sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Lermontov e "O herói do nosso tempo"

Mikhail Yuryevich Lermontov (1), escritor e poeta do Romantismo russo, tornou-se num clássico da Literatura de todos os tempos, apesar da sua curta vida. Tudo acontece muito rápido: o sucesso, a vida aventurosa e a morte aos 27 num duelo.

 

Vai ficar famoso aos 22 anos quando escreve um poema, intitulado “A Morte do Poeta” e dedicado ao poeta Alexander Pushkin, que morrera em duelo em 1937 em São Petersburgo (2). 

Grande poeta da Literatura russa (ainda hoje um dos mais "amados" na Rússia, com Gogol) era o poeta preferido de Lermontov, era uma das suas "referências" literárias, com o inglês Byron. 

A obra mais famosa de Alexander Pushkin sai em 1920, o poema épico “Eugene Oneguin”. Mas escreveu muito mais, "O Cavalo de Bronze", "A Filha do Capitão", por exemplo. Recordo ainda o conto excepcional a "Dama de Espadas"- que não me canso de ler. 

Alexander Pushki, por Orest Kiprensky

O que Pushkin escrevia era considerado pelas autoridades um perigo para a juventude e por isso mesmo o escritor fora exilado no Cáucaso. Tal como noutros tempos longínquos, Sócrates fora obrigado a beber a cicuta acusado de "corromper" a juventude do seu tempo.

 “Eugene Oneguin”, pintado por Illya Repin

Mikhail Lermontov, espírito rebelde, nesse poema que transborda de entusiasmo juvenil, exige a morte do assassino de Pushkin, ainda preso na cadeia. 

O manuscrito é copiado e distribuído pela cidade e Lermontov é detido pela polícia do Czar. Vai exilado para as montanhas do Cáucaso - onde desde há longos anos se vivia uma guerra sem quartel - e ali vai escrever o seu romance principal. No Cáucaso onde também Pushkin estivera desterrado.

 “O Herói do nosso Tempo” (escrito entre os anos 1938-39 no Cáucaso) é publicado na Rússia em 1840, uma ano antes da sua morte, em duelo também. (3)

É uma obra de introspecção na qual se sente a influência de Dostoievsky. Escrito durante o exílio no Cáucaso não é um romance, mas sim uma espécie de biografia de carácter psicológico. 

Ou autobiografia? Retrato de alguém que se chama Plétchorine e cuja vida e personalidade  têm muito a ver com as do autor. Nele vamos encontrar o seu universo emblemático.

É um romance composto de 5 novelas apresentando cada uma delas um traço específico da personalidade do seu herói, onde as paixões e os “estados de alma” são um reflexo do próprio escritor. 

 Lermontov escreve também peças de teatro, obras sombrias e por vezes muito sarcásticas sobre a aristocracia e o despotismo do czar. 

 Mas é o romance de Plétchorine que o distingue. Plétchorine é um dos heróis mais complexos da literatura russa da 2ª metade do século XIX.

 Retrato de Lermontov (sem autor nem data)

Qual a tragédia de Grigory Pletchorine? Entre o Romantismo e o Realismo, o escritor apresenta o seu herói como os outros jovens do seu tempo  - que pensavam muito e que sonhavam alto os seus ideais "elevados". Esses anos 30 da Rússia do século XIX eram, porém, mais um tempo de estagnação do que outra coisa.

E a geração de Lermontov-Pletchorine não conseguiu fazer nada e viveu numa forma de inacção desistindo de tudo inclusivamente do ideal de encontrarem um “objectivo moral elevado”, de que Lermontov fala.

Pletchorine é apresentado como um desistente, a personificação do egoísmo frio e absoluto, o que para o seu autor não é uma característica inata, mas é sim um produto “do nosso tempo”. Não é apenas o egoísmo que o define - ele é uma pessoa incapaz de agir e ao mesmo tempo não consegue estar de acordo com o seu tempo. Esta é a sua tragédia e as consequências dessa complexidade são terríveis.

No romance vemos a grande capacidade do autor na descrição das personagens  e na auto-análise. Ao longo de cinco histórias vai mostrar os contornos da "alma", descobertos e logo ocultados, sob o olhar crítico e distante do próprio Petchorine, na senda do romance psicologista que Dostoievsky “criara”.

pintura de Lermontov, "O Cáucaso"

Lermontov tem uma facilidade enorme para “desenhar” as magníficas paisagens do Cáucaso, os céus, as árvores, as florestas e  as descrições  da natureza que o envolve são maravilhosas

Não podemos esquecer também que o escritor estudara pintura e era um bom pintor. Podemos descobrir alguma das suas paisagens pintadas aqui descritas.

La Belle circassienne (*)
Também os retratos de mulheres são muito bons. Bella, a “tcherkesse (circassiana - habitante do Cáucaso ou Circássia) do conto “Bella”, é uma figura tão bonita. Todo o conto é uma descrição magnífica da paisagem do Cáucaso e da beleza daquela mulher e da tristeza do seu destino infeliz.

Noutro conto, “Tamague”, é muito bem descrita, no seu horror de “pequena cidade de província. O conto começa com a sua descrição: “Tamague, pequena cidade do Mar Negro, é a mais abominável de todas as cidades marítimas da Rússia!”

