domingo, 11 de outubro de 2020

Billie Holliday e a canção "Strange Fruit"

Falo hoje de uma canção que Billie Holliday  - a mais celebrada cantora norte americana - cantou, corajosamente pela primeira vez, no dia 27 de Abril de 1939, intitulada ‘Strange Fruit’ (Fruto Estranho) diante do público, estupefacto, de um bar em voga de New York, o "Café Society".
 
O autor da canção foi Abel Meeropol (1) que a escreveu com o pseudónimo de Lewis Allan e vai pedir a Billie Holiday que a cante, porque a admira e sabe bem que Billie seria a intérprete ideal.

A letra  denuncia, sem mencionar sequer uma vez a palavra, os milhares de linchamentos que ocorriam no sul dos Estados Unidos e que continuariam a acontecer até cerca de 1950. (2)

A música chega às mãos da cantora. Billie recebe-a das mãos de Barney Josephson, que era o dono do bar onde ela cantava nessa época. 
 
Situado na Sheridan Avenue, o “Café Society” era famoso em Nova Iorque e ali se apresentavam os grandes músicos de blues, de swing e de jazz.
Barney Josephson
Billie Holiday no Café Society (1937)
 
  
Al Casey e Ed Barefield (1948)

Fora Abel Meeropol quem pedira a  Barney Josephson, proprietário do Café Society,  que mostrasse  a sua canção a Billie Holiday. 

A canção “Strange Fruit” terá sido inspirada numa fotografia datada de 1930 que mostra o linchamento de dois jovens afro-americanos. 

De facto, em 7 de Agosto de 1930, Thomas Shipp e Abram Smith são linchados. Uma multidão de cerca de 5000 homens e mulheres brancos assistiu  ao “espectáculo”, no estado de Indiana, com uma atitude entre a indiferença e o divertimento. Não pareciam incomodados com a cena, falavam uns com os outros e alguns até se viravam para o fotógrafo e sorriam para a fotografia.

Pendurados dos ramos das árvores, 'eram uns estranhos frutos', escreve o autor da letra. Por isso a intitula “Strange fruits”.

Mais tarde Billie Holiday gravou esta canção nos estúdios Commodore, canção  que fica para todos como um aviso. Quem recebeu o aviso? Quantos anos demoraram até haver uma reacção de estupor, de horror perante tal imagem? Muitos anos. 

Basta lembrar certas atitudes recentes dos grupos racistas dos 'Proud Boys' e outros grupos que giram tranquilos e armados pelos Estados Unidos da América, com a "bênção" plácida de um Presidente.

Nessa altura eram os anos 37 e o "Café Society" decidira começar a “política” de quebrar as barreiras entre americanos-brancos e afro-americanos, no mundo musical. 
É o primeiro local na América em que se encontram, na assistência ou no palco,  brancos e negros misturados e sentados lado a lado.
E Barney Josephson concorda imediatamente com a proposta de apresentar Billie a cantar no seu local  a canção - pois entendera a força pungente daquela música e daquela letra.

O mesmo não acontecia em grande parte da América onde continuava a segregação dura. Quantas vezes Billie, em “tournée” pelos estados do Sul, tinha de escolher um hotel afastado pois não podia alojar-se no hotel em que se hospedavam os colegas brancos ou o pessoal que trabalhava com eles. Ia para um hotel frequentado apenas por negros. 

Era também normal em certos locais cantar escondida detrás de uma cortina - o público era constituído exclusivamente por brancos, como conta Donald Clarke numa biografia muito boa sobre a cantora.

O Café Society tinha, como frequentadores, a sociedade “culta” de New York que vinha ouvir a nova música: os blues, o swing e também o jazz. Duke Ellington tocou ali, Teddy Wilson acompanhou Billie. Era um ambiente de abertura “cultural”. Billie cantou com Art Tatum ao piano.

Mais tarde, Barney dirá: “As pessoas tinham de se lembrar sempre de ‘Strange fruit’ e ficar com as entranhas queimadas pela música”.

Segundo os relatos do tempo, Billie cantou a canção naquela noite com as luzes do Café Society apagadas. Os empregados tinham interrompido totalmente o serviço e ouviam.

Na sua autobiografia "Lady sings the blues" Billie Holiday refere que muitos locais - onde posteriormente cantou- a pressionavam para que ao assinar o contrato se comprometesse a não cantar Strange Fruit. Mas não cedeu nunca. Era um ponto de honra para ela.

