terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Lamento Cigano

 


Eduado Viana, Pousada cigana

“Intensa nos meus sentimentos, alma livre e cigana, vivo e deixo viver...”

 escreve a poetisa cigana, Cezarina Devos Macedo

 

http://cozinhadosvurdons.blogspot.com/2016/04/conversas-na-cozinha-dos-vurdons-eu.html

 

domingo, 11 de fevereiro de 2024

Livros que nos encantam: “No Alentejo, uma Vida” e “Como nuvem ou pássaro” de Maria Malzbender

Nos últimos tempos tenho pensado nas pessoas sensíveis, com uma sensibilidade artística, que viveram perto de ambientes de Cultura - e que teriam tantas coisas a dizer sobre a própria vida, sobre as leituras, sobre o que viveram, pensaram e sentiram. Gente que ficou silenciosa e nunca escreveu.

 
"A leitora", de Robert Thegerström

Lembro pessoas que me foram próximas, a minha mãe por exemplo, uma leitora extraordinária, que amava o piano e o tocava de modo excelente segundo dizia um dos seus professores no Conservatório cujo nome (evidentemente) não recordo.

 
O escritório do meu pai

A Primavera despertava-a para o piano. Ela revivia, saía de uma forma de letargo, e todos os dias  nos despertava para a beleza da música e dos livros. Ela e o meu pai. Lia muito a minha mãe. Um canto numa das estantes  era reservado para os livros dela. 

 
Nele encontrei livros e autores que na altura as mulheres não liam. Stephen Zweig, por exemplo, “Vinte e quatro horas da vida de uma mulher” ou “Carta de uma desconhecida”.

Gostava de Georges Sand, de Jane Austen e de Sigrid Undset. Tenho ainda os três volumes do romance “Christina Lavransdatter” que herdei dela. Adorava todo o Charles Dickens, sobretudo este livro que ainda tenho, "Pickwick's Club", na tradução portuguesa da maravilhosa "Edição Romano Torres".

Lia também escritores brasileiros Ligya Fagundes Teles, Jorge Amado, Graciliano Ramos e José de Alencar. Lembro-me de ouvir a minha mãe rir com o desfecho do livro "A pata da gazela". Guardei - recordação dela- dois livrinhos com as lendas tupi-guaranis, "Ubirajara" (o Senhor da lança) e "Iracema" (Lábios de mel). 

Nasci rodeada de livros e isso foi um bem enorme. Éramos três irmãs e todas líamos muito. Sim, penso hoje que a minha mãe era uma dessas mulheres. Talvez o facto de ter vivido na província tenha dificultado a sua aspiração, acredito. E acredito que ela teria gostado, e talvez tenha pensado - com a imaginação criadora vivíssima que era a sua – em escrever. Essa imaginação usava-a para nos contar as histórias mais espantosas que ela inventava.
E foi a propósito de muitas destas coisas que hoje vim falar de um livrinho que recebi ontem. Estava na caixa do correio há dias mas eu não gosto de ir ver o correio, já não espero nada.

É um livrinho da minha terceira irmã, a mais nova. Sempre escreveu poemas desde a adolescência que publicava com um pseudónimo, Ana Gabriel, na "Rabeca". Nunca deixou de os escrever. Desenhou. Pintou. Tocou guitarra clássica. Cantou em  "Coros". Arranjou jardins. Escrever creio que nunca parou de o fazer.

Foi sempre “escrevinhando”, como dizia o meu pai – outro que tanto teria desejado ser escritor. Dizia o meu pai que como médico tinha muitas coisas a dizer, em que pensava continuamente mas que exactamente a sua actividade médico não lhe permitia ser escritor porque ser médico tinha de ser uma dedicação total.

Às vezes falava de Anton Tchekhov que muito admirava, fascinava-o a sua simplicidade e profundidade. Sim, "Tchekhov, escritor e médico" e encolhia os ombros numa desculpa e, com um ar tímido, dizia: “mas hoje em dia há muita coisa para se estudar, tudo evolui a uma tal velocidade. No tempo do Tchekhov não era assim.

Depois da Revolução dos Cravos, a do 25 de Abril, o meu pai começou a publicar, numa espécie de folhetins a sua história -que intitulara: “Evocação das Raízes”. Pouco tempo durou a publicação - um dia contarei com vagar o porquê dessa sua desistência. 

Marcou-nos muito o nosso pai, como é natural um pai marcar. A minha irmã Mamé que viveu mais anos próxima dos pais -porque nós as outras irmãs casámos muito cedo - ouvia-o muito. Toda a sua vida foi marcada por ele.

