terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Olga Tokarczuk, a escritora polaca que foi o Prémio Nobel de 2018- PARTE I

A Academia Sueca atribuiu, em Outubro passado, o prémio Nobel de 2018 (que não foi dado nesse ano a ninguém) à escritora polaca, Olga Tokarczuk.  
Dois títulos da autora foram já publicados em Portugal na editora ‘Cavalo de Ferro’. Intitulam-se ‘Viagens’ e ‘Conduz o teu arado sobre os ossos dos mortos’, saídos ambos em 2019, depois de lhe ter sido atribuído o prémio. 

É este último que ando a ler e do qual quero falar. Não precisei de o comprar, foi prenda da Isabel Vaz, minha amiga e grande leitora.
Olga Tokarczuk, a escritora quando jovem

Refiro alguns dados biográficos da escritora que talvez já conheçam. Nasceu em 29 de Janeiro de 1962, em Seleshkhov (ou Sulechów), pequena cidade da Polónia. Os pais eram professores e passou parte da infância na aldeia de Klenica, perto de Zielona Gorá, onde o pai e a mãe ensinavam, na Universidade do Povo

Mais tarde a família muda-se para Kietrz. Olga licenciou-se em Psicologia, na Universidade de Varsóvia. Tinha uma grande admiração pelos trabalhos do psicólogo e psiquiatra, Karl Gustav Jung (1).

Depois da licenciatura, trabalhou num hospital como especialista de “problemas ligados a dependências”.

Casou, teve um filho, a vida seguiu em frente. No entanto, cinco anos mais tarde, teve de abandonar o trabalho porque se sentia deprimida – "mais do que os próprios doentes que tratava".
Em 1989, sai o primeiro livro, uma colectânea de poemas a que chama Miasta w lustraché (intraduzível para mim). Pouco depois, aparecem os romances que foram um sucesso, sobretudo"E.E."
O prémio atribuído a Olga Tokarczuk pretende "premiar uma imaginação narrativa" que, “com paixão enciclopédica, representa o cruzamento de fronteiras como uma  forma de vida”. 
Em 2018, a escritora foi finalista do Prix Fémina Etranger e, nesse mesmo ano, ganhou o prémio internacional de Literatura Manbooker Prize. A obra de Olga foi seleccionada pelo jornal The Guardian como um dos 100 melhores livros do século. Recebeu duas vezes o Prémio Nike - o mais importante no seu país.
Olga Tokarczuk – segundo a notícia que li - é, ainda, premiada porque “nunca vê a realidade como algo estável ou permanente” e “constrói os seus romances numa tensão entre opostos culturais”.
E a 'notícia' explicita esses opostos: ‘natureza/cultura’; ‘razão /loucura’; ‘masculino/feminino’; ‘casa/alienação’; ‘vida/morte’.
Esta última luta de “opostos”, ‘vida/morte’ está presente, obsessivamente, na Literatura de todos os tempos.
Do complexo  binómio Vida-Morte falou Giorgio Voghera, escritor italiano e triestino, que muito sabia da vida e da morte: um dos seus livros intitula-se, precisamente, “Nostra Signora Morte” (2).
Recordo alguns dos versos lúcidos que servem de epígrafe no livro e se poderiam adaptar à realidade quase macabra deste romance de Olga Tokarczuk.
La vita à una splendida tragedia
e la morte il suo perfetto epilogo."
"Il segreto della vita è
dimenticarsi della morte.
Il segreto della morte è
accompagnarla come un'ombra”.

No Brasil, os livros têm títulos diferentes: "Vagantes", o primeiro e "Sobre os ossos dos mortos" o segundo, com uma capa muito alusiva ao livro. A obra de Olga foi seleccionada pelo jornal The Guardian como um dos 100 melhores livros do século.

Por que me interessa o livro? Creio que, acima de tudo, pela humanidade das histórias simples, por vezes absurdas, das vidas anónimas e sem história. Neste caso, gentes perdidas num deserto gelado que bem poderia simbolizar o da indiferença deste mundo.

Segundo a notícia que li sobre este Prémio Nobel - a escritora foi premiada também pelo sentido da impermanência da vida. 
Ela “nunca vê a realidade como algo estável ou permanente” e “constrói os seus romances numa tensão entre opostos culturais”. Interessa-me este conceito de “impermanência” que é um tema passado e  sempre actual.

