domingo, 6 de fevereiro de 2022

Sacha Naspini e “Nives”, um livro italiano

Da última vez que estive em Roma fui muitas vezes comer ao “Bistrot” da Via del Governo Vecchio. De facto a casa da minha amiga Anna ficava na rua Chiesa Nuova mesmo ao lado.


Em frente do restaurante ficava uma livraria – moderna, nova e variadíssima com um pouco de tudo desde blocos, postais, livros em segunda mão e outros acabados de sair. Era muito agradável para mim ir ali  investigar
e buscar tesouros.
Chamava-se "Altroquando" e tinha um quadrado de papel com letras maiúsculas a dizer "SIAMO MOLTI APERTI" ("ESTAMOS MUITO ABERTOS) - o que na língua italiana permite um duplo sentido "siamo" significa simultaneamente "estamos" quer "somos". 
Tinha andado por ali o "Covid 19", tinham estado fechados e agora afixavam aquele cartaz para avisar que, além de estarem já abertos, "eram" muito abertos (de espírito). A outra livraria que essa ficava ,mesmo ao lado do nosso restaurante chamava-se "Otherwise"

Havia muita cultura naquela rua, até pelas casas antigas cheias de baixo-relevos e medalhões com Madonne -rodeadas de motos e Vespas de todas as cores e potências. 
Ao fundo ficava a estátua dedicada a Pasquino, que representa a figura do primeiro "jornalista" - daí o nosso "pasquim" com sentido depreciativo. Era naquela estátua que os antigos romanos iam depositar as suas queixas, notícias etc.

O próprio restaurante “Bistrot” tinha um programa de música de Jazz excepcional. Bastava pedir e eles punham.

 

Roma perdeu, é certo, muitas coisas do seu passado, entre elas uma certa tranquilidade nas velhas ruelas do centro. Onde havia pequenos ateliers, lojinhas, sapateiros hoje tudo isso foi "conquistado" por cafés, bares, pizzerias, restaurantes e gelatarias Porém a capacidade inventiva dos romanos torna tudo diferente.

E existe sempre o calor humano e o espírito de Roma que não se deixa "levar" pelos turistas e afins, continuando a ser ela própria, igual, imutável.  E para ela não há "missão impossível"!

Novas lojas abriram, lojas de antiguidades que vendem um pouco de tudo e têm sempre a sua magia. Até vi uma galo sabe-se lá vindo de que campanário de igreja.

E novas invenções apareceram: vestidos feitos de qualquer tecido, gabardines antigas "fashion" restauradas. 

Ou um pequeno espaço onde se vendem sapatos de ténis branco que um pintor de certa idade e de barba branca pinta todos dias sentado numa cadeira baixa, na rua, à porta da loja.

Eu entrava todos os dias na livraria "Altroquando"nem que fosse só para ver e mexer nos livros. Um dia pedi um livro italiano recente e o senhor  apontou-me “Nives”.

Foi assim que descobri a figura de Nives e de Giacomina. E a história divertiu-me, confesso.

O autor, Sacha Naspini, era um desconhecido para mim. Soube que é autor de inúmeros contos e romances (2). Nasceu em 1976 em Grosseto no Sul da Toscana. Trabalhou como editor, realizador (art director) e guionista para o cinema.

Está traduzido em várias línguas e todos os seus livros estão traduzidos em inglês (2).

Para mim aquele livro desconhecido foi uma descoberta e comprei-o num impulso - talvez por a capa ser bonita, confesso. É uma jovem mulher a olhar em frente num descampado.

Nives, a protagonista, é uma pessoa simples, com uma vida simples, sem grandes ambições nem ela nem o marido. Um dia ele morre num acidente de trabalho na quinta e a vida dela tem um sobressalto inesperado. Deixa de dormir, pensa toda a noite.

 

A filha que vive em França vem ao funeral com o marido francês e com os filhos, mas Nives não falava francês e pouco podia comunicar com os netos. Sente ruído à sua volta o que a distrai das preocupações mas não se sente acompanhada, pelo contrário aquela presença incomoda-a, descontrola o seu dia a dia. Sentia-se mais sozinha – mas conseguia dormir.