Casou e foi viver para a Alemanha com o marido, médico. Amava o seu Alentejo, como todas nós. Vinham passar as férias de Verão a Portalegre e, assim, a conversa entre ela e o meu pai continuou.

Alguns anos depois do meu pai morrer, a minha irmã – que assina Maria Malzbender - escreveu uma curta lembrança: “No Alentejo – Uma Vida”, com fotografias de Adalrich Malzbender, seu marido.

Nesse livrinho fala de conversas com o pai e sinto que, no fundo, é a "promessa" de ser ela a "falar" por ele e a continuar as “evocações” que o meu pai não terminou. Talvez nessas lhe tenha pedido que as continuasse por ele.

O texto é curto mas fala dos longos diálogos em que foi sabendo mais particulares pouco falados da vida do nosso pai. Diz que, a dada altura, começou a escrever num caderno essas conversas com o meu pai. Com certeza, espero, terá apontado muita coisa - "conversas" que por aí hão-de aparecer um dia...

Muitas vezes imagino que volto a estar com o meu pai e recordo com saudades as nossas conversas na minha casa na Alemanha, algumas delas muito pouco tempo antes de nos deixar para sempre. E muitas, aqui no campo, no meio da Serra.

Decidi um dia apontar num caderno tudo o que me contava da sua vida, pois senti que o meu pai gostava que eu conhecesse as suas histórias. Referia-se à sua infância com imensa emoção, nunca esquecendo a “sua gente”. Sempre com o seu imenso protesto perante a indiferença dos outros.”

E mais adiante:

O meu pai nasceu no Alentejo, no alto duma serra, numa casa pobre e tosca, ao lado dum pinhal bravo, que nas noites ventosas ‘ramalhava’ agonias. 

 
foto de Adalrich Malzbender

Entre o céu e a terra. Terra dura, terra árida. Terra de cardos e carqueja. Havia apenas o vermelho de algumas papoilas e o amarelo de uma velha giesta. E uma pequena figueira perto da casa, que o alegrava se via nela um figo maduro.”

Continua:  “O meu pai não parava de se interrogar, já adolescente, sobre o futuro que queria. Depois da escola, começou a trabalhar numa serralharia e pensava: “queria ser serralheiro mecânico? Aceitava esse destino ou queria ir mais longe, saltar da sua condição de camponês miserável e tentar perscrutar as alturas?”

                                            foto de Adalrich Malzbender

Nos nossos diálogos o meu pai insistia muito na expressão: “a caminhada da vida, onde se devia procurar o Absoluto, o real invisível, a visão alta.”

(Interrompo eu. Penso que o nosso pai terá atingido o que sempre desejara. E esta imagem, ele a contemplar a Vitória de Samotrácia - a estátua que era um dos seus absolutos - é a prova de que conseguiu o que procurava: "o Absoluto, o real invisível, a visão alta".)

Continua Maria Malzbender: 

Às vezes dizia: “A fonte da verdadeira harmonia está naquilo em que nós acreditamos.” Ou, então: “O homem realiza-se por aquilo que faz, quer seja uma trabalho manual, intelectual ou criador, onde aí a sua individualidade se forma e a consciência de si próprio. (...) 

Todos nós somos responsáveis e nos devemos uns aos outros, numa vida horizontal, de ajuda mútua”, afirmava sempre insubmisso, sempre à procura de “uma quimera invisível”. Eram estas as suas palavras.

(Impressiona-me a leitura. Quantas vezes ouvi ao meu pai estas conversas, este seu desejo de absoluto, a visão clara mas complexa das coisas, a visão poliédrica, palavra muito importante para ele. Tive pena de não ter conversado mais com ele, mas havia entre os dois uma forma de entendimento no silêncio. Eu tornara-me numa pessoa silenciosa e tímida. Mas era tão bom ficar sentada ao pé dele a olharmos para as mesmas coisas.)

Pego agora no outro livro de Maria Malzbender - o que recebi ontem. O livro intitula-se Como nuvem ou pássaro” e nele é a poesia que sobressai. 

 Começa com uma “Carta para Eugénio de Andrade”. O poeta Eugénio de Andrade  que conheceu ainda nova, era um poeta que amava desde a sua adolescência. Um dia foi procurá-lo. O poeta gostava de a ouvir e, suponho, sentia amizade por ela. Teve uma longa correspondência com o poeta. Fala aqui desse encontro.

Gostaria de voltar a ligar para sua casa...mas o poeta partiu

e a sua viagem é longa. Sei que não nos encontraremos nunca mais. Escrever-lhe? Sim, escrevo muito

Também sei que, nesse mundo onde está agora, não me pode responder, e assim guardo as minhas cartas por dispersas em todas aquelas ilhas dispersas, onde estou a sós comigo.

