Tenho uma amiga que me conta histórias fabulosas. Verdadeiras. Da vida dela. Não as conta com a intenção de ser engraçada ou de se dar importância, vêm naturalmente à conversa, são espontâneas. Aconteceram. Passaram-se no tempo dela. Ela viu ou ouviu.
Para mim, ela é uma pessoa especial, vem de outro mundo - é francesa - mas não é por isso - foi porque a sua vida percorreu mundos confusos. Sei que teve uma vida que nunca entendi bem - mas cheia de aventuras - por Paris, Londres e pelo mundo todo antes de se vir instalar em Portugal.
Conta as coisas e olha-me com espanto, ingenuamente. Ingénua a Marion? Não sei, mas se o fosse era no bom sentido da palavra, das pessoas que são crédulas, que são generosas e que se entusiasmam com a vida mesmo quando ela não corre assim tão bem.Muito esguia, lembra-me um “folletto” – que é uma palavra italiana intraduzível. Será duende? É e não é só isso. É uma figurinha frágil que anda por aqui e por ali, na sua leveza quase etérea. Mas cheia da sua força.
Uma das primeiras histórias
dela foi, aliás, a daquele dia de vendaval em que, leve e etérea, depois de ter girado e girado como uma folha
seca sobre si própria, foi
projectada ao chão pelo vento.
- Salvou-me um senhor ucraniano - contou-me ela depois - que parou a carrinha de propósito para me ir levantar do chão. E protegeu- me de encontro ao carro.
Parecia assustada ainda. Continuou:
- E parti três dentes! A porta da carrinha ia voando!
Com tudo o que se vê dos furacões que percorrem o mundo, até me assustei.
- Três dentes? É horrível!
E continua, mudando de assunto de repente:
- Maria João, sabes, adoro a natureza. E os animais. E tu?
Pelas histórias que me conta,
sei que é verdade. Além disso, basta ver a cadela velhinha deitada num belo
colchão com almofada de cetim cor de rosa. E a conversa, cheia de ternura que faz com ela, elucida-me.
Tem um falcão na parede que bem gostava se lho pedir, mas essas coisas não se fazem. Tem também um gato enorme que pesa sete quilos - esse ainda não o vi.
Sei que existe pois há dias confiou-me que a mãe vem de França visitá-la e que não quer ficar em casa dela. Vai para o hotel. Por causa do gato de sete quilos.
- Um hotel soturno!
- Ela não quer estar na minha casa, sabes porquê? Porque acha que o meu gato pode comer o mini-cão dela, um chiwawa ou coisa do género. Pesa um quilo só.
Encolheu os ombros como se a tal cadela que a mãe ia trazer fosse um rato minúsculo - e continuámos a conversar. Ela vai-me cortando o cabelo.Ah, porque ainda não disse que a Marion é a melhor cortadora de cabelos curtos que conheço! E eu uso sempre o cabelo curto.
Ela vai avisando, séria:
- Não mexas a cabeça, nem um
milímetro! E quase relojoaria. Tenho que ver a tua cabeça sempre na mesma posição. É quase
matemático. Uma esquadria ou lá como lhe chamam.
Imobilizo-me por uns minutos e ela continua a falar:
- Tens uns pombinhos na varanda, não é? Sabes que eu tive a minha varanda cheia de caracóis?
- O quê? Não acredito!
A verdade é que me pus-me a rir porque me lembrei de uma história de horror 'hilariante', de Patricia Highsmith que, nas suas histórias de mistério e suspense, é uma verdadeira peste sem piedade dos leitores!