Quando a filha e a família partiram sentiu-se aliviada mas sem a companhia que lhe trouxeram voltou o desassossego.

Pesa-lhe a solidão a meio da paisagem da quinta, na Toscana, com os animais para tratar, porcos, galinhas e longe de todo o mundo. Passa a ter outra vez insónias ainda piores, não dorme, não sossega.

 Um dia, no galinheiro, repara na velha galinha Giacomina que parece estar a olhar para ela preocupada.

Pega-lhe ao colo, alisa-lhe as penas e decide levá-la para casa. Arranja uma gaiola onde mete a galinha para ficar quieta de noite e durante o dia deixa-a andar por ali.

 

E vem-me à memória outra galinha – da grande escritora brasileira Clarice Lispector (3) – que um domingo é salva da panela para o almoço - porque dá um salto e foge da cozinha. O conto "A galinha" está incluído no livro "Laços de família".

Quando a apanharam e pensavam voltar a metê-la na panela, a galinha põe de repente um ovinho. Ninguém tem coragem de a matar depois disto. 

A menina, de Berthe Morisot

A menina da casa pediu à mãe que a galinha seja "seu bichinho de estimação" e assim a galinha dura alguns anos até que se esquecem dela e vai acabar na panela num domingo, como as outra galinhas...

Na história de Sacha Naspini a verdade é que Nives começa a dormir bem outra vez, a galinha faz-lhe companhia e sente-se muito mais calma. 

Os dias correm agora tranquilos, e Nives sente-se tão bem com Giacomina que chega a ir apanhar minhocas na terra do quintal para as pôr num prato para a galinha comer.

Uma noite estavam elas a ver a publicidade na televisão e Giacomina parece ficar hipnotizada a olhar para o reclame de uma máquina de lavar roupa cujo tambor girava, girava. E assim fica de olhar preso na televisão sem a mínima reacção, apesar de Nives lhe puxar as penas e a abanar.

Desesperada, sem saber o que fazer lembra-se de telefonar ao veterinário, velho conhecido da sua juventude. É a mulher que também conhecia bem quem atende, ele chega meio a dormir ao telefone e Nives começa a contar-lhe tudo.

Sem querer, nem saber como, voltam ao passado. De repente uma frase “mas por que é que naquela festa...” e o rumo da conversa muda completamente.

Havia muito para contar e discutir e fazer recriminações de coisas passadas - e o telefonema “eterniza-se” – e dura o tempo de uma vida inteira. 

Bem escrito sem dúvida, com um diálogo muito vivo, consegue manter a atenção.  E de história engraçada passa a história dramática. Não me perguntem pela Gicomina, não sei mais nada dela.


(1) “Nives” saiu em Edizioni e/o, 2020

(2) Alguns dos títulos em italiano: “L’ ingrato” (2006), “I sassi” (2007), “Cento per cento” ( 2009), “Le nostre assenze” e recentemente “Le case del malcontento” (2018) que recebeu alguns prémios entre eles o  Prémio Città di Lugano.

(3) Clarice Lispector (1920 -1977) nasce na Ucrânia numa família judaica. Escritora, tradutora, jornalista, ensaísta foi uma das pesonalidades mais importantes do século XX. Fugindo de perseguições aos judeus a família chega ao Brasil em 1922. 

https://instantlyitaly.com/favorite-italian-books-nives-sacha-naspini/

 

2 comentários:

  1. Já fui ver se havia alguma coisa dela, traduzida para português, mas não. Fiquei muito curiosa com o que teria acontecido à galinha...

    Adorei as sapatilhas pintadas. Gostei das de flores que estão logo à frente na foto. Giríssimas!

    Beijinhos e uma boa semana:))

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  2. A galinha é talvez a irremediável solidão, não sei, não li. Tens que voltar a Roma, faz-te bem à alma...

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