sábado, 25 de janeiro de 2020

Olga Tokarczuk e o livro "Conduz o teu arado..." (II PARTE)


Barbara Coleman DuBois, pintora americana

Continuando a falar do livro de Olga Tokarsczuk, "Conduz o teu arado sobre os ossos dos mortos" (1), um dia a protagonista do romance, Janina, encontra um antigo aluno. 

 É a Senhora Professora?” perguntou ele, indeciso. (op.cit. pg 76). Ela sentiu-se velha. Não se viam há alguns anos e Dyzio não a reconhecera.
E Dionizy (a quem ela chamava Dyzio) contou muitas coisas, estava a trabalhar nos Correios da aldeia e confiou-lhe estava a traduzir uns poemas de William Blake (2). Janina entusiasmou-se e quis ajudá-lo na tradução. 
Oberan, Titanio, Pucks, e as fadas a dançarem

Em tempos idos, trabalhara como engenheira de pontes e calçadas, mas reformara-se cedo por motivo de doença. Escolhera, então, ser professora. Agora ensinava inglês, na escola primária da aldeia. Comprometeu-se em ajudar na tradução. Dyzio passou a ir visitá-la na casinha do Planalto para trabalharem juntos. 
Quando concluía a tradução de algum fragmento, lia-mo. (...) Ele era muito melhor tradutor do que eu, a sua inteligência era mais rápida, diria mesmo digital: a minha continuava analógica.”
William Blake, A escada de Jacob

 Como compreender aquelas imagens dramáticas?”, perguntava a si própria. “Ele pensaria mesmo assim?” O que descrevia? Onde se passava aquilo? Era um conto ou um mito? Poderia olhar as pinturas do poeta pintor, mas não sei se não continuaria a não entender. Mito? Conto? Tragédia?? Comédia?
Blake e ilustração de A Divina Comédia

Estas eram perguntas que fazia a Dyzio. Ele respondia, com um brilho especial no olhar: “Acontece sempre – e em todo o lado.”
E ela reconhecia que era verdade, certos crepúsculos da noite faziam-na pensar nos versos de Blake. Possivelmente imaginava as maravilhosas ilustrações dos seus poemas, que ele pintava.
William Blake, por Thomas Phillips

“Condizia perfeitamente com o ambiente daquele final de tarde”, escreve. "Parecia-me que o céu tinha descido sobre a Terra deixando a todos os seres vivos pouco espaço para viverem e pouco ar para respirarem.” Dyzio queixava-se, então: “Quem criou este vazio abominável?”
Referia-se à atmosfera daquele cair de tarde ou aos versos de Blake? E lá continuavam a traduzir. Janina tinha muitas dúvidas, não estava habituada a ler poesia e confessava não perceber por que se  escreve poesia - se tudo se podia explicar melhor em prosa?
Achava também que o seu inglês estava esquecido e não era suficiente para ajudar Dyzio a traduzir Blake.

Sentia que aquele poema - talvez o mais conhecido de Blake - "Every night et every morn" - “não se conseguia traduzir em polaco sem perder o ritmo, a rima e a brevidade infantil.” (pg 79)


“Every night et every morn

Some to misery are born
Every morn et every night
Some are born to sweet delight,
Some are born to endless night.”
                                              ***

 “Como traduzir esta espécie de “lengalenga” que mais parece ser o início de um jogo para crianças?”, perguntava. Vejo que o mesmo acontece a mesmo coisa se o tentar (eu) traduzir em português...

“Todas as noites e manhãs

Uns nascem para a infelicidade

Todas as manhãs e noites

Uns nascem para doce prazer

Outros nascem para noite sem fim.”
***
Mais valia parar. Dyzio, porém, não a deixava desistir e, às sextas feiras, aparecia com a sacola cheia de livros, às costas. Janina admirava a inteligência dele e o entusiasmo.
Ele compreendia global e rapidamente o sentido do texto e tinha a faculdade de reformular as frases traduzidas a partir de um prisma diferente, superando a tendência desnecessária de ficar preso, colado as palavras, afastando-se delas e voltando com um solução completamente nova e bela.” (op.cit. pg.78)