"O mundo dela é “irracional e claustrofóbico”. Lembro-me que era o grande Graham Greene que o dizia, no prefácio aos "Melhores Contos de Patricia Highsmith" : "entramos naquele mundo com a sensação de um perigo pessoal". (1)
Alguém leu, por acaso, “O observador de caracóis”? Se não leu, se não tem os nervos fortes, não leia. No início a escritora diz:
“Nada mais insignificante do que um caracol. Mas a vida naquela casa nunca mais foi a mesma. Sobretudo desde a noite em que Knoppert disse:
- Encontrei um caracol na salada e tive pena dele. Fui pô-lo nas flores e nunca pensei que se reproduzissem assim! É verdade que eu os ia alimentando sempre bem com muita alface fresca.”
Eu estava já a rir-me cá para dentro! Lembrava-me da história! Pobre do observador de caracóis que 'era observado e os
observava já na cave'.
A Marion continuava, pensativa:
- Não imaginas! De repente,
eram muitos. Acreditas que devo ter tido lá uns trezentos caracóis?
Achei exagerado mas quem era eu para ter uma opinião? Nunca tive caracóis na varanda.
Os únicos caracóis que conheço estão no livro da Patricia Highsmith que se chama 'O observador de caracóis'. E não tem nada de bom! Digo que é mesmo um livro cruel.
A Marion não parava de falar e eu não lhe falei da Patricia Highsmith. Mas eu estava a pensar que foi o meu sobrinho Zé Manel que me deu esse livro dela - o primeiro foi o "Blue" e ainda outros já do herói-anti-herói "Ripley", todos eles misteriosos e com uma ironia a que eu chamaria "crueldade mortal"!
A Marion continuava a contar.
- O pior é que quando voltei para Paris, a minha senhoria disse-me que eram assustadores. E que decidiu matá-los todos. Telefonou-me a dizer:
‘Marion, tinhas uma praga de caracóis mas eu dei cabo deles ! As persianas já nem se abriam dum lado."
Agora era ela que se ria.
- Haha, ela é tão parva! Não podes imaginar.
Fiquei à espera do resto, mas a Marion mudou para outra conversa dentro do mesmo assunto. Ou que ao menos falasse do mar.
(E eu é que me lembrei nem sei porquê de dois quadros de AKsella Galen Kalelli (1904) extraordinários)

- Um dia no supermercado vi um saco de caracóis do mar, à venda.
Adivinhei que vinha dali mais uma história de caracóis. Fiquei à espera.
- Sabes o que fiz?
- Não.

Mas calculava que os tivesse comprado.
- Comprei-os! E sabes o que fiz depois?
- Não.
Mas também calculava.
- Fui à Praia da Poça ao pé das rochas e deixei-os lá todos. Porque me senti culpada...
Ficou pensativa.- O que achas que lhes sucedeu? Uma amiga disse-me que tinha dado cabo da vida naquele bocado de mar, porque eles se reproduzem muito.
Claro que não resisti e me pus a rir e claro que os cabelos se mexiam todos.
- Está quieta com a cabeça senão corto-me.
De facto usa uma tesoura mas também ma navalha pequenina japonesa que corta imenso. E cortou-se mesmo. Umas gotinhas de sangue pingaram do dedo mindinho.
- Não faz mal. Estou habituada. Mas agora não te mexas!
- Desculpa.
Entretanto, o telemóvel dela toca, toca.
- Clientes! Posso atender? Não gosto nada de interromper os cortes.
- Responde, claro!
Quando desligou, protestou:
- É de loucos!
Desligou o telemóvel e disse:
- Custa-me a perceber ainda as portuguesas.
Encolheu os ombros, olhou para o espelho em frente e disse:
- Percebes isto? Eu digo:
- Amanhã não posso, está tudo cheio. Só no dia tal à hora tal.
Parou com a tesoura na mão outra vez e acrescentou:
-E sabes o que me perguntam ainda?
"Ai, mas tem a certeza? Não pode ser mesmo amanhã?"
Agora olhava para mim, espantada, e dizia-me:
- Se eu não tivesse a certeza, por que é que dizia?
Muito português, concordei. Já notei esse hábito de “tentar” convencer os outros mesmo depois de saberem que é impossível.
