sexta-feira, 18 de outubro de 2024

CRÓNICAS DE TELAVIVE: O MEU AMIGO AVI

 
A antiga casa em Telavive

No Verão de 2023 cheguei a Israel com uma tristeza quase insuportável. Arrastava uma sensação de solidão enorme - talvez procurada - onde não encontrava sentido para coisa nenhuma. Nem sequer a própria ideia de viver me atraía.

Desanimada, sem querer reagir, asténica – a única vontade era chegar ao fim do dia depressa. E dormir se pudesse. Nada me interessava e no fundo de mim era-me indiferente viver ou não viver. 

As pessoas sérias e preocupadas comigo cansavam-me.

Pensava que a vida era demasiado curta e dolorosa, perdera a paciência para tudo e também para as pessoas que me lamentavam e me queriam ajudar. Parecia-me que “fingia” o tempo todo e, no fim do dia, não tinha a certeza daquilo que sentira era verdade - porque era como se vivesse num palco, com várias máscaras.

Por isso quando a Dalit veio passar uns dias em minha casa decidi ir para Israel no dia em que ela regressasse.  Percebi que tinha de fugir se me queria salvar! E marcámos a minha viagem para Telavive na "El-Al" no dia do voo de regresso dela.

 
no voo da El-Al

Ia triste, com entusiasmo sim, mas insegura, incerta se seria a escolha justa. Tinham acontecido coisas que não esperara. Quantas vezes nesses meses me fechara em mim e sorria para os outros. Ia criando uma protecção, julgava eu, e não queria pensar. Sentia-me como se estivesse a afogar-me e só esperava recuperar naquela terra onde fora tão feliz.

Quando cheguei a Telavive, estava um Verão cheio de cores e de risos - e animei-me logo. Havia uma forma de inconsciência estranha - naquele país sempre ameaçado. Girava pelas ruas, parava em cada café - à procura dos lugares onde fora feliz. 

Onde, tantas vezes, com o meu cão Zac costumava passear de manhã nas ruas próximas da nossa casa no centro, na rehov Lassalle.

 
A nossa casa, hoje.

E foi, assim, neste último Verão que conheci o meu amigo Aviv. É verdade que havia uma "realidade" anterior a aproximar-nos: São Tomé. 

Eu vivera muitos anos na Ilha e um dia já em Portugal - depois de ter vivido já em Israel cinco anos  e outros cinco em São Tomé e Príncipe - recebi uma mensagem do Aviv - que eu nunca vira e que era apenas amigo de outros amigos. Pedia-me informações - e contactos - sobre São Tomé. 

Contou-me que uma comum amiga, israelita, que fizera um trabalho de formação cultural em São Tomé, lhe indicara o meu nome. 

Nessa altura sei  que falei com a Lurdes Ferreira, secretária do Manuel nesses anos, uma mulher extraordinária que se revelou como era: inteligente, prestável e competente. 

Ela e o filho encarregaram-se de orientar esse ‘amigo’. Ao voltar de São Tomé, o Aviv escreveu-me para Portugal a dizer que correra tudo bem e a agradecer-me as informações. E acrescentara: “Se passar por Israel um dia, telefone-me.”

 
São Tomé, a baía de Ana Chaves

Chegara há uma semana a Israel e tinha-me acontecido já tanta coisa boa: reencontrado amigos, feito novas amizades, sentira emoções diferentes e voltara aquela sensação de liberdade que sempre ali sentira.

Os dias passavam rápidos em Telavive. Suponho que a intensidade com que se vivem as coisas pode tornar tudo diferente. É o que se chama “tempo psicológico” cuja duração sentimos de modo tão diferente. E que nos leva por vezes a tomar decisões impensadas.

Andava quilómetros a pé para apanhar os autocarros que me levavam onde me apetecia ir. Esquecera completamente o desinteresse e a astenia que me prendiam na minha casa de São João. Telavive é uma cidade mágica, dizem os israelitas, a cidade da magia absoluta. A cidade branca, a cidade sem repouso, a minha "cidade bem amada", digo eu.