"Nada é estável ou permanente",   escreve ela e já o pensava Matias Aires (1705-1763). E escrevia em finais do século XVII (3): "Tudo no mundo são sombras que passam; as que são melhores e mais agitdas, duram mai horas mas também se extinguem." (Fragmento 29, das "Reflexões")

Tudo passa, tudo flui na vida dos homens - era o pensamento de Camões  - sobretudo no soneto "Mudam-se os tempos/mudam-se as vontades". E, antes dele, vários escritores o terão referido.

Referem-no os Salmos, por exemplo (Salmo 39: 6,7 "Com efeito passa o homem como uma sombra; em vão se inquieta; amontoa tesouros e não sabe quem os levará."
 Sim, como é fugaz a passagem do Homem, escreve Matias Aires - autor tão interessante e tão esquecido, que foi famoso em França. 


Quero apenas dizer algumas palavras sobre ele. Nascido no Brasil, na cidade de São Paulo, estuda em Portugal e depois na Sorbonne - onde absorve as ideias e pensame
Matias Aires era “um céptico e rebelde, um misantropo, isola-se, prefere viver à margem da sociedade, meditando, e dizendo dela as mais duras verdades” (3).
É um espírito “a cavalo” entre o século XVII – a filosofia dos ‘jansenistas’ - a abertura dos Iluministas do século XVIII. 
A obra de Matias Aires revela, como a de La Rochefoucauld (1613-1689), uma opinião radicalmente pessimista sobre o homem.
Tudo passa, tudo se escoa, mas a falta de mudança é a falta de vida (...)no  meio de toda essa metamorfose que é a vida o nosso pensamento é a sombra de uma vida.” (fragmento 102).
Sobre a impermanência: 
"Em nada podemos ser firmes, pois vivemos no meio de mil revoluções diversas: as idades e a fortuna combatem as nossas constância. (...) Vimos ao mundo a mostrar-nos, a fazer parte da diversidade dele; parece que as coisas vão fugindo, até que nos vimos a desaparecer também. Somos formados de inclinações opostas entre si, e temos em nós propensão oculta que, sob a aparência de buscar os objectos, só procura neles a mudança."
Impermanência, opostos. Continuando a lembrar o livro que aqui me trouxe, interessa-me saber o que pensa uma pessoa que “conhece” o significado das fronteiras transponíveis, a começar pela sua Polónia, país invadido.
A páginas 58 do livro ‘Conduz o teu arado sobre os ossos dos mortos’, leio: “sem dar por isso, acontece-me com frequência, atravessar a fronteira durante as minhas rondas. Mas, às vezes, fazia-o de propósito porque gostava de atravessar intencionalmente, de ir e voltar.”

O que entenderá a escritora por “representar o cruzamento de fronteiras como uma forma de vida”, de que fala o texto que a premia?
Uma “forma de vida”: atravessar fronteiras, abrir portas fechadas, entrar onde não somos esperados, nem desejados? Este é hoje um tema angustiante - que o foi sempre afinal. O estrangeiro é indesejado.
Ou talvez não...basta pensar que Olga é hoje Prémio Noel de Literatura.
E qual a história do livro, afinal? 
Janina Duszejko é uma solitária que vive longe da aldeia mais próxima. Perto da fronteira com a Checa, num Planalto onde os rigores do Inverno se fazem sentir, ali encontrou o seu equilíbrio, isolada, vivendo um dia depois de cada dia. 
Na aldeia, consideram-na louca, mas ela não se importa com isso. “Louca varrida!”, chamam-lhe.
O nosso lugarejo não é mais do que meia dúzia de casas situadas no Planalto, longe do resto do mundo" - limita-se ela a comentar. (pg.26)
Às suas considerações sobre os habitantes da aldeia, as viagens, junta-se um pouco da sua filosofia e da reflexão sobre assuntos de que muitos não querem que se fale: loucura, injustiça, indiferença, marginalização, abandono. 
A protagonista gosta de animais e vai-se revelar uma defensora dos direitos dos animais. Gosta dos seres que vivem na floresta, em liberdade e confiantes, sem desconfiarem das ciladas mortais dos homens. Tem duas cadelas a quem chama sempre “as minhas meninas” e dormem no quarto dela.
Atrás da casa, fez um cemitério onde já enterrou “uma Gata meia selvagem", que morrera durante o parto, com os filhotes, um Gato velho abandonado, uma Raposa morta pelos trabalhadores da floresta que disseram que tinha raiva; algumas Toupeiras; uma Corça que os cães tinham matado à dentada. Todos tinham a sua campa com uma pedrinha em cima.
Tem dois vizinhos - que moram relativamente afastados e, assim, podia viver tranquila uma vida pacata. Tem a televisão ligada “o dia inteiro desde o pequeno almoço”, porque lhe traz calma, acompanhando a sua solidão.
Janina interessa-se por signos astrais, horóscopos, astrologia e cosmologia e, na televisão, procura os programas sobre “Influências Cósmicas”.
Quero saber mais sobre uma pessoa que “conhece” o significado das "fronteiras transponíveis", talvez pela própria situaão histórica do seu país.
A páginas 58 do livro, ‘Conduz o teu arado sobre os ossos dos mortos’, leio: “sem dar por isso, acontece-me com frequência, atravessar a fronteira durante as minhas rondas. Mas, às vezes, fazia-o de propósito porque gostava de atravessar intencionalmente, de ir e voltar.”

