segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Aharon Appelfeld e "O rapaz que queria dormir"


Apanho todos os dias um comboio que me leva a Lisboa, seguindo, rápido, à beira-mar. É uma viagem obrigatória, penosa, que decidi transformar num passeio, com algo de diferente. Sento-me à janela a ver.
Mudo para o lado do interior, quando o sol bate nos vidros e o ar condicionado não funciona...

No Cais do Sodré, ao contrário das outras vezes, tomo um “espresso” num quiosque novo e como um bolo de aveia, compro o Monde ou o Libération e sigo para o meu destino.

E leio Aharon Appelfeld. Talvez por pensar que a sua dura experiência de vida me pode tornar mais humilde em relação às minhas queixas.
No fundo, a experiência é o que tiramos da vida, quando a vivemos profundamente, com intensidade e entrega. Dele tenho sem dúvida muito a receber...
Este romance que estou a ler chama-se “Le garçon qui voulait dormir” (O rapaz que queria dormir).
Appelfeld impressionou-me desde os primeiros livros: “The Retire” e “Badenheim 1939”, “The Age of Wonder”, "Tzili" - que descobri, na Livraria Steymatsky, em Telavive, quando lá vivi.


Mais tarde, li “The Immortal Bartfuss” - livro inesquecível.

Depois vieram outros: L'amour soudain, Histoire d'une Vie (traduzido em português, com o título "Fragmentos de uma Vida", publicado pela editora Civilização), ou La Chambre de Marianne.
Ao lê-lo, ia pensando sempre: “já não pode ir mais longe, mais fundo...” Livros dolorosos, sentidos, sem esperança - mas que nos deixam esperança? Há uma luz que nos envolve quando o lemos e somos embalados pela sua música.

Ele vai sempre mais longe, mais fundo...


Longe na profundidade e na humanidade das coisas inomináveis que conta. Com simplicidade, sem artifícios, quase naturalmente.


Appelfeld viveu o Holocausto e dele fala, directa ou indirectamente.


Era um rapazinho de 8 anos quando ouviu os tiros que lhe mataram a mãe, à porta de casa.


Passava o ano de 1940 e os nazis tinham entrado na aldeia de Zhadova, perto de Czernowitz, nessa altura Roménia e, hoje, Ucrânia.


Ele e o pai são levados para um campo de concentração, na Ucrânia.


Consegue escapar. Miúdo, vagueia pelos campos, esconde-se de dia, anda de noite, vai arranjando trabalhos nas aldeias a tomar conta dos rebanhos, dão-lhe pão e leite, e continua.

Valeu-lhe ter a pele muito branca e o cabelo loiro, assim facilmente se confundia com os pequenos aldeãos ucranianos.

Consegue chegar à floresta. Dorme. Acorda. Os dias passam, noite, dia. Até ser encontrado pelos russos, em 1944, pelo Exército Vermelho. Segue com eles, como ajudante nas “cozinhas”.
Com eles atravessa as florestas na neve, passa o Inverno, a Primavera, o tempo que corre, até a guerra acabar.


No romance, altera a história, talvez mudando o tempo em que as coisas lhe aconteceram. No romance, os pais tinham-no escondido na cave do jardineiro e salvou-se.

Não sem a dura experiência de viver dois anos encerrado naquela cave.

Sem comer muitas vezes, nem poder fugir, porque o jardineiro Vaska, o “protector”, o fechava à chave, e esquecia-se de lhe dar de comer dias seguidos.


Na cave gelada, Erwin tinha uma tarefa: tricotar meias e luvas de lã, de manhã à noite, que Vaska depois vendia.


Um dia, a porta fica aberta por descuido, e o jovem prisioneiro foge.

Tal como Appelfeld fugira do campo de concentração, com a mesma idade. Prefere os riscos, sejam quais forem, a ficar e a morrer a fogo lento.


Tudo acontece como foi na vida real. Vagueia, o tempo passa e encontra o Exército Vermelho.


A guerra acaba, e lá vai Erwin, com outros sobreviventes, em direcção à Palestina, então região sob Mandato Inglês desde 1928, mais tarde (1948), Estado de Israel.


