Li, numa biografia de Van Gogh, a descrição do seu enterro. O meu pai adorava Van
Gogh. O enterro dele foi muito semelhante ao do pintor.
Van Gogh, Searas e corvos
“O enterro realizou-se por volta
do meio-dia. Um calor tórrido. O cemitério estava rodeado de searas.”
Nenhum
outro texto me deu a sensação de reviver um momento como este: tocou-me
profundamente porque foi como se revisitasse, nestas poucas palavras, o dia do enterro do
meu pai.
O
mesmo sol ardente do meio-dia, num Agosto quente, o calor tórrido sobre a
cabeça das pessoas que, compungidos, alguns chorosos, viam a última “imagem” de
um Homem, de um Amigo.
Van Gogh
O
cemitério de Portalegre, os ciprestes altos, o silêncio fundo que envolvia agora tudo - depois do ruído de passos que se ouviram pelo caminho - desde a Capela do
Hospital até ao portão de ferro pintado de verde do cemitério.
Em redor, o nosso olhar abrangia campos e campos até ao fim da vista.
Etienne Martin, Searas e papoilas
Eram as mesmas searas a arder
dos quadros de Van Gogh, douradas e salpicadas de uma ou outra papoila.
O
horizonte longínquo envolto numa bruma leve, quase um fumozinho que se
escapasse de uma chaminé, ou nuvem criada pela humidade da manhã e pela
evaporação – quem sabe? - era uma pintura de Etienne Martin.
Tudo
se fechara ali, na minha relação com o meu pai enquanto vivo. Tudo começara muito tempo antes, no momento
em que a parteira me embrulhara na toalha e me levara ao meu pai...
o meu pai, por Sartori, veneziano, amigo de Aldo Zari
“Pôs-me nas mãos suaves do meu pai. Ele olhou-a, numa
interrogação muda. Julgara que eu era um rapaz. Ela disse-lhe, abanando
docemente a cabeça:
- Não, Sr. Doutor, é mais uma
menina.
Eu era muito pequenina e tinha
uns olhos de chinesinha, meio fechados, uns cabelos negros e lisos, espetados
no ar, com a minha franja de farripas. O meu pai segurou-me com as suas mãos
grandes, e olhou-me. Teria sido uma desilusão?
Devo tê-lo olhado também e "sei" que me
senti segura naquelas mãos - e protegida pelo olhar do meu pai.
Sei que essa sensação de segurança a guardei pela vida fora. Até ao fim.”
Sei que essa sensação de segurança a guardei pela vida fora. Até ao fim.”
Passaram
tantos e tantos anos. Sombras lentas passaram, vidas foram cortadas. As searas verdejaram e douraram. As folhas de Outono amareleceram e caíram -e foram pelo
ar, varridas pelo vento forte. "Sombras, folhas secas caídas e arrastadas pelo vento" é a linguagem dos Salmos quando referem a efemeridade da vida.
Falo-lhe, agora, com saudade:
“Mas sabes? as rosinhas de
toucar que cresciam, livres, na azinhaga da quinta, de que gostavas tanto, voltam
todos os anos na Primavera. No mesmo lugar onde as fui colher para ti, nessa
manhã de Agosto.
E voltam as madressilvas perfumadas aos bosques, os lírios, as joaninhas, os grilos. E voltam os pássaros de que nos ensinavas os nomes..."
E voltam as madressilvas perfumadas aos bosques, os lírios, as joaninhas, os grilos. E voltam os pássaros de que nos ensinavas os nomes..."
um passarinho de Van Gogh
Sim, o resto da nossa "relação" ia ser, para mim, a memória de pequenos átimos vividos, de um
sorriso, um olhar, um entendimento sem palavras mas com ternura - e está fechada no coração.
flores de Maio, as 'boninas' dos campos
Quando
chega esse mês, encho-me de angústia invencível. O meu pai morreu num dia
17 de Agosto.
Anjo, de Botticelli
“Never more, never more” - grasnava
o corvo de E. A. Pöe, a frase que escreveste na dedicatória no último livro que me ofereceste, em Roma.
"Never more"? Não, pai! Para sempre. Como a beleza das coisas. As árvores floridas de lilases. As searas ou os girassóis ardentes de Van Gogh.
Amiga Maria João,
ResponderEliminarBonitas e comoventes estas suas recordações.
Sim, para sempre, e ainda bem que assim é! Estas e outras são recordações muito nossas e, felizmente ninguém, por muito próximo que seja, consegue beliscar.
Um beijinho muito terno.:))
É muito bonita a forma como recorda o seu pai. Gostei muito da leitura.
ResponderEliminarO meu faleceu vai fazer 12 anos, e também tenho muitas saudades. A vida não volta a ser nunca mais a mesma, quando começa a faltar um lugar importante, na mesa de Natal e de festas de família.
Um beijinho grande:)
Querida Chabela (como diz a Maria - que me perguntou como te achei!) tive pena que não ficasses mais tempo... Um beijinho e obrigada!
EliminarQuerida Cláudia! Obrigada pelas suas palavras. Sei que são as de uma minha boa amiga. Tenho vontade de ir ao Porto mas não tem sido possível. Vamos ver se isto por aqui melhora...beijinhos
ResponderEliminarMemória de um homem bom
ResponderEliminarMJ,
ResponderEliminarUm beijinho, não tenho palavras.
Os nossos pais não morrem nunca, e quando pensamos neles somos sempre "aquelas", jovens, especiais, únicas, amadas....
ResponderEliminarQuanto lhes devemos!
Bssss
sim, é isso...e tanta coisa que esquecemos...
EliminarEntretanto, encontrei um comentário da Teresa Mourato e outro do Altino Barradas, mas não os consegui passar para aqui. Obrigada aos dois.
ResponderEliminarAltino, nós também gostamos de ti todos!
Choro. Partilho a saudade.
ResponderEliminarJusta e emocionante homenagem, querida Mj,
ResponderEliminarque nos fala de relacionamento muito especial
com um pai bondoso e inteligente.
Que descanse em paz profunda.
O meu abraço solidário com a sua saudade...