O que entenderá, porém, a escritora por “representar o cruzamento de fronteiras como uma forma de vida”, de que fala o texto que a premia.
Divide o tempo livre a fazer horóscopos e a ler e analisar o livro das Efemérides Cósmicas 1920-22. Anda também a traduzir o poeta William Blake. 

A ideia da tradução é mais uma história interessante do livro. Fora ideia de Dionizy. 
Dionizy tinha sido seu aluno e costumava chamar-lhe Dyzio. Trabalhava agora nos Correios e encontrara-o há pouco tempo, quando foi levantar uma encomenda de livros.
Não se viam há anos e Dyzio não a reconhecera. “É a Senhora Professora?” perguntou, indeciso. (op.cit. pg 76). Mas a história da tradução fica para apróxima "crónica"!

Uma “forma de vida”: atravessar fronteiras, isto é, abrir portas fechadas? entrar onde não somos esperados, nem desejados? É hoje um tema angustiante - que o foi sempre, afinal. 
O estrangeiro é um indesejado! 

De onde vimos? Para onde vamos - ou regressamos? Conta o dia que passa, de mais nada temos a certeza. Estamos de passagem. Somos viajantes, somos .estrangeiros, por vezes indesejados. De passagem...
Porque "o homem é semelhante a um sopro; os seus dias são como a sombra que passa". (Salmo 144.4)

Continuarei a contar coisas sobre o livro. Para já, digo que é uma leitura que me tem tido 'presa'. A autora tem uma linguagem viva e clara, com personagens que acabamos por conhecer através dos olhos da protagonista, Janina, desenhados como se os víssemos num filme - o que é uma qualidade rara!
Aconselho que comecem a ler "Conduz o teu arado sobre os ossos dos mortos.

***
 (1) Karl Gustav Jung nasce em 1875 e morre em 1961. Foi psicólogo e psiquiatra suíço fundador da escola da Psicologia Analítica. Tão importante como Sigmundo Freud, é, talvez, menos conhecido. Desenvolveu os conceitos de personalidade introvertida e extrovertida e do inconsciente colectivo.  Dele a frase: “Pensar é difícil, por isso a maior parte das pessoas prefere julgar.” 

(2) Giorgio Voghera nasceu em Trieste em 1908 e morreu em 1999. Escritor, ensaísta, personalidade muito famosa da realidade triestina.

(3) O livro Conduz o teu arado sobre os ossos dos mortos, publicado em 2009 na Polónia, saiu na editora Cavalo de Ferro, em 2019, com tradução de Teresa Fernandes Swiatkiewicz. O livro Viagens foi publicado, pela mesma editora, a seguir à entrega do Prémio Nobel.
(4) Matias Aires Ramos da Silva Eça (1705-1763), filósofo do século XVII, português nascido no Brasil, que estudou em Portugal e em Paris, na Sorbonne.

Escreveu “Reflexões sobre a Vaidade dos Homens e o conceito de “impermanência”, publicado em 1752.

Refiro  a edição de 1966 - Edição da Livraria Martins Editora, São Paulo, prefaciada por Tristão de Ataide (Alceu Amoroso Lima).
https://www.filosofiaesoterica.com/reflexoes-sobre-a-impermanencia/ 

Entrevista sobre Olga Tokarczuk, em The Guardian:

3 comentários:

  1. Fiquei com muita vontade de o ler. Ainda não o tenho, mas vou comprá-lo.
    Fico contente que esteja a gostar.

    Beijinhos e saudades:))

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  2. Querida Maria João, gostei muito de ler e saber.
    Fiquei curiosa: a invasão da Polónia pelos nazis, a ocupação eslava e por geograficamente continuar a ser um corredor entre duas nações que não se simpatizam; são factos que devem ter urdido personalidades e mentalidades especiais.
    Tenho uma publicação sobre um filme polaco.
    Dias harmoniosos e aconchegantes.
    Beijinhos
    ~~~~

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