A solidão do lugar pesava-lhe por vezes mas defendia-se com os seus interesses variados.
Nos serões sentava-me à mesa grande da cozinha e entregava-me aquilo de que mais gostava. Eis a minha grande mesa e, em cima dela, o computador que Dyzio me deu (...). Aqui estão as minhas ‘Efemérides’, papel para apontamentos e alguns livros. Um (...) bule de chá preto, porque não bebo outros chás.”
Fora o vento podia soprar, podiam bater as portadas da janela, cair tempestades de neve que ela permanecia agarrada aos seus papéis tentando esquecer o nevoeiro que vinha pelo Planalto acima. 
 “Quando, para lá da janela, reina o nevoeiro de Inverno ou a madrugada se transforma imperceptivelmente em crepúsculo (...) fica-se com a impressão de que lá fora não há vida.” (op. cit.pg 48).
foto M.J.F
Uma noite dessas, um dos vizinhos veio procurá-la. Ela dera-lhe o nome de Papão. O Papão tinha encontrado o vizinho morto, o Pé Grande, e vinha aterrorizado. Contou-lhe que tinha visto a casa do vizinho às escuras. O vizinho costumava acender a luz assim que caía a noite, ora hoje estava às escuras. Decidira, então, ver o que se passava. 
E agora vinha pedir-lhe que o acompanhasse. E ela foi. Era impressionante a figura do morto, assustou-a. Morrera sufocado, num sofrimento horrível. Morte e vida sempre. Dor e sofrimento. Escreveu Giorgio Voghera (3)na epígrafe do seu livro "Nostra Signora Morte":


La vita à una splendida tragedia
e la morte il suo perfetto epilogo."
"Il segreto della vita è
dimenticarsi della morte.
Il segreto della morte è
accompagnarla come un'ombra”.


A eterna luta de “opostos”: ‘vida/morte’; 'felicidade/infelicidade'; 'prazer/dor' sempre presentes, obsessivamente, na Literatura de todos os tempos. 
O que fazer? Os telemóveis não tinham rede no descampado coberto de neve. Como avisar a aldeia? E a Polícia?
Nessa noite tiveram de perceber e decidir muitas coisa. Coisas inexplicáveis para quem não estivesse ali a ver o que eles tinham visto. 
Decidir o que fazer ao corpo. E pensaram sobre a vida, o destino, a sorte.
O  Pé Grande morrera com um osso de corça atravessado na garganta. Caçador furtivo, Pé Grande caçava tudo o que passava em frente da sua espingarda. Matara a Corça e comera-a. Engasgara-se com o osso e sufocara.
Decidem vestir o corpo do morto antes de chamar alguém, "não fosse a rigidez impedir que o homem seja enterrado sujo e porco". 
Quando vai à cozinha, Janina vê uma cabeça da corça encostada ao lavatório, com as quatro patinhas ao lado.
Estremece, ao concluir que o Pé Grande era mesmo um selvagem completo. Por um momento pensou que ele tinha tido a sorte que merecia. 
Depois do funeral - ao qual assistem os madeireiros que trabalham na floresta - Janina e o Papão ficam sentados, com uma chávena de café quente na mão, até quase de manhã. 
Rodeava-os vazio e o gelo do Inverno. “Ali ficámos naquele campo frio e húmido, no gélido vazio que reinava naquela hora cinzenta da madrugada”. (op.cit. pg 48)

                 "De onde viemos? o que somos? para onde vamos?"

De onde vimos? Para onde vamos? Ou regressamos? E a pergunta deles lembrava o título   título de um quadro famoso de Paul Gauguin:

Pensavam: damo-nos conta de que os dias passam e de mais nada temos a certeza. Tudo é impermanência, mudança, instabilidade. Tal como diz o Salmo 33 : “Passamos como folhas ao vento.”

A partir da morte do Pé Grande, a pacatez da vida na aldeia transforma-se em agitação, o medo instala-se e a desconfiança também. Quem matou o Pé Grande? Outras mortes vão-se sucedendo, umas a seguir às outras, apareceram mortos, sobretudo, alguns dos membros do clube de caça. Mortes suspeitas, estranhas, sem motivo evidente, sem arma do crime, nem provas.
A vida de Janina também sofre alterações. Pensava mais e interrogava-se: estas mortes são por culpa dos homens? Ou de quem? Ou de quê?
Há muitos seres em perigo, humanos e não humanos”.

