quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

SE NÃO AGORA, QUANDO? AUSCHWITZ 75 ANOS DEPOIS




Passam 75 anos sobre a libertação do campo de concentração e extermínio de Auschwitz (1), pelo Exército Vermelho, da Rússia. O mundo inteiro soube. Os que já sabiam fingiram-se espantados. Nunca mais nada foi como antes. Outros campos tinham já sido libertados? Só o campo de Majdane que o exército russo libertara em 27 de Julho de 1944.
Na semana de 22 de Dezembro a 27 de 1945 sim, muita coisa acontecu.

Sabia-se o que se passava naquele – e noutros - campos de extermínio? Sim, sabia-se. Fez-se alguma coisa? Não. Tudo continuou igual - porque ninguém fez nada. Havia razões para tal? Imensas razões, imensas desculpas, claro, e os judeus continuaram a morrer aos milhares cada dia.
Passam 75 anos. Ainda há pouco me lembro de terem passado 50 anos. E por aí adiante: a vida continua “égale, idêntica, the same” como no poema. 
Bruno Schultz (1882-1944)
Mudou alguma coisa? 
Antes, em 1941, houve o ataque ao porto de Pearl Harbour em 7 de Julho, pelos japoneses, onde se encontrava a frota americana do Pacífico. 
E, a seguir, os americanos lançaram ganham a Batalha de Okinawa.  Mas a vingança contra o Japão continua: lançam uma bomba atómica sobre a cidade de Hiroshima em 6 de Agosto de 1945.
E, logo a seguir, em 9 de Agosto, outra (quando já tinham sabido os “resultados” devastadores da primeira) sobre a tranquila cidade de Nagazaki que acordava para um dia normal. 
Nagasaki

Eram 8 da manhã, as crianças iam para a escola. Todos sabemos o que aconteceu. 

E por aí adiante. E hoje? Continuam matanças, genocídios, ataques kamikazes, tiroteios, facadas nas ruas das capitais europeias, ameaças de bombas atómicas adiadas. 
A corrida ao  armamento explode, há países a ganhar muito com as armas que se sabe que vão matar.
O que acontece hoje na Síria, Irão, Iraque? Na Turquia? Quem "dá" as armas para se matarem uns aos outros? Os que as vendem.
 
Rwanda, caveiras
Alguém se recorda da guerra entre os Hutsi e os Tootsie, no Rwanda, Entre 1990 e 1994? No entanto, morreram dezenas de milhares de inocentes
Quem fala hoje no Sudão, e na sua guerra infinita? Ou da  fome e desespero no Yemen causados por outras guerras sem razão? Que causam migrações descomunais. As guerras, infelizmente, trazem sempre um ganho a alguém. 
Muitas vezes nem fazem parte da disputa mas há petróleo, vendem-se armas...
 
Yemen
Quem destapou a Caixa de Pandora e criou as situações de milhões de refugiados que escapam ao terror e entram em bandos e alcateias pelas fronteiras mais ou menos fechadas – e vêm "incomodar" os europeus?

Não terá sido a ganância da Europa? Não terá sido o petróleo invejado?
Por aqui e por ali, mundos fechados nos seus egoísmos, homens a negociar e a pensar nas  vidinhas, no dinheirinho que têm e na luta por terem mais? A pensarem no seu bem estar, no seu futuro, na sua promoção, até mesmo já na reforma.

 Tão actual o que escreveu William Blake!


"Some are born to sweet delight,
Some are born to endless night."

É o lucro, o ganho, a ganância quem comanda os homens. Há os que vivem como nababos e a gente que vive abaixo do nível de pobreza: de um modo indecente, imperdoável, na rua esses não têm nada.

E afinal como está o mundo? Não digo a palavra que queria dizer. O mundo não merece existir da maneira que é hoje. Dá-me vontade de gritar como na canção de Diane Krall:  Stop the world, let me out.
Tinha sido muito bom que assim não fosse, que o Homem seguisse os conselhos sábios de outros homens que foram sábios, que respeitaram o homem, que procuraram viver decentemente.
Penso nos Evangelhos, não é preciso ir muito longe; penso também no “Pirqê Abbot” ou “Moral dos mestres Judaicos, da religião hebraica. “Pirqê Abboth” - que se traduz “pirqê” como “estudo ou “lição”- e “abbot” os “Pais” (no sentido religioso): o  “Livro dos Pais”, “Ética dos Pais”, ou, metaforicamente, “Lições sobre Coisas Fundamentais”.
Dizia Josué, filho do Rabi Perachiah: “Na vida procura um Mestre, um amigo e julga os outros pelo seu lado bom”.
Quem procura hoje o mestre – se todos já sabem tudo? E o amigo ainda se procura nestes tempos de egocentrismo extremo? E quem é que não julga os outros, no dia a dia, sem os condenar à partida?
 