Passaram-se 81 anos sobre esta música que a revista Time Magazine considerou “a música do século”. Continua vibrante e verdadeira.
Na Biografia de Donald Clarke, "Billie Holiday wishing on the moon", (3) muita coisa se aprende sobre a "Lady Day" e sobre a sua infelicidade. E sobre os verdadeiros amigos como o foi Lester Young que "lhe deu" esse nome de Lady Day
E  inúmeras fotografias que mostram a sua fama e a sua fragilidade.
Billie Holiday teve uma vida muito dura. Foi explorada, maltratada, roubada. A bela "lady in satin" acabou sem dinheiro, alcoolizada, consumindo droga - por isso,  acusada de posse de droga encontrada no seu carro, vai morrer num quarto de hospital de cirrose, com um polícia à porta do quarto.
numa clínica de luxo de desentoxicação (1944)

Os tempos que correm não são muito animadores, o homem continua a ser "o lobo do homem" e a não aceitar a diferença - nem de cor, nem de modo de pensar, nem de religião. Tende-se - se não estivermos atentos - para uma 'política' de exclusão, de egocentrismo e populismo que muitas pessoas aceitam. 

Formas de racismo e de luta racial continuam a dividir esta mesma América que desde fins de 1800 linchou sabe-se lá quantas centenas de milhar de "diferentes". Quantas vezes ouvimos nas últimos semanas falar de "supremacia branca" e dos "proud boys" que acompanham Trump? Quantos anos passaram desde que o mundo ouviu falar de "raça ariana"?

 

 Quem pensaria que a canção continuaria a ter o mesmo impacto e a ser actual?

***

(1) Seriam 4.000 linchamentos desde o final dos anos 1800 até à  década de 1950.

(2) Abel Meeropol (1903-1986) era um songwriter - poeta e músico de família judaica vinda da Rússia -  nascido no Bronx que escreveu sob o pseudónimo de Lewis Allan. Foi membro do Partido Comunista Americano mas deixou o partido mais tarde. 

(3) Donald Clarke, "Billie Holiday wishing on the moon", Da kapo Press, 1994

Podem ouvir aqui a canção "Strange Fruits": https://youtu.be/wHGAMjwr_j8

   Para quem estiver interessado em saber mais deixo uns links.

  https://horadopovo.com.br/ha-79-anos-billie-holiday-lancava-strange-fruit-pungente-denuncia-do-linchamento-de-negros-nos-eua/

https://en.wikipedia.org/wiki/Abel_Meeropol#Biography

https://ephemeralnewyork.wordpress.com/2012/12/29/the-groundbreaking-cafe-society-in-sheridan-square/

https://jerujazznblues.com/mixing-it-up/

 

 

5 comentários:

  1. Resolvi passar por aqui também para desejar um dia de aniversário muito feliz
    um beijinho
    Gábi

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  2. Li este post logo que o colocou, mas como tinha o blogue desligado não deixei comentário. Ultimamente é o que faço: venho espreitar, mas a correr.

    Beijinhos e PARABÉNS! Mais uma vez! Que tenha sido um dia muito feliz!😊😊😊

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  3. A voz de Billie Holiday é inconfundível, ainda me recordo de dois LPs comprados na Dargil, que tocaram imenso lá por casa, um deles comprado por causa do tema "Georgia", depois de ter visto o filme "Quatro Amigos" do Arthur Penn. Não me recordo se este tema andava por lá. Mas ao ler esta crónica sobre a canção "Strange Fruit" recordei-me de três filmes: "Mississipi em Chamas", "Cotton Club" e ~"Longe do Paraíso".
    Desejo-lhe um bom fim-de-semana!
    Rui

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  4. Embora um bocadinho atrasados, aqui deixamos os nossos parabéns!
    Paula e Rui

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  5. Estive a ouvir a canção. Como é triste e impressionante!
    Tanto tempo passou e, apesar do muito ativismo, campanhas e manifestações; é por de mais difícil acabar com a forma de obscurantismo que é o racismo!
    Na época da Billie era realmente um horror!
    MJ, aplaudo o seu excelente 'post', é nas questões humanitárias que mais a admiro.

    MUITOS PARABÉNS PELO SEU ANIVERSÁRIO.

    Desejo que o próximo Setembro seja mais livre e feliz.
    Beijinhos
    ~~~~~

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