Telavive fez-me logo pensar tantas coisas novas e acreditar outra vez: o tempo passa, o tempo leva, mas o tempo cura e o tempo traz. A vida tornara-se mais suave, apesar de algumas recordações dolorosas. Vivera lá os cinco maravilhosos anos mais maravilhosos da minha vida.

E foi num desses dias que "apareceu" o meu amigo Aviv!

 
Tomei nota desse encontro no caderninho que comprara na livraria Steimatzky.
 
 Hoje fui ao Café Segafredo tomar café com um israelita, amigo de amigos, que conhecia apenas pela ‘internet’ - quando, há dez anos, me apareceu. Estava interessado em São Tomé, queria saber pormenores sobre a “passagem” dos judeus pela Ilha, no início da colonização. Houve uma troca de 'emails' e sei que o pus em contacto com o Centro Cultural Português de São Tomé - que o Manuel dirigira como Conselheiro Cultural."
 
 
Se passar por Israel..." Tinham passado dez anos - e eu estava agora em Israel. Reparei que guardara o contacto dele e mandei-lhe uma mensagem. Respondeu e combinámos tomar um café para nos conhecermos e falar dessa viagem e do que vira por lá.

E lá o esperei no Café Segafredo, o meu preferido. Telavive é a cidade dos Cafés, conheci dezenas deles e ia regularmente a três ou quatro: o "Cassit", o "Dizza", o "Panorama", mas o Segafredo fora sempre uma paixão especial, talvez por me lembrar de Itália a e saber que era muito bom o café.

 

Dizengoff street

Devo dizer que, logo que cheguei a casa da Dalit -  onde fiquei instalada parte do tempo - o meu primeiro passeio foi até à Dizengoff street.

Nessa primeira noite fui encontrar-me com a Ruti no centro. A Ruti foi a minha professora de hebraico dos tempos antigos em Telavive. Ficámos sempre amigas e sempre nos escrevemos. Ela já tinha estado em Portugal. E fomos jantar ao “Sushi-bar” onde a filha, pianista com o Curso do Conservatório, ia trabalhar como  

O “Sushi-bar”

É preciso conhecer Israel para compreender certas coisas. A Lilit aos dezoito anos foi fazer a tropa - como é normal as mulheres fazerem em Israel. Creio que se aprende muito nesses dois anos, duros sim mas cheios de novas experiências. Aprecia-se de modo mais intenso o valor da amizade porque se percebe, muito mais cedo, como a vida é efémera e que a morte está sempre presente.

Quando acabou a tropa, a Lilit continuou o Curso no Conservatório até ao fim. Era considerada pelos professores uma boa pianista. A Ruti esperava que continuasse a estudar piano, a especializar-se. 

Mas a Lilit matriculou-se num curso prático -e explicou à mãe que queria viver uma vida normal, ter amigos da idade dela, estar com eles, viajarem. Aprendera como a vida era curta. Ser uma pianista profissional sabia como o estudo ia ocupar-lhe todas as horas da vida - e absorver-lhe as energias.

   

Não queria sacrificar a vida com os amigos e,assim, queria arranjar um trabalho que não a prendesse muito e lhe desse liberdade de movimento. Continuou a dar lições de piano a convite de um professor e à noite trabalhava no “Sushi-bar” da esquina da sederot Ben Gurion com a Dizengoff. Aos domingos à tarde, dava um concerto numa sala de concertos.

Continuando a história do meu amigo Avi - fui-me encontrar com ele no Café Segafredo. Sabia qual o autocarro que devia apanhar na Yehuda Hamacchabi - perto da rehov Brandeis onde vivíamos - para ir à rehov Dizengoff.

(E, neste momento preciso, pensei, profundamente chocada, que tudo isto que vou contar se passara no Verão de  "outra vida”. Israel está em guerra, não tem vida de cafés e as ruas de Telavive estão desertas. Disseram-me que as sirenes voltaram a tocar esta noite. As pessoas, os amigos de quem vou falar, têm de se refugiar nos “bunkers”. 