- Sim. É de loucos.
Abanava a cabeça.
- Outra coisa que eu não entendo, vou-te contar. Na quarta-feira, que é a minha folga, saí de casa por causa do gato e a porta fechou-se com o vento. As chaves ficaram lá dentro, em cima da mesa.
- Ah! E o que fizeste?(Devo interromper aqui para dizer que a Marion é uma verdadeira "protectora dos animais" e que, na sua zona, vai à noite dar de comer aos gatos que estão à espera, pois sabem que lhes leva de comer)
Respondeu, impaciente:
- Era uma maluca! Fiquei de cabeça perdida! Tive sorte porque a janela estava aberta e a mesa é mesmo ao pé da janela. Fui buscar uma cana ao jardim da vizinha e pus-me à pesca das chaves.
- Tiveste sorte!
- O pior é que, enquanto fazia aquela ginástica toda, passou uma vizinha que me perguntou se podia cortar-lhe o cabelo. Eu só lhe disse: ‘Não vê que estou à procura das chaves?’
E já se enervava a Marion.
- Ela não se calava. Isto tem sentido?
Não tinha sentido, claro. Ela estava furiosa e eu ria-me mais porque já ouvira 'clientes' a perguntar isso mesmo.
A Marion continuava:
- Queres ouvir outra história?
- Quero! Adoro as tuas histórias!
- A minha mãe é um bocado pírulas mas tem bom coração como eu. Ouve esta história.
Endireitou-me a cabeça, com a tesoura bem afastada.

- Um dia entrou um passarinho pela janela da sala Coitadinho. E depois?
- 'Le pauvre' tinha uma perna partida.

- Tratei-o eu. Com um palito de dentes, a fazer de tala. Era pequenino!
A minha mãe chamou-lhe Gaston. E ficou lá uns dias a bater com a cabeça nas paredes. Sim, le pauvre!
Agora ria-se ela, a pensar na própria história.
Vi os olhinhos divertidos da Marion detrás dos óculos de aros vermelhos muito modernos. Ria-se a pensar já na história do Gaston. Eu imaginava o Gaston. E eu ri-me, claro, a imaginar o que dali viria.
- Desculpa, Marion.
- Está bem, mas tem cuidado! Olha a tesoura japonesa.
Interrompendo o que contava disse:
- Acreditas que para ser afiada me levam uma fortuna? Mil euros!
E continuou:
- O passarinho curou-se. E um dia a minha mãe achou que tínhamos de o ir soltar no parque.
- "Ficar com um passarinho preso em casa não é bonito", disse ela.
E lá fomos as duas ao Parque das Flores. E a minha mãe disse:- “Voa, Gaston!”
- E ele voou?
A Marion riu-se:
- Claro que voou! Abriu as asitas e desapareceu na copa das árvores.
- Ainda bem!
- Ainda bem? O pior foi que a minha mãe se arrependeu logo. Queria o Gaston de volta!
Começámos a rir-nos.
- Qual é o passarinho que quer voltar para casa?
- Pois...
- Mas a minha mãe é maluca e ia todos os dias ao parque e chamava-o ‘Gaston!Como podia deixar de me rir? Ri-mo-nos as duas, às gargalhadas, não conseguíamos parar - e ela afastava com todo o cuidado a tesoura japonesa do meu pescoço.
Ai Marion, Marion, minha Marion inesquecível!
Ainda agora mesmo voltei a rir-me com a história do passarinho Gaston!
Quando te for ver, tenho de te levar um passarinho de papel e dizer-te que afinal o Gaston quis voltar!
Ai Marion, Marion, mina Marion amiga inesquecível. Ainda agora voltei a rir com a história do passarinho Gaston!
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(1) Patricia Highsmith, Fort Worth, Texas, 19 de Janeiro de 1921 - Locarno, Suíça, 4 de Fevereiro de 1995
no prefácio aos Contos:
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