quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Poesia: Camões, Boticelli, a beleza e o amor

















A sua data de nascimento é incerta.
Camões morreu a 10 de Junho de 1580, ao que se diz, na miséria. No entanto, é difícil distinguir aquilo que é realidade, daquilo que é mito e lenda romântica, criados em torno da sua vida. O que se sabe é que a poesia dele é muito profunda e bela! Escolhi alguns sonetos e a redondilha "Sôbolos rios", como é conhecido o poema "Redondilhas de Babel e Sião" .














*

Está-se a Primavera trasladando
Em vossa vista deleitosa e honesta;
Nas belas faces, e na boca e testa,
Cecéns, rosas, e cravos debuxando.

De sorte, vosso gesto matizando,
Natura quanto pode manifesta,
Que o monte, o campo, o rio, e a floresta,
Se estão de vós, Senhora, namorando.

Se agora não quereis que quem vos ama
Possa colher o fruto destas flores,
Perderão toda a graça os vossos olhos.

Porque pouco aproveita, linda Dama,
Que semeasse o Amor em vós amores,
Se vossa condição produz abrolhos.









*

Tanto de meu estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa, juntamente choro e rio,
O mundo todo abarco, e nada aperto.

É tudo quanto sinto um desconcerto:
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio;
Agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao céu voando;
Num' hora acho mil anos, e é de jeito
Que em mil anos não posso achar um' hora.

Se me pergunta alguém porque assim ando,
Respondo que não sei; porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora.









*

Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no Céu eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento Etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente,
Que já nos olhos meus tão puro viste.


E se vires que pode merecer-te
Algũa cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.

*

Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjugaram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que para mim bastava amor somente.


Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.
Errei todo o discurso de meus anos;
Dei cousa [a] que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.
Oh, quem tanto pudesse que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças!

*

Aqueles claros olhos que chorando
ficavam, quando deles me partia,
agora que farão? Quem mo diria?
Se por ventura estarão em mim cuidando?
Se terão na memória, como ou quando
deles me vim tão longe de alegria?
Ou se estarão aquele alegre dia,
que torne a vê-los, na alma figurando?

Se contarão as horas e os momentos?
Se acharão num momento muitos anos?
e falarão co as aves e cos ventos?

Oh! bem-aventurados fingimentos
que, nesta ausência, tão doces enganos
sabeis fazer aos tristes pensamentos!





*


Redondilhas de Babel e Sião

Sôbolos rios que vão
por Babilónia, me achei,
Onde sentado chorei
as lembranças de Sião
e quanto nela passei.
Ali, o rio corrente
de meus olhos foi manado,
e, tudo bem comparado,
Babilónia ao mal presente,
Sião ao tempo passado.

Ali, lembranças contentes
n'alma se representaram,
minhas cousas ausentes
se fizeram tão presentes
como se nunca passaram.
Ali, depois de acordado,
co rosto banhado em água,
deste sonho imaginado
vi que todo o bem passado
não é gosto, mas é mágoa.


E vi que todos os danos
se causavam das mudança
e as mudanças dos anos;
onde vi quantos enganos
faz o tempo às esperanças.
Ali vi o maior bem
quão pouco espaço que dura
o mal quão depressa vem,
e quão triste estado tem
quem se fia da ventura.


Vi aquilo que mais val,
que então se entende milhor
quanto mais perdido for;
vi o bem suceder o mal,
e o mal, muito pior,
E vi com muito trabalho
comprar arrependimento;
e vejo-me a mim, que espalho
tristes palavras ao vento.

Bem são rios estas águas
com que banho este papel;
bem parece ser cruel
variedade de mágoas
e confusão de Babel.
Como homem que, por exemplo,
dos transes em que se achou,
despois que a guerra deixou,
pelas paredes do templo


suas armas pendurou,
assi, despois que assentei
que tudo o tempo gastava,
da tristeza que tomei,
nos salgueiros pendurei
os órgãos com que cantava.
Aquele instrumento ledo
deixei da vida passada,dizendo:
«Música amada,
deixo-vos neste arvoredo
à memória consagrada.


Frauta minha que, tangendo,
os montes fazíeis vir
para onde estáveis, correndo;
e as águas, que iam decendo,
tornavam logo a subir.
Jamais vos não ouvirão
os tigres, que se amansavam
e as ovelhas, que pastavam,
das ervas se fartarão
que, por vos ouvir, deixavam.


Já não fareis docemente
em rosas tornar abrolhos
na ribeira florecente;
nem poreis freio à corrente,
e mais, se for dos meus olhos.
Não movereis a espessura,
nem podereis já trazer
atrás vós a fonte pura,
pois não pudestes mover
desconcertos da ventura.


Ficareis oferecida
à Fama, que sempre vela,
frauta de mim tão querida;
porque, mudando-se a vida,
se mudam os gostos dela.
Acha a tenra mocidade
prazeres acomodados,
e logo a maior idade
já sente por pouquedade
aqueles gostos passados.
(...)


As estrofes da redondilha continuam: são 35.
Podem –devem- procurar lê-las.
Ilustrações:
1. Boticelli, pormenor de "Vénus e Marte"
2. retrato de Luís de Camões
3. Boticelli, "A Primavera"
4. Boticelli, pormenor de "O nascimento de Vénus"
5. Boticelli, retrato de mulher
6. Reuven Rubin, Jerusalém, ao longe
7. Reuven Rubin, Jerusalém mais perto
8. Jerusalém, gravura do séc. XIX

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