Sei o que é um “bunker”, tínhamos uma divisão “bunker” na casa onde vivemos cinco anos. Numa altura tivemos, inclusivamente, máscaras anti-gás para usar caso se realizasse a ameaça de um ataque com gás mostarda, nos tempos do Saddam Hussein. Pensar nisso arrepia-me. Muitas das casas antigas da cidade não têm bunkers - mas existem bunker públicos em todas as ruas. Penso nas pessoas que têm de correr para o abrigo que estiver mais perto de casa e têm só poucos minutos desde que a sirene começa a tocar.)

Mas voltemos ao Café Segafredo e ao Avi. Encontrei uma pessoa agradável e pensei que era muito bom que o “meu amigo” fosse uma pessoa divertida - talvez um pouco maluco na verdade. Fazia-me rir, com o seu humor judaico de que sempre gostar. E eu precisava de rir, de ser inconsciente.

As pessoas sérias cansavam-me. Sentia a vida demasiado curta e dolorosa e perdi a paciência para as coisas definitivas e para certas pessoas graves e sem esperança, que sabem tudo mas não sabem rir.

Era um tratamento muito bom para a minha neurastenia. Ali no Café, em Telavive, conseguia falar e rir com o meu amigo Avi. Ficámos umas horas na esplanada do Segafredo a falar da vida.

A rua estava com o movimento habitual - apesar do calor da tarde de Verão. Telavive é sempre a “cidade-sem-repouso” que eu tão bem conhecera. Mas à sombra, na esplanada, estava-se bem e era bom conversar. O Aviv falou do seu trabalho e da sua vida. Nascera num kibbutz, no Neguev, e continuava muito ligado a ele. Contei-lhe da nossa viagem ao Neguev com a Lea e a família toda numa espécie de camionete.

 
Monumento no Neguev, por Dani Karavan

Fora um passeio cheio de ‘descobertas’ e de coisas aventurosas. Andámos pelo deserto, encontrámos camelos, vimos lamas. E, no fim da tarde, fomos conhecer o kibbutz Sde Boker, onde viveu e está enterrado Ben Gurion. 

Claro que o Aviv conhecia o Kibbutz Sde Boker. Era mais um ponto a ligar-nos.

E falámos de São Tomé. O Aviv contou-me o que vira em São Tomé sobre os judeus. No Cemitério de São Joaquim, vira túmulos cujas lápides tinham a estrela de David incisa, juntamente com o nome do falecido. Muitos eram nomes de cristãos novos, mas outros eram judaicos. 


Tirara fotografias das lápides e mostrou-mas. Impressionaram-me. Tinha passado no cemitério de São Tomé muitas vezes e sei que tinha uma vista bonita sobre a ilha e sobre o mar - e vira de passagem esses túmulos. 

No fundo, este assunto que ele fora estudar em São Tomé refere-se à passagem trágica dos judeus por aquela ilha perdida - passagem que talvez poucos conheçam - ligada ao tempo da escravatura e aos males da Inquisição em Portugal.

De facto aconteceu: entre os ano de 1493-97, o Rei Dom Manuel I mandou retirar os filhos menores aos pais judeus - já “cristãos novos”- e mandou-os para São Tomé e Príncipe. Segundo o Rei, a Ilha “tinha de ser povoado depressa”. (1)

Não se sabe bem o número dos que foram para ali enviados, as opiniões dos historiadores divergem, mas fala-se de cerca de 2.000 crianças entre os 3 e os 17 anos.

Crianças para “povoar” a Ilha perdida no Oceano - perto da costa do Gabão. Uma ilha, há pouco descoberta, não desbravada e de que pouco ou nada se sabia. Contam as crónicas do tempo que estava cheia de “lagartos gigantes” e de cobras, animais nunca vistos antes, e com um clima muito hostil - motivo pelo qual a maioria das crianças morreu nos primeiros anos.

Algumas terão sido atacadas pelos animais selvagens, outras sucumbiram aos ardores do clima e à fome.

A ideia do meu novo amigo era conseguir uma informação mais detalhada sobre essas viagens das deportações de crianças judias, saber quais os barcos, quem foram os capitães. Pensava ele que teria muito interesse saber os nomes de alguns dos escravizados judeus - para um dia se poder pôr uma lápide a contar a história dessas crianças.