Rabi Hillel
E dizia Hillel, o suave Rabi que viveu no tempo de Jesus (2), que aconselhava o estudo como a coisa mais importante. Aconselhava também a considerarmos o “átimo que foge”, o momento fugaz que é o hoje e que é o mais longo lapso de tempo “porque todo o nosso passado e todo o nosso futuro convergem e vivem no tempo presente.”

E ainda:
Se não sou eu para mim, quem será para mim? O que sou? Ainda que pense em mim, o que sou? E se não agora, quando?”
A educação é sempre auto-educação, porque nada adquirimos nem aprendemos se não o quisermos. Devíamos aprender de todos, ouvir o que têm a dizer porque cada homem tem coisas a ensinar. Devíamos reflectir sobre nós: O que sou? Se não agora, quando? 
Quem tem tempo – e o agora é o tempo – não fique à espera de outro tempo. Porque esse momento pode não vir. Vivamos o presente, porque a nossa vida existe no presente. Actuemos no agora porque não bastam as palavras, deve haver gestos!
E lembro os meus mortos, os que amei e morreram, os que foram meus amigos e morreram, os que me ensinaram e morreram.
Ontem, a ver um filme de Spielberg que se referia à Guerra, e que falava do sacrifício de muitos para salvar um, do sacrifício de vidas inocentes para que os outros pudessem salvar-se, acabei por chorar. 
Pensei na minha amiga Susana Heffez que esteve dois anos num campo de trabalho na Polónia e, depois, em Auschwitz. Salvou-se na chamada “marcha da morte”. Essa ‘coluna de mortos-vivos’ de que ela fez parte conseguiu ser salva, nem sei bem como. 
Parece-me ouvi-la falar, na sua casa do boulevard Ben Gurion, em Telavive. A contar a história desses dois anos, os sofrimentos e humilhações, a fome, as imagens que ainda hoje lhe passavam na memória das mulheres nuas a serem levadas para os chuveiros, das quais muitas seguiam para as câmaras de gás. 
Vejo, ainda, a cor do número tatuado no braço – que me mostrou quando já éramos amigas.
Passaram 75 anos. Tudo passou? Não. Sabemos que não passou. O veneno acabou? Não. O veneno expandiu-se por muitos lugares diferentes. Há muitos séculos. E de vez em quando, como um vírus, acorda e ataca.
Esquecemos a Inquisição Portuguesa e a Espanhola no século XVI e seguintes? O modo como, na Lisboa desses tempos, por se arrancavam de casa os judeus que até então eram os vizinhos, os amigos até, e se degolavam, se levavam para a praça e serem queimados?
Esquecemos as crianças  que Dom João II enviou, em 1493,  para São Tomé porque a ilha precisava de ser povoada? Nessa altura havia crocodilos na ilha, segundo conta os historiadores do tempo. Por lá morreram quase todos com febres e malária. Ou dilaceradas pelos crocodilos -sabe-se que sobreviveram muito poucos.
Encontrei registo de nomes de origem hebraica, no cemitério de São Tomé.
 Dom Manuel segue a política do pai e, em 1497, manda que todos os judeus de menores de 14 anos fossem entregues a famílias cristãs. Houve muitos suicídios de judeus, pais ou filhos que se deitavam aos poços e morriam. Desses problemas fala Damião Góis na sua Crónica do Felicíssimo Rei Dom Manuel.
Ou o, tristemente famoso, "pogrom" de 1506 (3), de Lisboa?
"Lisboa estava assombrada pela peste que assolara a capital desde Outubro. Houvera secas (...) escasseavam os alimentos; a fome tomara conta da cidade e a minoria de judeus conversos, ou cristãos novos, começara a sentir-se insegura." 

Era domingo de Páscoa. "(...) naquele dia a igreja do convento de São Domingos estava cheia de cristãos-velhos" porque esperavam a repetição de um milagre que "acontecera"  dias antes. De repente, crêem que o milagre acontecera, mas um dos presentes, um cristão novo, explica que era a luz duma candeia a reflectir-se no crucifixo. 

Imediatamente, gritos de ódio, porque para eles fora um judeu a falar. Foi arrastado para a rua e mataram-no e queimaram-no, no Rossio. E o massacre começou com a multidão em fúria de casa em casa a matar, violar, queimar. "Heresia!, gritavam, morte ao povo abominável!"

