domingo, 27 de novembro de 2022

O Ratinho e o Ouricinho estão tristes

A verdade é que a tristeza deles não é só de agora. Há algum tempo que os sinto murchos, sem vontade de brincar. Confesso que pensei que a culpa era minha. 

Tenho um sentimento de culpa desde que o Zev veio para cá. Mas no fim percebi que eles estavam sentidos por não terem ido connosco a Trieste.

Perguntei-lhes o que tinham mas a resposta veio devagarinho. O Ouricinho veio pegar-me na mão e encostou a cabeça no meu colo.

- O que foi, Ouricinho querido?

Ele olhou para o Ratinho como que a perguntar se estava a fazer bem e vi que o Ratinho acenou com a cabeça com um ar grave.


- Achamos que já não gostas de nós como dantes. Era tão bom estarmos contigo. Havia brincadeiras, plantávamos tomates, íamos espreitar o casal de pombinhos que viveu na varanda. Tocávamos aquele instrumento musical que trouxeste e Marrocos que é tão lindo.


E da última vez que foste a Trieste levaste-nos contigo. E no ano passado fomos a Roma! E agora tu...

- Agora eu o quê, Ouricinho?

Foi o Ratinho Poeta quem respondeu.

- Bem, agora és outra pessoa. Não nos levaste contigo, não precisas da nossa companhia. Afastaste-te de nós. De tudo. De todos. O que te aconteceu, Jana? Só gostávamos de saber.

- É isso - acrescentou o Ouricinho. Pareces outra pessoa. Desinteressada de nós. E Trieste era uma cidade tão bonita. Adorámos lá ir! E fomos a Roma no ano passado!

Percebia que estavam magoados, mas a viagem a Trieste tinha sido adiada tantas vezes por motivos vários, até por doença. Depois foi tudo preparado a correr. Como explicar àqueles dois seres maravilhosos o que acontece às pessoas quando estão cansadas? Sentem que estão a afastar-se da juventude - a envelhecer? Que têm medo até da morte? Quando as coisas começam a perder algum encanto e sentimos o tempo a passar cada vez mais rápido e nós cansados. 
Como aquela ampulheta do filme de Visconti (1) que de início está cheia de areia fina cor de rosa e corre devagar, devagar. Mas quando está a chegar ao fim, vemos a areia deslizar rapidamente e sabemos que
em breve estará vazia a parte anterior da nossa existência.
 Não se sabe, não se pode explicar porque nem nós sabemos por que mudámos por isso não há nada a explicar. É o nosso pensar que nos leva atrás a mundos distantes que vimos e nos lembramos de pessoas perdidas que gostaríamos de recuperar ou apenas voltar a ver.
- Talvez porque estou mais velha...

O Ratinho não me deixou continuar, irritado:

- Tu, velha? Nem é verdade. E isso não é desculpa, as pessoas são o que querem ser na vida - e a idade não tem que ver com isso. 

Acenou com a cabeça e continuou, convencido.

- Só envelhece quem se deixa envelhecer! Existem jovens que já são velhos, não é? E existem também pessoas com mais idade que são jovens. Jovens de espírito, abertas às novidades, que não se fecham em mundo obsoletos!

Tive que me rir com aquela palavra do Ratinho - obsoleto! 

- Sim, tens razão. Eu sinto-me jovem de espírito.

- Então por que mudaste de atitude? Pareces assustada com tudo, ansiosa. Foi por o Manuel ter estado doente?

- Sim também isso, as preocupações deixam-nos cansados e absortos em muitos problemas e esquecidos de outros.

O Ouricinho fez uma festa na minha mão.

- Eu percebo o que se passa dentro de ti, eu senti porque sinto tudo o que tu sentes. Tudo de preocupa mais agora. Vês morrer algumas pessoas e não gostas. Mas o Manuel está bom e bem vivo!

- Sim, isso fez-me mal. Mas a Lívia...
- Sim, percebo, a Lívia era tão divertida com aquelas gargalhadas engraçadas!

- Sim, Ratinho, a Lívia faz-me muita falta. 

Comecei logo a comover-me. 

- Éramos duas garotas quando nos encontrámos no Liceu de Castelo Branco. Tínhamos a vida pela frente e muita alegria. Ficámos amigas. Acreditávamos. Acreditar é ter confiança, não ter medo de nada.  

Acreditávamos na Utopia, tínhamos ideais e vivíamos esses ideais e não tínhamos medo de nada, a morte andava tão longe. Era o tempo de descobrir as novas leituras que nos marcariam para a vida inteira. Ríamos e é tão bom rir.

- Claro, mas eu e o Dany também fomos crianças e brincávamos muito. Quando nos levavas à piscina, lembras-te? Na vida temos de reagir e não deixarmos que a melancolia nos invada – tu estás muito melancólica, de olhar perdido. Jana, volta a rir!

O Ouricinho interrompeu-o:

- Ela tem razão, coitada, até morreu a Zé Saraiva de Celorico. Ela gostava muitos das histórias que tu contavas sobre as nossas aventuras.