Uma placa como pequena homenagem apenas”, dizia-me. O Avi era um sentimental.

Eu estava de acordo, a ideia entusiasmou-me – mas calculei que provavelmente não chegaríamos a nenhuma conclusão. Nunca seria um trabalho fácil: exigiria para pesquisa uma preparação histórica e filológica. Ir à Torre do Tombo? Disse-lhe que ignorava o que se poderia fazer, mas a ideia era bonita.

Supunha, aliás, que toda essa documentação estaria em Israel, no Museu do Holocausto. Alguns amigos em Israel confirmaram-mo depois.

Seja como for, gostámos da ideia. Era aventurosa e ele contara-me das viagens que fizera pelo mundo. Vivera na China e falava mandarim, vivera em África várias vezes e eu que sempre gostei de imaginar aventuras fiquei encantada. Enquanto durasse a imaginação e a fantasia, tudo era bom.

Confesso que a ideia de homenagear os "judeuzinhos" me pareceu uma ideia bela mas um pouco ingénua. Durante aquela tarde, porém, nem pensei nisso: era bom conversar, recordar coisas de São Tomé. E inventar histórias mesmo impossíveis.

Era inteligente e divertido o meu amigo Avi e o que me contou da sua vida era muito interessante. Despedimo-nos já amigos. E continuámos a falar por mensagens e a conversa começou a tornar-se mais íntima, quase familiar, como se fosse uma pessoa conhecida há muito.

Por que estás tão triste?”

Contei o meu desgosto, a morte do Manuel e a sensação estranha de ter perdido em tão poucos dias uma pessoa que conhecera quase adolescente. Falei da solidão que me caíra de repente em cima - por mais que os amigos quisessem ajudar e fazer companhia – e da ideia que pouco mais tinha a viver e que pouco me interessava.

Quis animar-me, não gostava de me ver triste: “tu não és uma pessoa velha nem triste, tens muita juventude em ti e muito entusiasmo”, dizia ele. “E acreditas na vida!”

Devia continuar a viver, a fazer coisas, a escrever - tinha-lhe contado que escrevia histórias - e insistia que tinha de ser eu própria a tentar “criar” essa nova vida. Sem medo.

Era uma conversa boa e o tom era sempre divertido. Talvez ele também quisesse divertir-se. A verdade é que eu passei a divertir-me realmente com as conversas dele. Como ele dizia, “podemos falar de tudo com bom humor e um espírito divertido e puro”.

Era verdade mas havia um pouco de loucura em tudo, devo dizer que o pensei. Passou a mandar-me todas as noites uma mensagem para eu ficar contente. À noite chegava a mensagem que eu já esperava, com ideias disparatadas e as conversas mais absurdas que no fim eram só para me fazer sorrir.

As noites deixaram de ser tristes e monótonas - havia a expectativa de, à noite, saber o que ele tinha inventado para me distrair.

Um dia vou dar-me ao trabalho de copiar essas mensagens que creio merecem ser guardadas enquanto viver porque, em Israel e na cidade bem amada de Telavive, encontrei uma pessoa que quis ser um amigo, que se preocupou comigo e me quis ver feliz.

Gosto da ideia que uma pessoa possa ter muitas vidas dentro de uma vida. É uma filosofia como outra e quero pensar que é assim, porque sinto que é assim. Todas essas vidas nos pertencem e todas podem existir se tentarmos. São nossas mas por vezes não as conhecemos.

Tudo a propósito deste amigo um pouco louco que encontrei. De regresso a casa, no avião, comecei a lembrar-me das suas conversas e na promessa de sermos amigos e sempre sinceros.

A verdade é que falei com ele mais de mim e da minha vida do que com muita gente que conheço há anos. Ajudou-me a procurar forças dentro de mim, a sentir-me de novo eu, sem lamentos nem choros.

A querer ser uma lutadora e não uma pessoa desistente - eternamente viúva de espírito. Se houve alguém que até hoje me tenha ajudado a perceber a sensação de ainda de ser “eu” e de ser livre, ou até mais livre, foi o meu amigo Avi.