Paira nas folhas do romance o suspense, ligado à estranheza dos factos e à história em si, como verão. Os personagens, são invulgares já que a referência aos "Seres" engloba animais e humanos.
É uma intriga quase policial a partir das coisas da natureza e da vida - bem humanas e naturais. Janina decide fazer a sua própria investigação. E vamos ver Janina revelar-se uma defensora dos direitos dos animais – como a autora Olga Tokarkzuk o é na realidade.
Numa entrevista (4) Olga afirmou que escrevera o livro como um “thriller” mas quisera também transformar a acção numa questão de direitos dos animais – como se fosse “uma rebelião de cidadãos que um dia sentem que as leis são imorais e tentam perceber até onde podem ir negando-as, ou não as seguindo pura e simplesmente.”
Como procurava o seu compatriota, Joseph Conrad (5), também Olga Tokarczuk escreve de “forma clara e procura tornar nítidas as suas descrições”.  Sentimos sempre que “participamos” na história, que é, na verdade, o papel do escritor: fazer o leitor “ver” a cena narrada” (Joeph Conrad).
 Joseph Conrad

 Na entrevista ao jornal britânico, The Guardian, diz: “Quando leio os romances ingleses fico encantada com a habilidade de escrever sem medo das coisas psicológicas. Do nosso foro interior”


Dizer isto dos romances ingleses implica já um conhecimento da técnica do romance. A verdade é que acabamos por entrar naquele mundo, entre realidade e magia, e saímos a pensar que aprendemos alguma coisa.
O livro foi adaptado para o cinema e o guião escreveu-o a autora juntamente com a realizadora, Agnieszka Holland. E teve sucesso.

E agora deixo-vos livres para lerem e interpretarem à vontade. Há sempre mais alguma coisa a descobrir. Agora é a vossa vez.

 ***
"
(1) O  livro "Conduz o teu arado sobre os ossos dos mortos" foi publicado pela Cavalo de Ferro, em 2019

((2) William Blake, poeta, tipógrafo e pintor inglês nascido em Londres em 1757. Ligado ao movimento do Romantismo, a sua obra divide-se em poemas, ilustrações de poemas seus e de obras famosas da literatura, como a Divina Comédia, de Dante  

((3) Giorgio Voghera, personalidade ligada aos estudos sobre Judaísmo e Psicanálise. Nasce em Trieste em 1908 e morre em Trieste em 1999. Escritor, conhecido como romancista e ensaísta.
(4) Entrevista ao jornal The Guardian. Ver o "link":
( (5) Joseph Conrad nasce em 1857 na Polónia, em Berdyczew, e morre em 1924 em Inglaterra, na cidade de Bishopbourne. Aos 17 anos decide embarcar para Marselha, como marinheiro. Anos mais tarde naturaliza-se inglês. É considerado um dos escritores que escreve um inglês dos mais puros.  

BREVE NOTA SOBRE A LITERATURA POLACA
Além de Joseph Conrad, (o escritor polaco que se naturalizou inglês e é considerado um dos escritores que melhor usam essa língua, autor de romances inesquecíveis, pela força das descrições) pouco conheço da Literatura Polaca.
Conrad pretendia escrever de forma clara e tornar nítidas as suas descrições – de modo a fazer o leitor “ver” a cena narrada. Nasce na Polónia, em Berdyczew, em 1857 e morre em 1924 Inglaterra em Bishopbourne. Temos igualmente o escritor Bruno Schultz. Nascido em Lviv Oblast (Galicia, hoje Ucrânia) em 1882, morre em 1942, fuzilado pelos SS, no meio da rua. 
Considerado um dos mais notáveis autores polacos da primeira metade do século XX, publicou dois livros: The Cinnamon Shops (1933), e Sanatorium Pod Klepzydra (1937) mais tarde adaptado para o Cinema). 
Também Witold Marian Gombrowicz (1904-1969) é um escritor polaco considerado na Europa.  

4 comentários:

  1. Interessante, como sempre.
    Já comprei o livro, mas como ando a ler outro, fica à espera.

    Beijinhos e bom domingo:))

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  2. Que bonito!
    Estou a ler Viagens, ofereceram-me recentemente e estou a gostar muito.
    Adorei esta postagem. e percebo que está a gostar muito.
    Beijinhos. :))

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  3. Um óptimo e belíssimo trabalho para quem, certamente como eu, não tenha ocasião de ler o livro. Bssss

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  4. Agradeço a informação cuidada sobre o livro da Nobel deste ano,
    que já acho muito interessante.
    Mais do que curiosa, fiquei completamente em suspense... Srrsss...
    Muito obrigada, MJ
    Dias de paz e contentamento
    Beijinhos
    ~~~~~
    Ps - O filme, O Gladiador de Auschwitz, ainda está a ser ultimado...
    Deverá entrar nos círculos comerciais em Setembro.

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