Durante a viagem Erwin dorme, não consegue acordar. A pé, de comboio, adormece e são os outros que o levam às costas, o arrastam com eles, às vezes esquecendo-o numa carruagem, logo voltando a buscá-lo.

Mais tarde, dir-lhe-ão “Deste-nos um trabalhão! Às vezes queríamos deixar-te, mas havia sempre alguém que pegava em ti...”

Com essa gente desesperada, mortos-vivos que reagem como bichos acossados, atravessa a Hungria e a Jugoslávia, segue até Nápoles onde ficam vários meses num centro de refugiados.


Depois há um barco que os leva ao destino: a Terra Santa.
Jerusalém, dois quadros do pintor israelita Reuven Rubin



Está em Israel, fez 14 anos e não tem ninguém.


Israel é uma terra dura”, escreve. Onde tudo é arrancado à terra.


Os mais novos são treinados, enrijecem o corpo e esquecem as dores da alma a construir terraços de cimento e pedras, na terra árida e desértica. Onde, a seguir, plantam árvores de fruto, legumes, fazem hortas.
E aprendem hebraico.
Os mais velhos não reagem a nenhum estímulo e ficam sentados, pelos centros de refúgio, pelos acampamentos, de olhos sem ver, alienados, perdidos. Almas destruídas, corpos que não querem mexer-se, de onde a vida saiu.


Recusam uma terra que não sentem deles, uma língua que não entendem, lamentam o país – o seu país - onde se julgaram cidadãos como os outros e que deixaram para trás, com tudo. Para sempre.

O sono é a busca do tempo irremediavelmente perdido, das pessoas amadas desaparecidas num momento trágico e que nunca mais verá.

O sono é o momento em que o passado é ainda vivo, possível, onde pode ouvir e falar de tudo com os seus fantasmas.

Onde, a mãe?

Numa entrevista à “Boston Review” (1) conta:

“Lembro-me dela, mas não posso dizer se essa recordação é real, porque ao perder a mãe na infância tentei reconstrui-la, nesses anos todos; assim, vai ser uma mãe diferente do que ela realmente era. O meu sentimento é que a recordo, mas quanto “realmente” a recordo, não posso saber. Era demasiado pequeno para ser consciente”.


Onde, a infância que não teve?
Tenho uma recordação bem viva porque foram tempos difíceis –o holocausto, o campo de concentração - por isso é mais do que viva...”


Onde, o campo de concentração?


Foi mais por instinto do que por esperteza que fugi dali. E fiz-me pastor. O meu rosto não era tipicamente judaico, percebe. Nessa altura, eu era loiro…”


E acrescenta: “As crianças reagem de maneira diferente da dos adultos. Vagabundeei três anos. Sem um momento de paz. Os camponeses se soubessem que era judeu provavelmente ter-me-iam morto. Tinha de estar sempre alerta, ser cuidadoso...”


Sozinho "como uma pedra", assim dizem os judeus. É esse percurso "solitário" que seguimos com ele.


A dificuldade em aceitar um novo país, encarar novos desafios, uma nova língua.
A decisão difícil de abandonar a língua da sua infância, o alemão, na qual lhe parecia agora impossível falar dos sofrimentos dos judeus, “escolhendo” o hebraico, essa nova língua (a língua da Bíblia), para escrever.


Uma língua que aprende a escrever copiando, pacientemente, os caracteres desenhados num caderno.


E acima de tudo, o desejo imperioso de escrever, porque só escrevendo poderia recuperar esse mundo perdido que via apenas “quando dormia”...


"Cada homem tem a sua voz e as suas entoações", escreve Appelfeld.
A sua música...


Hoje, vive em Mevasseret Zion, a poucos quilómetros de Jerusalém. Jerusalém onde viveu desde os 14 anos, que ama e que é finalmente a "sua" cidade.

Mevasseret Zion

Jerusalém, bairro Rehavia


Em 1998, volta a Czernowitz, a emoção é enorme. Mas confessa: "no próprio dia em que cheguei, percebi que aquela cidade com as suas belas ruas, os jardins, o rio e os parques (...) já não era minha (2)."


Czernowitz hoje

fotografias de Jerusalém, de Carlos P. S. (que foi meu aluno há muitos anos)



Jerusalém e a sua luz especial, dourada, de que tanto fala no livro "A Table for One", os seus cafés, a sua espiritualidade.

