá dentro. Acabei por adormecer. Quando cheguei à ponte e vi Lisboa perto, pareceu-me que a viagem tinha sido tão curta!

sexta-feira, 14 de junho de 2024

O AMIGO QUE VEIO DO FRIO FOI UM INTRUSO!


Vou contar mais uma história dos amigos Ratinho e Ouricinho e dos outros do grupo. Há muito que não escrevo sobre eles. Tempos estranhos para mim e para eles. Ultimamente viam-me sempre calada, sem  e, se calhar, foram-se habituando.

Claro que ouvia de vez em quando grande algaraviada e sabia de onde vinha: era da janela do meu quarto onde decidiram instalar-se no parapeito. Falavam uns com os outros, riam mas não me diziam nada.

 Lembro-me dos tempos em que decidi ter estes amigos. Há tantos anos! Primeiro veio o Ratinho Poeta; depois ele arranjou um aluno, o Ouricinho; depois a Gui trouxe a Gatinha japonesa e, pouco a pouco, o número foi aumentando. Havia sempre lugar para mais um.

 

Já são muitos e vão sempre aparecendo mais. Como na canção "traz um amigo também" eles foram trazendo uns e eu outros. Uma vez trouxe de San Francisco o índio Navajo

 

Aliás os dois amigos tinham ido a San Francisco comigo e foi lá que fizeram amizade. Ele ensinou-lhes muitas coisas e eles ficavam embasbacados a ouvir falar das planícies onde os índios corriam nos seus cavalos, livres.

Outros foram-se chegando a eles e a amizade é mesmo assim: contagiosa. O tempo passou e continuaram a dar-se bem uns com os outros. Com uns grupinhos fechados, de vez em quando, mas unidos.

Estavam zangados comigo. A verdade é que este Inverno fui viajar a uma cidade muito fria e deixei-os sozinhos


Era Inverno, nevava mas, quando os dias estavam bonitos e o sol aquecia, gostava de ir até uma praça muito agradável e
tranquila, a Hlavné Nemestié - onde havia um Café que me encantou, o "Maximilian Chocolat Café". 
A cidade onde fui era Bratislava e estive com a minha filha - porque há momentos em que há uma forma de solidão que nos aperta e temos sair de nós e ir ter com os outros. Sabemos que o que nos parece sufocar e nos faz estar tristes  - eles também o sentem.

 Estive, pois, uns tempos longos e Bratislava. Demos passeios pelo país, fui rever Viena, que não está longe, vi o rio Danúbio que já tinha visto em Budapeste e é sempre majestoso e lindo.  Há muitos lugares bonitos na Eslováquia. 

Como estava a dizer, adoro Cafés e encontrei muitos na minha vida. Na chamada mitteleuropa - que se refere ao Império Austro-Húngaro de que a Eslováquia  fez parte. 

O meu Café em Bratislava foi o "Maximilian".

 

Interior do Café Maximilan

Os Cafés eram o ponto de encontro da burguesia mas  também - e especialmente - um lugar de Cultura.  

Café degli Specchi, em Trieste

Lembro os Cafés de Trieste, cidade que ficou sempre ligada aos "costumes" austro-húngaros. Cafés que guardam uma atmosfera semelhante à destes cafés da Mitteleuropa - muito diferente do resto da Itália ou da Europa. 

 
A verdade é que foi em Bratislava que encontrei aquele que os amigos chamam hoje um intruso.
 
 
 Um simples ratinho, tal como o Ratinho Poeta. Um simpático Rato cor-de-rosa com dois dentinhos saídos e uma cauda longa como uma pequena cobra.

Muito meigo e brincalhão, começou a fazer-me boa companhia. E conquistou-me, como na história do "Principezinho". Não sei quem "cativou" quem: eu falava e ele ouvia - e poucos dias depois já estava a dormir na minha almofada.

Quando voltei para casa trouxe-o comigo. Nunca esperei a reacção dos amigos que cá tinham ficado - e que foi muito negativa. Não esperava isso deles. Tinham sempre recebido bem todos os que iam chegando.
Claro que o Rato cor-de-rosa é maior do que eles e é bonito; claro que é de uma cor diferente - e, infelizmente, nós sabemos que essas coisas contam na vida. Até por causa dos ciúmes que sempre surgem sem nos darmos conta disso. E o Ratinho e o Ouricinho são muito ciumentos. A Gatinha japonesa vive noutro mundo, tem outra filosofia , não liga a essas coisas.

Há gente a girar por todo o lado.  Aparece de repente e, quando se instalam, os que já lá viviam começam a encontrar defeitos e a pôr as culpas de tudo neles, os estrangeiros. 

O estrangeiro, o "métèque", o diferente, que Georges Moustaki tão bem cantou, nem sempre o aceitam.

 
San Francisco
 
Chama-se “racismo” e os amigos sabem o que é porque já lhes tinha falado disso quando trouxemos o índio Apache, de San Francisco.

Mas os bichinhos esquecem como as pessoas e quantas vezes também eles esquecem promessas feitas solenemente: “Nunca mais!” - tal como as pessoas. 