O Ratinho perguntou:

- Era amiga do Manuel em pequenina, não era?Acho que ele me contou. O Manuel viveu muitos anos no 1º andar da casa dela. Os pais dele tinham aquela casa alugada sempre para irem passar férias e o Manuel passava lá grandes temporadas.

- Sim, a Zé também foi embora. E outros amigos. Estou triste às vezes e tenho saudades. 

Suspirei, eles não tinham culpa e de facto tinha sido muito distraída com eles. E sabia bem como são ciumentos e, sobretudo, como precisam de atenção. Perguntei:

- O que posso fazer para ficarem contentes?

O Ratinho disse:

- Primeiro, não falar de coisas tristes. O Manuel está bom, tu estás bem. Estás não estás? Lembras-te da vez que fomos os dois para aquele lugar de onde se via o rio? Estavas doente e eu fiz-te companhia.

Sim, era verdade. Recordava bem as vezes que me abraçara a ele e limpara as lágrimas no pelo branquinho do meu amigo. Tinha sido um período duro mas tinha passado.

 

Eles têm-me ajudado tanto. As nossas brincadeiras na varanda, a plantação dos tomateiros, na cozinha. Ou a pintura do Monet que eles gostam com as anémonas ou as verduras que eles escolhiam para as fotografias terem mais cor! A vida tem de andar em frente!

- Olhem querem saber? Lembrei-me agora de uma frase de John Steinbeck. “Voltar ao passado? Ficar parado a pensar? A recordar? Arriscamo-nos a nunca mais andar em frente.”

- Tinha razão o Steinbeck, vês?

O Ratinho estava contente. Gostava que eu falasse de livros e de escritores. O Ouricinho perguntou-me.

- Já não estás triste?

-Não. Vamos dar uma volta à varanda. Choveu e deve estar tudo tão bonito.

A varanda estava linda, brilhava um pouco de sol depois da chuva e as flores pareciam frescas como se molhadas pelo orvalho da manhã.Tinha-se levantado um pouco de vento.

- Vês os teus hibiscos!? disse o Ouricinho. E ainda há um tomate por aqui perdido e já está a chegar o Inverno.

O céu estava de um azul impressionante e as nuvens pareciam bolinhas a flutuar em cor-de-rosa vivo com riscos horizontais escuros, onde brilhava uma lua prateada, um fiozinho de prata quase invisível, em quarto crescente.

- Lindo que está o meu hibisco amarelo! 

Lá estava uma flor amarela aberta a começar a encolher as pétalas para a noite.

- O céu desta cor anuncia vento – disse eu. Amanhã vamos ter muito vento.

O Ratinho só disse:

- Tu gostas do vento e nós também gostamos quando ele faz bater a chuva nos vidros.

- Gosto muito de ver a chuva na janela! E quando põe as árvores a agitarem-se no jardim do liceu. E fazem aquele barulhinho shshsh...
- Ouricinho, sim, amanhã vamos ver o que se passa com as árvores que se vêem do meu quarto com este vento. Tem uns ramos perigosos que ameaçam cair.

E viemos para dentro – e eu a pensar como era fácil pô-los contentes. Bastava um bocadinho de atenção, de ternura. Como todas as pessoas, afinal. Não conseguira dizer-lhes a verdade do meu aparente afastamento: a preocupação com a saúde do Manuel e como ele viera cansado de Trieste. Mas disso falaremos outra vez.

(1) "A morte em Veneza", de Luchino Visconti, um dos filmes que o Manuel mais amava.

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Um escritor policial que vem do Japão

 Numa “bancarella” da Piazza Attilio Hortis, em Trieste, comprei três ou quatro policiais, um deles da autoria de um autor japonês, cujo nome é Yokomizo Seishi (1).

Nunca tinha ouvido falar dele, mas fui procurar e sei hoje que é um escritor muito apreciado na sua pátria pelos amadores de policiais. O livro intitula-se em italiano “Il detective Kindaichi”. (2)

Traduzido em inglês como “The Honjin Murders” (3), é um romance de mistério. Foi publicado em folhetins na revista japonesa “Houseki” entre Abril e Dezembro de 1946 e ganhou o primeiro Mistery Writers Of Japan Award, em 1948 – o Grande Prémio de Escritores de Mistérios do Japão.

A particularidade deste escritor é a sua escolha de casos policiais do “subgénero” do “quarto fechado”. Os enigmas lugares sem saída onde ocorrem crimes geralmente violentos – que segundo a lógica, não podem ter acontecido!

Enigmas porque não se consegue perceber "normalmente" o modo como o crime foi cometido - quando não havia  nenhuma saída para o assassino escapar. Sendo o crime cometido nessas circunstâncias – como pôde o assassino fugir de uma sala, ou um quarto, geralmente fechados à chave por dentro e sem nenhuma outra saída.

Houve ao longo dos tempos vários romances policiais desse tipo. Podemos lembrar por exemplo, em França, Gaston Leroux e “Le Mystère de la chambre jaune”, mistério famosíssimo.

No Reino Unido, o inglês Conan Doyle e “O Mistério da Cela nº 13”, onde Sherlock Holmes desvenda um mistério considerado indecifrável. Ou Agatha Christie com o terrível livro “Os dez negrinhos”. 