Dele, escreveu o seu amigo Philip Roth:

“Appelfeld é o autor sui generis de uma literatura sui generis em si mesma, e transformou essa desorientação num assunto que só a ele pertence.”
Na edição espanhola de Badenheim há uma entrevista que Philip Roth lhe fez, extremamente interessante.
Falando de Appelfeld, disse Primo Levi: “Entre nós, os sobreviventes, os escritores, Appelfeld soube encontrar um tom único, irreversível, feito de ternura e de contensão.”

Encontrámo-lo duas ou três vezes em Jerusalém, num café cheio de encanto e interioridade, o "Tmol Shilshom", onde nos recebeu com curiosidade e afecto.

"Tmol ve Shilshom" (imagem acima) - que se traduz por ontem e anteontem - é o título do livro mais famoso do grande escritor israelita S. Y. Agnon (em inglês "Only Yesterday", em francês "le Chien Balak"), que Appelfeld conheceu e admirou.


É uma pequena cafetaria situada num dos bairros populares de Jerusalém. Que é um lugar tranquilo e cheio de gente ao mesmo tempo, "onde cada um se pode encontrar e escrever."


o interior de "Tmol Shilshom"

Como ele próprio diz:

"O que é que um café tem que o torna um lugar tão especial para uma pessoa se concentrar? (...).

Os cafés verdadeiros são convidativos, tentam-nos com café fresco e um bolo acabado de sair do forno; oferecem-nos a oportunidade de passar uma preciosa hora ou duas connosco próprios".


Pessoa atenta, tranquila, ouve os outros como se fossem importantes, quase com humildade.

Escritor sensível e denso, forte e delicado ao mesmo tempo, seria um belo Prémio Nobel, para mim, claro e para quem o ler...

(1)
http://bostonreview.net/BR07.6/appelfeld.html

(2) "A Table for One - Under the Light ofe Jerusalem", Jerusalém, 2005, ilustrado com as pinturas do filho, Meir Appelfeld.

Em 2007, o livro Badenheim 1939 foi adaptado ao teatro e representado pelo Gerard Behar Center de Jerusalém.

O Gerard Behar Centre, no centro de Jerusalém.

Em 2010, o mesmo livro foi adaptado e representado em Inglaterra pela Companhia de teatro Guidhall School of Music & Drama. Estreou em 26 de Novembro do ano passado, no Silk Stree Theatre, dentro do famoso "Barbican Centre" de Londres.
Cena de "Badenheim 1939", no Silk Theatre em Londres

"Baseada na história homónima de Aharon Appelfeld, "Badenheim 1939" é uma sátira alegórica que conta a história de uma cidade de termas, frequentada por judeus, na Áustria, onde se desenrola todos os anos um Festival de música.
Pouco a pouco, um fantomático e imaginário “Departamento Sanitário” começa a isolar a cidade e a preparar os veraneantes para um “passeio
” .


Corre o ano de 1939 e, no meio de boatos e medos, a comunidade luta por perceber o que se passa com eles."

http://www.barbican.org.uk/visitor-information/silk-street-theatre
http://ogerme.blogspot.com/2011/02/aharon-appelfeld.html

Nota sobre Aaron Appelfeld: é um dos escritores israelitas mais conhecidos. Escreve em hebraico, apesar de não ser essa a sua língua materna, o alemão (uma vez que a região onde nasceu pertencera ao Império Austro-Húngaro, onde se falava alemão).


Fala também Yiddish, Ucraniano, Russo, Inglês e Italiano.

Escreve sobre o sofrimento dos judeus, temas ligados ao Holocausto, mesmo que apenas metaforicamente (ou alegoricamente) por vezes. A sua língua literária é o hebraico que escolheu, diz, pelo seu carácter sucinto e cheio de imagens bíblicas. Ganhou vários prémios importantes em Israel e no estrangeiro.