Nelas me encontro de novo naquela tarde de Abril, a conversar consigo em sua casa, as palmeiras e o rio ali ao lado e eu trémula de timidez pelo seu inesperado convite, a olhar as rendilhadas de luz que espreitavam pela janela e logo desciam na parede branca como fios de prata, na sua secretária de mármore, na sua voz suave...

Escrevera o poeta:  Gosto das palavras que sabem a terra, a água, aos frutos de fogo no Verão, aos barcos no vento; gosto das palavras lisas como seixos, rugosas como pão de centeio. Palavras que cheiram a vento e a poeira, a barro e a limão, a resina e a sol...”.

E eu falava do que gostava, da frescura dos verdes diferentes do meu velho jardim, do pequeno lago com nenúfares, das trepadeiras a embaraçar-me nos caminhos, do cheiro a erva molhada e dos cachos azuis da glicínia...

Foi o Alentejo que talvez me tenha aberto a sua porta, o fascínio do poeta pela alvura de cal, pela luz, pelos campos pasmados, pela nobreza da terra agreste e os horizontes rasos.

E foi, através dessa porta, que eu tentei caminhar para o que me liberta e é singelo e solto, e que como o vento nos leva, a gostar de ser nuvem ou pássaro...

Seria bom ser nuvem ou pássaro.

 
Pássaro Azul, de Júlio Resende

Depois desta espécie de “Introdução”, de que citei algumas passagens, seguem-se quatro poemas e um texto em prosa. Como no girar de um carrossel imparável, voltam as recordações de infância e a marca profunda que deixaram na autora.

 A despedida da mãe” é uma ode de ternura pela nossa mãe e é dedicada aos filhos, Miguel e Manuel;

 
O meu pai, desenho de Umberto Sartori, veneziano

No poema “Naquele jardim Julho 2013” é a imagem do pai que perpassa, num dia de Verão, muito anos depois da sua morte noutro Verão, em Agosto. 

O poema é dedicado ao neto mais velho, Lucas.

 
Verão, de Auguste Renoir

No poema seguinte, “Simplesmente usar o coração”, refere a importância da lição do pai, do seu amor pelas coisas simples da natureza como as florzinhas sem nome que encontrava nos seus passeios pelos campos - e tantas coisas mais.

 

as madressilvas

“Ela recorda o pai,/recordá-lo/é ter um tecto,/uma ilha, /um farol,/é reviver o afecto, /o amor,/a confiança,/é ser cúmplice da verdade,/ e do respeito,/é recusar o ódio,/a intolerância,/a violência.”  

Não tem dedicatória – será com certeza para todos os que conheceram o "pai".

O quarto das bonecas” é outra recordação: o quarto cujas paredes a nossa mãe pintou com bonecos.

 
"as flores de cores garridas, as joaninhas"

Pintou as paredes brancas com desenhos feitos a caneta de feltro, de cores diferentes, com uma imaginação e uma delicadeza extraordinárias.

 Durante anos e anos aquelas paredes me emocionaram sempre também. No fundo é uma poesia em prosa e é dedicada à neta mais nova, a pequena Sara.

  

"os meninos"

 Lá estavam eles, os “meninos”, o sol enorme colado ao tecto, as flores de cores garridas, os pássaros, as joaninhas, as árvores com folhas muito abertas, as borboletas, os balões a voar, a menina suspensa no papagaio, feliz por estar tão perto do céu e das nuvens.”

 

"a menina suspensa no papagaio "

E tu vieste” é o último poema e é dedicado ao marido, Adal Malzbender, com quem partilhou esta sua vida e que ilustrou os dois livros com fotografias.

Terminei a leitura dos dois livrinhos com o coração apertado, tantas são as recordações vividas com ela, minha irmã pequenina, tanta a amizade e as brincadeiras desde sempre. Digo só que foi uma alegria muito grande ter lido o que a minha irmã escreveu e ter aqui falado dela. 

  

Maria Malzbender, há uns anos, em minha casa

***

 (1) Os dois livrinhos são "edições de autor", criadas na "LOADING" tipografia/informática, de Portalegre. "Criadas" porque se trata de uma real "criação": as edições foram muito cuidadas, quase "com amor". Só em Portalegre, claro (estou a brincar...).

(2) Os "guaranis" formam o maior povo nativo, em quantidade de indivíduos, vivendo no Brasil. Eles são originários do tronco da família linguística tupi-guarani.

  https://www.todamateria.com.br/cultura-tupi-guarani/