 Na América John Dickinson Carr distingue-se e outros como Ellery Queen que, em 1934, publica “O mistério da laranja chinesa”. Todos estes autores publicado muitas vezes na nossa Colecção Vampiro. 

O próprio detective de Yokomizo Seishi, Kazuko Kindachi, refere a semelhança entre o caso que tem em mãos e os romances de Dickinson Carr (4) como “O Chapeleiro doido” e “A  casa enfeitiçada”.

No Japão, de facto, chamavam a Yokomizo Seishi o John Dickinson Carr japonês. O autor pertence ao grupo de escritores que se dedicaram ao romance de “mistério do quarto fechado” ou “do crime impossível”, os chamados enigmas do “locked-room” ou mistérios do “impossible crime”.


Em francês o livro chama-se "La hache, le koto et le crysanthème". O detective Kandaichi é uma figura de anti-herói, desastrado, sem charme e além do mais gago mas tem óptimos dotes dedutivos. Vê-se “desafiado” para um caso extremamente difícil e decide que vai resolvê-lo. 

Numa aldeia japonesa no ano de 1937, dois jovens morrem na noite do casamento no quarto completamente fechado - cujo chão e paredes estão manchados de sangue. Acabados os festejos todos vão dormir mas a meio do silêncio da noite ouvem-se gritos de terror que parecem vir da dependência onde dormiam os esposos.

No entanto, a presumível arma do crime – um sabre de samurai – é encontrado fora do quarto, enterrado na neve.

da pintora  Shoen Uemura, As quatro estações
 Shoen Uemura
 
É então que tio da jovem e bela assassinada, Katsuko, o tio Ginzo que viera ao casamento dela, decide chamar Kindaichi seu amigo e protegido.

Enterrado, porém, não está só o sabre -há muitos outros factos ligados à família de Kenzo, o esposo, muitos mistérios incompreensíveis e desconhecidos da própria família dos Ichiyanagi.

O enredo complica-se. Descobrem-se coisas sem sentido. Pistas e contra-pistas. Quando os gritos aflitivos param, ouvem-se minutos depois uns toques suaves do instrumento musical que a noiva levara para o quarto, um instrumento de cordas chamado “koto”. 

Como era possível que alguém tocasse o instrumento se ambos estavam mortos? Por que razão o gato da pequena Suzuko - irmã mais nova de Kenzo - que morrera nessa manhã, não tinha sido logo enterrado? O que fora enterrado no lugar dele? O que continha a caixa onde estava o gatinho?

Descobre-se que a família do noivo estivera contra aquele casamento porque Katsuko pertencia a uma família sem grande nome. No entanto, como diz o autor, sabe-se que “a água vence sempre o fogo” e acabaram por aceitar a noiva.

Nos jornais locais os títulos referem o crime da “família amaldiçoada” e falam do  caso do koto enfeitiçado”.

Suspeitos? Todos. A começar por um homem que aparecera pela aldeia a perguntar a direcção da casa Ichiyanagi, um desconhecido a quem faltavam três dedos. 

Para o detective Kindaichi há, porém, muitas outras pistas que começam e acabam na família de Kenzo Ichiyanagi.

Espera-vos uma bela leitura que vos aconselho, cheia de golpes e contra-golpes, descobertas logo inocentes em relação ao crime. Um livro escrito com prazer e humor. 

O livro foi levado ao cinema, em 1975, pelo realizador japonês Yoichi Takabayashi.

***

(1) Yokomizo Seishi nasceu em Kobe em 1902 e morreu em Tóquio em 1981. Durante muitos anos sofre de tuberculose. Dizia-se nessa altura tão difícil no Japão que "a fome e a tuberculose andavam à briga para ver quem acabava com mais vidas"

(2) “Il detective Kindaichi”saiu no Japão em 1946. Em Itália, foi publicado em 2019, na colecção Sellerio editore Palermo que se dedica à publicação de livros policiais de qualidade vindos de todo o mundo.

(3) Do livro foi tirado em 1975 um filme, “Death on the Old Mansion”, do realizador japonês Yoichi Takabayashi.

(4) John Dickinson Carr nasceu em Novembro de 1906 e morre em Fevereiro de 1977. É um dos grandes escritores da chamada “Golden Age”dos mistérios. Nesses romances os detectives resolviam casos aparentemente impossíveis de resolver e crimes sem solução.

(5) O "koto" é um instrumento musical japonês (a "Cítara japonesa"com 13 cordas e dedilhado. Mede cerca de 1,80 m de comprimento e é esculpido em madeira Kiri (paulownia). Aparece no século VI no Japão  vindo da China. 

  a árvore Kiriou Paulownia
Na obra Conto de Genjis da escritora Murasaki Shikibu (978-1016) aparecem referências ao koto.
imagem do "Conto de Genjis" 

https://www.theguardian.com/books/2020/feb/06/how-locked-room-mystery-king-seishi-yokomizo-english-agatha-christie

https://www.blogletras.com/2017/07/seishi-yokomizo-o-rei-do-romance.html