1983- Israel Prize for Hebrew Literature
1989- National Jewish Book Award pelos livros “Badenheim 1939” e “The Immortal Bartfuss”
1991- Jewish Book Prize pelo livro “The healer”
1999- National Jewish Writers Association Prize por “The Iron Tracks”
2004- Prix Médicis Etranger, França, pelo livro “História de uma Vida”
2005- Nelly Sachs Prize, Alemanha
2008- Grinzane Cavour Prize, Italia
Para quem quiser saber mais sobre Appelfeld:
http://www.rue89.com/cabinet-de-lecture/aharon-appelfeld-je-suis-une-remanence-de-l%E2%80%99histoire-juive
http://100mim.wordpress.com/2011/04/06/conferencia-de-aharon-appelfeld-beleza-e-positividade-da-vida/
http://www.rue89.com/cabinet-de-lecture/aharon-appelfeld-je-suis-une-remanence-de-l%E2%80%99histoire-juive

10 comentários:

  1. Gostei de saber, não tinha idéias de tudo isso, adorei te rever na foto, vc está linda.
    Bom mesmo foi te ver modificando e transformando as coisas - tome um café por mim no Cais do Sodré porque antes do que espera, estaremos nós a tomá-lo juntas de novo.

    bjs minha amiga, minha grande e querida amiga.

    ResponderEliminar
  2. É, como sabes, um dos meus autores de cabeceira. Precisamente "O imortal Bartfuss" deslumbrou-me, em 1996, à chegada a Tel Aviv. Depois, acabámos por o conhecer, pessoalmente, mas só, em 2001... quando deixámos Israel. Depois, voltámos... O teu texto é magnífico! Ele não recebe o Nobel, por uma razão simplíssima: porque a Academia Sueca passou a escolher por razões políticas e não por razãoes de qualidade literária. Appelfeld, além de um grande escritor -o maior escritor israelita vivo, de par com Nathan Zach, o poeta-, é uma pessoa extraordinária, generosa e boa. Parabéns pelo teu belo trabalho!

    ResponderEliminar
  3. Eu queria saber mais: a vossa conversa nessa mesa de café!!
    Sempre sonhei ter diante um homem como Aharon Appelfeld, por exemplo...
    Também é verdade que ele disse: "Hoje sei que há muita hipocresia nas palavras, só alguém calado me inspira confiança".
    Alguma vez deixarás de ler para reparar no ser de carne e osso que vá ao teu lado no combóio, for example... e comerás um pastel de nata por mim, acabado de fazer.
    Beijinhos

    ResponderEliminar
  4. Eu acho que quem a lê, como eu, lhe deve um imenso Obrigada. Pelo que nos ensina, pela forma como nos sacode às vezes, pela força sempre.
    Ah! eu também queria dormir...
    Beijinhos querida amiga

    ResponderEliminar
  5. Penso que o que posso dar aos outros, querida Maria, é o que aprendi na vida. Aprendi lendo, também. E não me liberto de querer "impingir" os meus preferidos...
    Aharon Appelfeld é uma pessoa fora do comum. Tive sorte porque falei com ele muito tempo dessas duas ou três vezes.Surpreendeu-me, pela simplicidade, pela humanidade. E porque tinha coisas sérias a dizer. Mas parece que os grandes homens realmente são pessoas simples...
    No comboio, leio, é certo, mas não deixo de "ver" o que está à roda. Nunca. Um dia mais tarde, conto.
    O pastel de nata é já amanhã!
    Obrigada Luísa, Isabel, Elisa, Manuel.

    ResponderEliminar
  6. MJ,
    Que post magnífico, arrepiei-me. Gostaria de o ouvir e compreendo o que ele quer dizer quando voltou ao campo de concentração e reparaou que a terra já não era a sua. Este facto ainda me perturbou mais.
    Li muitos livros sobre o holocausto mas nada deste escritor. Vou procurar.
    Grata por esta mais-valia. Não sei porque é que ainda não tinha visto este post.
    Bem-haja com muitos beijinhos. :)

    ResponderEliminar
  7. É um grande escritor, Ana! tem de o ler, mesmo. Badenheim faz doer a alma! porque é a sensação de ver a armadilha preparar-se e eles, judeus assimilados, não perceberem nada, é angustiante!
    um beijo

    ResponderEliminar
  8. Fiquei muito curiosa sobre a obra do escritor e pelo que li, fiquei já com uma ideia de como será uma pessoa admirável. Vou tentar encontrar algum livro dele.
    um beijinho grande
    Gábi (redonda)

    ResponderEliminar