Lermontov, por Leonidas Pasternak

Tal como Lermontov (4), Petchorine (narrador e protagonista) é um oficial russo desiludido pela vida e descrente do próprio género humano. Mas quem é de facto Petchorine? Um herói romântico cheio de lados escuros? Um céptico? Dele diz o seu autor:

“O herói do nosso tempo é na realidade um retrato mas não de um homem só. É um retrato composto dos vícios da nossa geração inteira. Dir-me-ão que um homem não pode ser tão mau, e eu responderei: se acreditaram ser possível a existência de tantos celerados trágicos e românticos – por que não hão-de acreditar na existência de Petchorine?”

O próprio Petchorine, falando de si, confessa. “Eu sou um louco ou um patife, não sei. Mas o que é certo é que mereço também muita piedade!” (5) Vai descrever-se como uma alma meia-morta. A introspecção e a observação constante do “eu” tornam-no incapaz de sentir e compreender os sentimentos humanos vulgares. No fundo o único prazer que sente é a capacidade de exercer poder sobre os outros.

Para ele a felicidade encontra-se na capacidade de exercer poder sobre os outros. Por muito que o autor se tenha querido afastar da personagem, os leitores percebem que “é o destino trágico do autor” que se sobrepõe à figura de Petchorine.

Ambos poetas e oficiais de cavalaria, ambos desterrados. Ambos destinados a ser infelizes. Um destino trágico.

Esta obra sobre um herói "do seu tempo", propenso à introspecção, tem sempre actualidade porque o tema e a ‘personagem-chave’ do romance pertencem a todos os tempos.

 *****

(*) retrato encontrado no blogue: claudialucia-malibrairie -VER
https://claudialucia-malibrairie.blogspot.com/2014/05/lermontov-un-heros-de-notre-temps.html

(1) Mikhail Lermontov nasce em 15 de Outubro de 1814 e morre em 27 de Julho de em 1841, em Moscovo. Tinha 27 anos.

(2) Alexander Pushkin nasceu em 1799 em Moscovo de uma família nobre. Mas as ideias do moderno racionalismo político reflectiram-se nos seus poemas. O que o levou a ser exilado por ordem do Czar para a Sibéria. No entanto, os amigos conseguiram que o fosse enviado para o Sul da Rússia, no Cáucaso. Vive muitos anos em São Petersburgo onde vai morrer num duelo em 1837.

(3) "O Herói do Nosso Tempo" é publicado na Rússia em 1840, um ano antes da morte do seu autor. Em Portugal, foi reeditado em 2008, pela editora Relógio d’ Água.  

   

Leonidas Pasternak, Auto-retrato

(4) retrato de Lermontov, pintado por Leonidas Pasternak. Artista nascido na Ucrânia, de origem judaica, em 1862, morre no Reino Unido em 1945. Grande pintor, Leónidas era pai do escritor Boris Pasternak, Prémio Nobel, autor de "O Doutor Jivago", outra obra-prima da literatura russa.

(5) incluído no “Journal de Pétchorine”, “Un Héros de notre Temps”, ed. francesa, Robert Laffont, traduzido do russo por Allain Guillémou

(6) O Cáucaso é uma região da Eurásia constituída por montanhas que se estendem por cerca de 1.200 kms que vão do estreito de Kertch (Mar Negro) à península de Apchéron (Mar Cáspio).

https://br.rbth.com/arte/2014/03/25/felicidade_e_tragedia_na_breve_vida_do_mikhail_lermontov_24807

https://www.infopedia.pt/$mikhail-lermontov

 
 
 

 


5 comentários:

  1. Gostei muito deste texto e de ficar a saber mais sobre os dois escritores e sobre os seus livros - apenas li de Pushkin a Dama de Espadas
    um beijinho e uma boa noite

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  2. Gostei muito de ler. Não tenho comentado, mas leio sempre os seus post.
    Já ando com saudades de um post com os amiguinhos...

    Beijinhos e bom fim-de-semana:))

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  3. Apenas conheço um pouco sobre Pushkin fiz um 'post' sobre a história do belíssimo café homónimo de Moscovo, criado a partir de uma canção de Gilbert Bécaud. Também tentei traduzir um poema deste Poeta, a partir de uma tradução inglesa. Desisti, mas entrei no sentir nostálgico do poeta e acabei por me divertir com a ousadia...
    As montanhas do Cáucaso, durante o longo inverno russo, devem ser bastante deprimentes e afetar o humor dos residentes não oriundos da zona que é sempre a grande barreira e local de passagem entre Rússia europeia e a asiática.
    Li o difícil livro de Boris Pasternak, com o título de Dr Jivago...
    Gostei muito desta dissertação sobre os 'romântico-realistas' russos.
    Boa semana, MJ. Beijinho
    ~~~~~~~~

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  4. Maria João,
    Conheço ambos os escritores mas não os li. Pelo menos ainda...
    Deixou-nos aqui uma imagem bem clara do que foi a vida destes dois homens e a vontade de os ler também.
    Beijinhos.:))

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  5. Magnífica exposição,serás sempre essa estupenda professora de Literatura e essa leitora empedernida, disposta a deleitar-nos e ensinar-nos aos que não lemos nem metade do que tu levas lido...

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