Existem hoje no Largo de São Domingos dois monumentos que assinalam o massacre, onde são recordadas as vítimas.
Em 1523,  Dom João III cria em Portugal o Tribunal do Santo Ofício, a Inquisição. Quantos assassinados, queimados, torturados? E os que foram expulsos às centenas de milhar e foram parar à Holanda, à Alemanha? Toda a "diáspora" judaica que se criou então.
O antisemitismo existe muito forte, hoje, em lugares aparentemente tranquilos da Europa.  Alguns dos poucos sobreviventes da Shoah são diariamente insultados. Como Liliana Segre, escritora e mulher de Cultura.
Há grupos neo-fascistas, ou neo-nazis, em Itália, a bela e doce Itália. E na França, da Cultura e das Luzes,  na Polónia e na Hungria. Até na Espanha vizinha há um grupo de extrema direita. neo-franquista.

Surgiu uma extrema-direita racista, um neo-fascismo descomplexado que pretendem justificar a sua existência - que é, à nascença, injustificável.  
O racismo de pele ou de religião ou de “casta” esse também perdura - e mantém-se cheio de vida e de saúde.  Então para que serviu o sacrifício de tantos?
É tempo de mudar! E pergunto, como o Rabi Hillel (3)ou, mais recentemente, Primo Levi sobrevivente da Shoah: “Se não agora, quando?”
Sim, chorei, confesso, quando o filme acabou porque senti por breves momentos que já não acreditava no homem, nem em nada, sentia que “falhámos” todos.

Depois, de repente, uma notícia boa surgiu! O movimento que neo-nazi avançara há uns tempos na Itália, ligado ao partido 'Lega Nord', neo-fascista, de Matteo Salvini e o partido 'Fratelli d’Italia' de Giorgia Meloni - que se davam por vencedores - foram vencidos na Emilia Romagna!
Tive uma alegria grande. Conheço essa zona da Itália, há anos. Zona de "partigiani" durante a Guerra e nos tempos de Mussolini.
E penso: talvez não seja ainda o momento de desesperar, talvez os nossos ideais não tenham falhado.
Vejo a juventude que está por detrás desta vitória: um pequeno grupo - o Movimento das Sardinhas - de quatro jovens licenciados, entusiasmados ainda com a vida, acreditando ainda que não podemos desistir, esse grupo juntou gente nas praças de Itália de Milão até ao sul. 

O seu lema era: “Não vamos deixar que a Liga nos ate ou prenda! Vamos estar juntos na praça, como sardinhas enlatadas, mas vamos todos!
E assim começou o 'Movimento das Sardinhas' que teve a qualidade de “chamar” as pessoas para a rua. Teve a coragem de dizer: “Saiam do vosso comodismo, venham para a rua. Nunca é tarde se nós não desistirmos. Só tomam conta de nós, só nos ligam se nós deixarmos. Se formos muitos ninguém nos apanha!”
E foram aparecendo mais sardinhas: de papel, grandes e pequenas, prateadas, pintadas de azul, vermelho. 
Caso para lembrar outros tempos, os da nossa Revolução e da canção “Traz um amigo também”. Neste caso, “traz uma sardinha!”

E fico a pensar que nunca é tarde, afinal. E lembro o Rabbi Hillel: “Actuemos no agora porque não bastam as palavras, deve haver gestos!”
Se não agora, quando?

 ***

Bergen-Belsen

(1) Os primeiros campos a serem libertados pelo Exército Vermelho da Rússia foram em 27 de Julho de 1944 o campo de Majdanek, na Polónia. Mais tarde invadiram outros campos de extermínio.Em 27 de Janeiro de 1945 entraram em Auschwitz e encontraram milhares de prisioneiros exaustos, doentes, moribundos.Em 11 de Abril de1945, as tropas americanas libertam Buchenwald. Em 15 de Abril de 1945, o exército britânico liberta Bergen-Belsen.
libertação de Bergen-Belsen.
(2) O genocídio do Rwanda, conhecido pelo genocício “tutsi” foi um massacre de assa de pessoas dos grupos étnicos  tutsi, twa e hutus moderados no Rwanda. Ocorreu entre 7 de Abril e 15 de Julho de 1994 durante a Guerra Civil do Rwanda. (wikipedia)

(3)  O "pogrom" de 1506 em Lisboa é recordado com dois monumentos erguidos em 2008, no Largo de São Domingos onde inicia o massacre.