A brincar, explicava-me como podia ser a minha vida, as viagens que havia por fazer, os mundos do espaço, os desertos, tantas paragens desconhecidas. Ao ouvir o que dizia acreditei que era de facto possível e que estava na minha mão tudo. E senti a vontade e a curiosidade de outros mundos – como dizia José Régio no título do seu belo livro “Há mais mundos” - de viagens ao desconhecido, de pessoas estranhas mesmo que fossem apenas imaginadas, uma fantasia. E sentia-me como se essa segunda vida tivesse já começado.

***

Sou a mesma pessoa que sofre ainda pela partida da pessoa que me acompanhou a vida inteira e com o qual, melhor ou pior, fui feliz. Estranho a sua ausência todos os dias mas isso não me obriga a ser infeliz - se me sentir feliz.

O meu amigo Avi - que desapareceu depois de me ter ajudado a “querer” viver - explicou-me que querer ter a nossa vida não é ofender quem partiu. Pode-se viver e sermos os mesmos, ter a mesma dor - mas continuar a amar as coisas, o mundo, as gentes - de outra maneira talvez.

Era possível olhar com curiosidade, continuar a falar com o mesmo interesse. Recomeçar apenas a vida igual – mas já diferente - porque tudo o que interfere connosco nos obriga a pensar e nos transforma.

E isso pode implicar a necessidade de voltar a falar de coisas perdidas, de sentimentos que fechámos em nós e também dessa possibilidade de nos podermos abrir com os outro e conseguirmos falar de nós. E a ser sinceros connosco, sobretudo connosco.

Podia ser possível voltarmos a ter sentimentos e a ter entusiasmo por estar vivos, sentir uma espécie de amor diferente pela vida recomeçada.

Ter sentimentos que podem parecer novos – ou ser os mesmos, renovados. Com desafios, com riscos, é evidente. O que pode implicar o aparecimento de uma “espécie” de amor, porque se estamos vivos continuamos a sentir.

Telavive ensinara-me sempre a pensar nisso, no estar viva: em Telavive estamos vivos, somos livres e podemos amar. Por isso amara tanto essa cidade. E amo.

Devia continuar a pensar que podia existir uma vida para mim e não me “anular” e não me sentir obrigada a desistir de tudo o que amava na vida e, mesmo, a desistir de viver. A fechar-me – como tantas vezes pensara fazer, na vida “de antes”. 

Podia falar, podia abrir-me com os outros, com os amigos. E eu ia pensando mais sobre mim: Será isso a “segunda vida” de que falou Jan Fleming - no título do livro do James Bond, “You only live twice”?

Será verdade que “só” vivemos duas vezes? Os seres humanos - mesmo os que se amam muito - não são iguais a nós mesmos, têm uma sensibilidade diferente, anseios diversos, ilusões que não querem perder, coisas que por outro lado querem esquecer.

A compreensão é difícil e a compreensão total do outro com quem se vive é impossível. Quantas vezes me fechei e sorri, quantas me fechei e chorei – e me pareceu que ia criando em volta carapaça.

Senti-me muitas vezes como um fóssil – com uma almazinha bem escondida debaixo de camadas de pedrinhas e areia que se iam soldando como uma argamassa de peso e iam tapando os sentimentos escondidos.

Depois da morte do meu amor de tantos anos, pensei muitas vezes desistir de tudo, fechar-me e pensar que até ao fim da vida iria ter saudades, sentimentos de culpa, ressentimentos talvez.

Passeando em Telavive pelas ruas que amava, a sentar-me nos cafés que conhecia como os dedos da mão, a ver o mar na esplanada da Kikar Atarim - deixei de pensar no “fim” da vida, no limite do tempo que nos é dado, a tal nossa “oportunidade cósmica”. Até porque esse fim não podemos adivinhar nunca quando sucederá.