E é pena porque da solidão não sai nada de concreto e afastar o outro não nos leva a lado nenhum. Quanto a mim ficamos mais pobres e mais sozinhos se recusarmos a mão de alguém.

Estive a ler duas frases que, por acaso, encontrei numa velha agenda – enquanto procurava outra coisa: os irritantes códigos e ‘passwords’ que não estavam lá e nem sei onde guardei.

Uma das frases era de Elie Wiesel e diz mais ou menos: “Os dois sentimento mais fortes não são o ódio e o amor - mas sim o amor e a indiferença.” 

 

 Ele sabia um pouco disso porque esteve em Auschwitz: como era grande a indiferença para com tudo o que acontecia aos judeu. E, mesmo lá dentro, como se modificavam as pessoas pelo instinto de sobrevivência.

A verdade é me fez pensar é a indiferença que nos impede de fazer certos gestos; e que há coisas que fingimos não ver. E muitas outras coisas que se esquecem quando jurámos não esquecer. Como a estrela amarela dos judeus.
 
Luther King: "I have a dream"

A segunda frase é de Martin Luther King - tão falado e tão esquecido hoje - personagem importantíssimo da história da defesa dos Direitos dos Homens. Tão importante e tão incomodativo para o sistema que foi assassinado!

Acho que a maior parte das pessoas já não sabe - ou nunca soube - o que foi “A marcha sobre Washington” em 1963  nem o que disse no seu discurso "I have a dream". O sonho era que todos os homens se unissem e tivessem as mesmas oportunidades.

A frase de Martin Luther King falava da indiferença: “Pior do que aqueles que cometem actos censuráveis são os que os vêem e olham para o lado.” Os que olham para o lado para não ver ...

Muitas outras coisas se esqueceram na procura de “andar de acordo com os outros” - amparados no grupo que é "maior" ou parece mais forte e que - julgam eles - tem mais poder. 
Esses vão atrás de um chefe, como os carneiros  nos rebanhos. Sabendo que, quando se vai em rebanho, ou na multidão, podemos ser covardes, porque o rebanho nos protege.

 

Mas já estamos a passar para outra conversa. Quero falar do novo Ratinho a quem chamei Aviv - lembrando um amigo que tenho em Telavive e  a quem gosto de chamar assim porque “aviv” quer dizer Primavera - renascer- em hebraico e esse amigo ajudou-me num momento muito difícil. 

Ora o Ratinho cor-de-rosa fez-me pensar  também que depois da neve a Primavera ia chegar e ia ser linda. Já começavam a ver-se folhinhas novas no jardim.

Chegámos da viagem. Os amigos estavam à minha espera mas de repente fez-se um grande silêncio quando viram o desconhecido de repente fez-se um grande silêncio.
 :

- Têm aqui um amigo novo e ele gostava de ser vosso amigo - disse eu.

Foi então que do meio do grupo à janela  se ouviu uma voz fininha a dizer : 

“Já temos muitos amigos, não precisamos de mais...”

 Era o Ouricinho, claro. Ele e o Ratinho Poeta estavam de costas viradas para mim.

 

Logo a seguir, porém, ouço um discurso mais longo que parecia preparado:  

“Sim, é muito interessante ires viajar. Deixas-nos aqui sozinhos em casa  e ainda por cima trazes um intruso!"

Interrompi: 

- Ratinho querido! – era a voz dele - tu sabes que veio a Halyna tomar conta de vocês e da casa! Não estavam sozinhos.

O Ratinho Poeta continuou sem se virar:

 "Era muito diferente, eu e o Ouricinho ficavamos a tomar conta da casa. Sabes que não é a mesma coisa. Tu és a Jana, a amiga de há tantos anos que desaparece assim sem mandar notícias. E..."

Tossiu, pouco à vontade, e acrescentou:

"E agora apareces  toda contente com um qualquer que encontraste não sei onde.”

- Encontrei-o em Bratislava, Ratinho. Sabem que estive em casa da Gui.

O Ouricinho pergunta, trocista: 

- E há assim lá tantos ratos?

Percebi que não ia ser assim fácil. Disse apenas: 

 - Vão pensando e quando tiverem decidido alguma coisa venham falar comigo. Estou cansada e vou-me deitar.

Silêncio. Fui-me deitar. O Rato cor-de-rosa andava atrás de mim, - e como dormia na almofada da minha cama complicava mais as coisas . “Horror!”, deviam eles pensar. Nem queriam olhar para lá.

É verdade que eu tinha-me afeiçoado ao Aviv. Era um 'paz d’alma' e habituara-me a conversar com ele à noite. Não era nada parvo e sabia consolar-me com poucas palavras e mostrar-me que a “a vida é mesmo assim!” 

E explicava, sabiamente com a sua voz tranquila:

Nem todas as pessoas gostam das mesmas coisas, não querem habituar-se ao que é diferente deles e que não conhecem”.

Eu senti-me triste.

 “É assim em toda a parte. Chamaste-me Aviv, sabes que os judeus nunca são amados.”

Zanguei-me:

Não é verdade, Aviv! Eu gosto de ti. Chamei-te assim porque quer dizer "Primavera"!

