“Vivíamos
nessa altura numa aldeia que se chamava Sabóia, perto de Santa Clara, no limiar
entre o Alentejo e o Algarve”, contava-me a minha tia.
Nunca tinha ouvido falar desse lugar. Os
meus tios viveram uma vida que parecia aventurosa mas devida apenas ao que o
meu tio estudara e ao trabalho que escolhera: topógrafo. O que os levou a
calcorrear milhas pelo Alentejo fora, de forma com certeza nem sempre cómoda. A
aventura estava sim dentro deles. E eu admirava-os por isso.
Eram
caminhos de pedra soltas onde a potente moto Jawa do meu tio não conseguia chegar, porque os pneus se rasgavam
nas pedras cortantes. Tinha que a deixar na aldeia e subir a pé até à casa do
monte.
O meio de transporte comum era a carroça. Ou, muito provavelmente, o burro. Dessa
vez, ela ia a caminho de Turquinos, o monte onde iriam viver uns tempos.
“E lá íamos a abanar, na carroça, desde
Odemira...”
Continuava
a minha tia a contar.
“Foi uma campanha difícil. O teu tio nunca se
queixou. Sabes como ele é.”
Sorriu.
“Partia ao nascer do sol e voltava ao fim do
dia, já o sol se tinha posto. Sempre com a mesma alegria, a contar histórias
para me distrair...”
Lembrava-se
da primeira viagem dela. O meu tio já lá estava a viver no monte, há uns meses. Instalara-se
numa parte de uma casa, no mote. Os que o receberam era boa gente, cheia de
bondade e respeito por si e pelos outros. A minha tia nunca os esqueceu.
Ela
adiara a partida porque o filho ainda era pequeno. Fora
um colega do meu tio que a fora esperar ao comboio e a acompanhara até a aldeia
de Sabóia, no baixo Alentejo.
A
carroça chocalhava, dizia-me, ela sentia-se abanar até à alma “dum lado para o outro, dum lado para o
outro...”
O
olhar velava-se-lhe pela força do calor e do suor enquanto uma neblina parecia
subir dos campos e fazia tremeluzir as searas amarelas.
A
minha tia, com o meu primo pequenino ao colo, enjoada, vermelha do sol dourado
e ardente, que incidia em cima dela desde manhã, ansiava. E eu imaginava uma "Madonna" abraçada ao filho pequeno, a defendê-lo.
"Madonna" de Bernardino Luini, discípulo de Leonardo
O
zumbido dos besouros, das cigarras e dos ralos era ensurdecedor e a cabeça
ardia. Parecia-lhe que ia adormecer, desfalecia, tinha medo de deixar cair o
menino do colo, e só perguntava:
-
Ó Vilarigues, ainda falta muito?
-
Não é longe, respondia ele. É já ali.
“Não era longe, não, mas custava
a chegar lá.”
Quando
chegaram, o cacho de bananas, que se lembrara de levar ao meu tio, tinha cozido
com o calor e as bananas eram uma papa intragável.
"Menina", de Jacob Maris (holandês)
Nunca
a ouvi queixar-se desses tempos. No entanto, ela era uma menina
que viera do Porto, mimada, cheia de comodidades toda a vida, pais com dinheiro
que tudo lhe queriam dar, menina querida do seu pai - que nunca adivinhou
exactamente por onde ela andava.
Ela não queria nada. Bastava-lhe estar ao pé
daquele rapaz de olhos esverdinhados, de sorriso sempre aberto e carácter
alegre, por momentos silencioso e sorumbático, mas que vivia os dias sem remorsos
nem invejas, nem ambições que não fossem as de fazer bem o seu trabalho que ele
amava, indo de terra em terra como um cigano.
“Um dia, parecia-me que ele nunca
mais voltava, o pôr-do-sol estava já ali em cima, e decidi ir esperá-lo à curva
do caminho, que ficava lá em baixo.”
A
noite caiu de repente, porém, e a curva do caminho era sempre mais adiante.
Ouviam-se
os ralos, o piar dos mochos, algum pássaro de rapina que descia em voo picado
com o seu grito estridente, à caça dos coelhos da charneca, ou de algum rato.
“Teve medo, tia Nina?”, perguntei. “Não, nunca tive medo. Senti-me abandonada, sim, perdida, sem saber se devia andar para a frente ou se voltar para trás. O
caminho tinha desaparecido diante dos meus olhos...”
Ouviu
o ruído dos bois acompanhados por um homem que os conduzira à fonte, ali
perto, mas que ela não sabia onde era. Ouvia o pau que trazia, a arrastar pelos
caminhos, e o ruído que fazia "assim como uns estalinhos com a boca" , explicava, a indicar aos
animais para onde deviam ir.
Essa presença animou-a. Foi
atrás dele. Chamou-o. Disse-lhe que estava perdida.
O
homem respondeu-lhe, tranqulizando-a:
“Assim que os animais beberem, a senhora
venha atrás de mim e lá adiante no cruzamento vai dar com o caminho para o
monte. Não há que enganar.”
Adiante,
como o senhor avisara, estava uma bifurcação. O homem disse que continuasse
pelo carreiro em frente até ver as luzinhas da terra e desviou para um atalho.
“Boa noite…”
E
lá foi cada um para seu lado. Ela continuou, pé à frente de pé. A escuridão era
total, não via um palmo à frente do nariz.
A
dada altura, teve a sensação de ouvir passos pesados e rápidos atrás dela.
Estugou o passo, quase corria, desejosa de chegar a qualquer sítio. Sabia lá ela
quem vinha ali àquelas horas da noite?
“Um vadio? Um maltês?”, pensou.
Viu
as luzes, viu a casa perto. Correu e entrou em casa, bebeu água fresca de um
cântaro, e sentou-se, ofegante. O coração batia. Custava-lhe a respirar.
Poucos
momentos depois a porta abriu-se e o meu tio entrou.
“Calcula
que era o teu tio que tinha vindo aquele tempo todo atrás de mim! Nem ele me
via nem eu a ele.”
E
riu-se com o seu riso cristalino do costume.
Quase
a dois passos, nenhum se apercebera de quão perto estava do outro, na negrura
da noite...
“Quando penso que era o teu tio! O medo que eu tive!”, ria
ela.
Conta os factos passados de maneira muito agradável, com
ResponderEliminardescrições de quem conhece bem o calor alentejano...
Realmente uma tia excecional, para viver feliz desse modo,
sendo grande parte do mérito realizado pelo tio.
Muito interessante, gostei muito.
Beijinhos, estimada MJ.
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Era corajosa a sua tia!
ResponderEliminarE esta é uma bonita história onde o amor se impõe! Deixar assim uma vida confortável para vir atrás de um amor cheio de aventuras, não é para uma qualquer! Era de certeza uma pessoa fantástica, a sua tia!
Beijinhos e bom fim-de-semana:)
A minha tia era - e é ainda, com os seus 95 anos - uma pessoa excepcional! O meu tio morreu há dois anos com 98. Teriam feito setenta anos de casados poucos dias ante dele morrer. O mesmo amor e ternura até ao último dia.
ResponderEliminarFico muito contente por ter "mostrado" um pouco como eles eram! Um beijo, amigas!
Ah! Era essa senhora? Que maravilha!
EliminarSão pessoas inspiradoras:))
Mulheres de outros tempos
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