Dias mais tarde, sentada a tomar um sumo no Pôr-do-sol - assim mesmo escrito em português - que substituíra o Café da Danit, o Panorama - senti vontade de me espreguiçar, de me esticar toda para que a minha alma se libertasse dos vários pesos. Sentia o sol na pele, a música de jazz suave, quase ouvia os minutos passarem devagar e ao mesmo tempo a ter a sensação de que o tempo parara comigo a ver o mar.

No fundo, percebi que tinha o tempo que quisesse para me habituar a viver.

Talvez a minha vida interior - e aquilo que eu quero escrever - pudesse vir a ser já a vida nova de todos os dias, a tal “segunda vida”, que podia começar.

Pensei que ia viver o que houvesse para viver, sem medo de nada, sem susto pelas consequências de certos gestos, viver sendo realmente livre. Viver como eu achava que queria viver. Com alegria e um pouco de loucura e a acreditar nas pessoas e na vida.

A vida, esse espaço de tempo - curta passagem, dizem, mas quem sabe o que vamos viver? Quantos morreram jovens e nem essa “curta passagem” - que nos anunciaram como “vida”- eles tiveram!

O que importa se é longa ou curta a vida - se pensarmos em milhões de anos? Se olharmos a infinidade de estrelas no céu, a lonjura do sol e as estrelas que – nós não sabemos quais ainda - mas já morreram.

É tudo tão mais complicado do que a nossa curta passagem. E, a olhar para o mar, pensava que o tempo passa, o tempo leva mas que o tempo traz muita coisa se quisermos – quando verdadeiramente o quisermos.

Ali, podia deixar passar o tempo, não tinha horas para voltar a casa. Talvez ficasse a ver o pôr-do-sol sobre o mar. O dia era todo meu.

***

O meu amigo de Telavive tinha razão. Nunca se deve desistir de viver. Nem de abrir novos espaços sejam eles onde forem e como forem. Tanto pode ser no deserto do Neguev como ao pé do mar, em São João do Estoril.

Pode ser que nunca mais veja o meu amigo Avi, mas vou seguindo a sua lição.

Dizia Ben Gurion: It is in the Negev that the creativity and  pioneer vigor of Israel shall be tested  (2) E estas palavras fazem-me estremecer e sinto angústia. Sim, angústia por tudo o que está a acontecer em Israel.

É triste porque, no Neguev, nos kibbutzim do sul de Israel estavam aqueles que tinham, ou julgavam ter, uma melhor relação com os palestinos em Gaza. E foram atacados de forma inusitadamente violenta e cruel.

Os nossos olhos estavam voltados para Jerusalém”, dizemos versos da canção mais famosa em Israel, o hino “Haktiva”, mas não chegou para os salvar. (3)

Não tenho sabido nada do meu amigo nos últimos tempos. As guerras começam mas nunca se sabe quando acabam. Disse que estavam bem, que estava no kibbutz a trabalhar com a família - mas não deve ter tempo nem para pensar. 

E eu queria agradecer a ajuda que me deu - e penso “até um dia, Avi”!

***

(1)  Em 1493, o Rei Dom Manuel mandou retirar os filhos menores aos pais “judeus-cristãos novos”

https://herancajudaica.com/2012/10/26/criancas-judias-portuguesas-de-sao-tome-e-principe/

Tese de Cleuza Teixeira 

https://repositorio.bc.ufg.br/tedeserver/api/core/bitstreams/9dbbc78c-d055-4cf1-a94a-5fa3e81fb39d/content

(2)  É no Neguev que a criatividade e o vigor de Israel será testado”, David Ben Gurion, Sde Boker, 1955. Estas palavras de Ben Gurion fazem-me estremecer hoje. Prenunciam o que hoje se pretende fazer a Israel: destruí-lo. Foi, de facto, no deserto do Neguev - onde grande parte dos kibbutzim se construíram - que foram atacados, e barbaramente assassinados, em 7 de Outubro passado, tantos israelitas inocentes.

E ninguém no mundo se preocupou com isso.

(3) “Um olhar para Sião”, diz o hino nacional de Israel Hatikvah (Esperança) - uma conhecida canção de Israel - e esse é um dos seus versos mais famosos: “ayin le-tzion tzofiah”.