Ele ficou calado.

 o Jaba
 
O sapinho verde, o Jaba, que dormia na almofada, do outro lado da
 cama, tinha já aderido ao nosso grupo. Disse:

- O Aviv tem razão. Julgas que não tive problemas por ser verde? E que culpa tinha eu? Não fiz mal a ninguém. Mas estavam sempre a gozar comigo “ó verde!”

Fiquei pasmada e só pensava “então com os animais é a mesma coisa, também racismo...” 

Falei, agora indignada: 

- Mas isso é racismo!

O Ratinho, o Ouricinho e os outros já se tinham virado para nós e ouviam tudo, calados. Fiquei triste. 

"Então o que o Saint-Exupéry escreveu no Principezinho não era verdade?"

Senti-me pequenina, insignificante. Com os meus grandes discursos sobre a liberdade, a igualdade e a fraternidade não sabia muita coisa do que se passava no mundo. Seria eu também indiferente?

O Aviv chamou-me:

- Jana, posso chamar-te assim como eles te chamam?

Acenei com a cabeça e ele continuou:

- Sabes, penso que vives numa tua forma de utopia em que julgas que basta a tua vontade e um pouco de conversa com os outros para eles te entenderem logo e estarem do teu lado. 

Abanou a cabeça e continuou:

- Não, Jana, a vida lá fora não funciona assim.

Continuei calada, quase acabrunhada. Eu era assim? Vivia como a avestruz? Agora queria ouvir tudo o que iam dizer até ao fim. Julgava ter aprendido tudo sobre racismo e a rejeição do outro. Afinal a vida lá fora não era como eu pensava.

Racismo? Sim, havia racismo mas eu preferia não ver nem ouvir o que se tem passado à minha volta. Fechei-me nas minhas convicções. Aquele bichinho da terra tão pequeno ia ensinar-me a vida? Quem sabe? Achei melhor ficar a ouvir. Mas pedi-lhe:

- Eu quero ouvir tudo mas peço-te só que fique para amanhã o resto, pode ser? Estou cansada e tenho muito sono. Amanhã à noite continuamos a conversa.

Não era verdade, precisava de pensar um pouco.

- Vamos fazer como nas “Mil e uma noites”. disse eu.
  O Ouricinho não resistiu e perguntou.
- O que é as "Mil e uma noites"?
- Um livro... 
Voltei-me para o Aviv e disse:
Deixamos a conversa onde a deixaste. E  amanhã à noite e todas as noites a seguir continuamos a história e falamos sempre um bocadinho. Todos! Olhei para a janela mas dali não veio nenhuma reacção. A noite descera, a conversa preocupara-me e queria dormir.

No parapeito da janela havia um grande movimento - sussurros e agitação. Eram os amigos a falarem baixinho sobre a nossa conversa. O que diriam eles amanhã?

- Boa noite, disse eu.

Houve um murmúrio e depois em coro:

- Boa noite, Jana.

Fiquei a pensar antes de dormir. De onde me teria aparecido a ideia das “Mil e uma noites” (1) ? Era como se, de repente, tivesse visto o livro em frente dos olhos: o meu livro! O que me tinham oferecido num Natal - prenda que eu adorara.
Recordo que era um livro de formato diferente. Muito comprido e estreito com as páginas de uma cor rosado-salmão. Tinha muitas ilustrações mas só lembro a Princesa com um turbante sentada numa almofada de seda a contar, a contar. 
a Princesa que era final a Sultana Aul

A heroína chamava-se Sherazade. Ela sabia que cada noite que passava era um dia de vida que ganhava. Por isso não podia chegar ao fim da história de repente e ia adiando para a noite seguinte mais um pedacinho da história. Eram histórias diferentes e ela deixava-as sempre num momento de suspense!

Era uma figura emblemática da mulher que tem coragem e paciência, sabe resolver os problemas dando uma volta às coisas.

Rimsky-Korsakov
 

 E pensava, e pensava. E vinham-me tantas recordações à cabeça! Lembrava-me agora de uma bela música de Rimsky-Korsakov - músico russo de que o meu pai tanto gostava e que ouvíamos lá em casa. Escrevera uma composição a que chamou "Sherazade". 
E houve ballets inspirados na música.
                                        "Sherazade", Ballet russo

E veio-me a imagem da boneca da minha irmã mais velha: ela tinha-lhe chamado Sherazade. Como o tempo passou depressa! Nesse ano eu tivera de prenda um bebé-chorão com um biberon. Quase me tinha esquecido destas coisas. E são tão importantes.

Concluí : Pois é, a gente esquece...

Ainda bem que amanhã vamos continuar a conversar.

***

(1) O livro das “Mil e uma noites” é uma obra que atravessou os tempos fazendo parte da memória do Oriente e do Ocidente. A origem terá sido persa ou poderá ter vindo mesmo da Índia mas existia apenas uma tradução em árabe. Estes contos fariam parte da tradição oral árabe como o teriam feito anteriormente dos persas. 

Sheherazade é uma adaptação sonora do nome em persa.