domingo, 5 de abril de 2009

a tentação da ficção policial... Why not?

(esta é a minha tentativa de ficção policial: uma história que se passa em vários lugares; o meu herói chama-se Michael Brenner e não tem nada de particular para ser um herói... só que se vê obrigado a resolver um enigma...

Estes capítulos da III parte do livro são quase o fim da história. Mas há o "antes" e o "depois". Quando publicar o livro, se publicar, podem ver... )



Os Olhos de Jade




III PARTE

Capítulo 1
O avião começava a baixar sobre a ilha de S. Tomé. Via-se mar, apenas mar e o avião baixava rapidamente. Onde iria pousar?

Michael sentiu-se mal. O avião aterrara.
Desapertou o colarinho da camisa colorida que Liliana lhe dera. Sufocava. Quando as portas abriram, desceu as escadas do avião recebendo no rosto o ar quente e húmido, denso e perfumado, cheirando a terra molhada e a especiarias.
Seguiu pela pista, a pé, atrás dos outros passageiros, até à aero-gare onde a multidão se acumulava, agitando-se, empurrando, procurando apanhar as malas e pacotes variados, meio desfeitos, amontoados numa carreta de madeira puxada por dois empregados e atirada com força de encontro à bancada de pedra, espécie de varandim descoberto onde as malas pareciam sugadas por braços invisíveis.
Conseguiu arrancar do monte a velha mala de couro e foi abrindo caminho até ao guichet dos passaportes e da vistoria de saúde. A confusão era indescritível: um aglomerado de pessoas, de braços esticados, agitava-se com os passaportes e os livrinhos amarelos das vacinas na mão. Empurrou, deu uns encontrões até ser arrastado, com os outros, para a saída.
Respirou fundo o ar pesado.
Vivera ali parte da infância e quase tinha esquecido tudo. Como se tivesse querido apagar da memória a lembrança. O abandono do pai? O choque do regresso a Inglaterra?

Era uma imagem estilhaçada que os cheiros da terra lhe vinham trazendo. Como num caleidoscópio, os bocadinhos de vidro colavam-se e desfaziam-se. A mãe, um chapéu de palha com fitas soltas, o riso dela, um jardim cheio de plantas verdes...
Pensou que estava em África, sobre o risco do Equador, de onde já se podia avistar a constelação do Cruzeiro do Sul, e onde as noites são iguais aos dias.
Era a estação das chuvas. O bafo da noite, o perfume enjoativo da terra, a frutos maduros, a canela, as magnólias, o suor que lhe molhava a testa e escorria para dentro da camisa, pesavam.
Parou a ver a noite negra e as luzes fora. Desceu os degraus da aerogare, olhando em volta. Tirou o casaco e dobrou-o. Lembrou-se de Joan, da angústia dos últimos dias passados ao pé dela. A imagem da mãe voltou com força. Recordou a poesia que o obcecara nos últimos tempos. Sempre a morte, a separação.
I go this way, you go that”, dizia a poesia.
Caminhos separados, para sempre... Assim seria. Passou a mão pela testa encharcada. Em frente, num largo com algumas árvores de flores coloridas, dois ou três táxis velhos, um ou outro carro em melhor estado, alguns jeeps modernos. As pessoas riam, gritavam, agitavam as mãos, saudando os familiares ou os conhecidos que tinham ido esperar o avião que chegava uma vez por semana de Lisboa. Do outro lado do mundo, da Europa distante.

Um motorista veio pegar-lhe na mala.
-“Hotel Miramar, chefe?”
-Sim, sim, pode ser o Hotel Miramar...- respondeu com voz arrastada.
Qualquer servia. Já se habituara a ser conduzido nesta viagem. Queria era ver um quarto fresco, uma cama e poder dormir. De repente lembrou-se que o Capitão, no Bairro Alto, lhe falara de um encontro no Hotel Miramar.
-“Óptimo”, pensou, e encostou-se para trás.

O táxi bamboleava, lentamente, travando a cada momento para se desviar dos buracos que crivavam a estrada. A praia, de areia branca e contornos suaves, com coqueiros debruçados sobre o mar, via-se do lado esquerdo, a lua amarela e enorme espreitava por detrás das nuvens negras. De repente, uma subida brusca que o táxi fez ruidosamente, embalando-se depois na descida. E, a seguir a uma curva mais pronunciada, surgiu diante dele o fulgor de uma baía que mais tarde soube chamar-se Ana Chaves e que nunca mais pôde esquecer. Os reflexos dos barcos parados, as luzes dos edifícios da Alfândega, fixas, que os iluminavam frouxamente. A escuridão, o agitar das águas negras, o tremeluzir de uma ponta de luar nos contornos doces da baía.
Michael olhava, fascinado.
- É maravilhosa, bolas! - exclamou.


O táxi seguia agora depressa demais para o seu gosto. Virou-se para trás e, pelo vidro sujo, olhou ainda a baía que se via agora do lado contrário, sobre o recorte das montanhas altas, que pareciam inclinar-se por detrás dela, e das casas baixas à entrada da cidade.
- Linda!
Do meio da noite, árvores enormes, com grossas raízes retorcidas à flor da terra, surgiam agora do passeio ao lado da balaustrada branca que corria ao longo do mar. Adiante, uma fortificação pequena, branca, quadrangular, recortada no negro do céu, com três estátuas gigantescas junto de uns velhos canhões ferrugentos, a apontar para o mar. O silêncio era interrompido apenas pelo bater das ondas de encontro às rochas vulcânicas onde se entrelaçavam os rebentos de algumas plantas como se o verde da ilha se quisesse prolongar até à água. Nunca tinha visto uma beleza natural assim.
De manhã dir-lhe-iam que as árvores das raízes grossas eram caroceiros e que as crianças deitavam pedras para fazer cair o fruto, o “caroço” e viu-lhes as folhas verdes e acetinadas. E que na estação seca, a Gravana, ganhavam todos os tons do Outono europeu, desde o castanho dourado ao vermelho rubi e ao roxo. Dir-lhe-iam que as estátuas eram dos descobridores da ilha.

Mas neste momento só sonhava com a penumbra de um quarto razoavelmente confortável e fresco. Sobretudo fresco!
O hotel tinha uma aparência agradável. Era uma construção baixa, um pavilhão grande, de formato irregular, com telhado de telhas escuras, muito inclinado. Pintado de branco, tinha uma forma estranha, quase nórdica que destoava naquela paisagem tropical.
Do outro lado da estrada, que era um caminho de passagem, alcatroado, debruçado sobre a praia, havia um falso cais de colunas, cortando o fio contínuo da balaustrada branca. Dentro do hotel cheirava a mofo, a pó, a flores e o hall estava, absurdamente, mobilado com sofás de pele branca que se pegavam ao corpo suado e quente das pessoas. À volta das paredes, o verde das folhas a nascer dos côcos meio enterrados em canteiros de cimento, cheios de terra negra. Num canto, junto da grande vidraça da entrada, uma exposição de esculturas de madeira, em raízes retorcidas, que o fizeram pensar em corpos enterrados. O ar condicionado funcionava mal e os mosquitos entravam cada vez que alguém abria a porta.
- Óptimo para o paludismo, não há dúvida!, pensou.
Encolheu os ombros e dirigiu-se ao balcão que se via ao fundo, do lado direito do hall.
- Queria um quarto, mas ainda não sei por quanto tempo. Confortável, com muita luz e, se possível, com vista para o mar...
- O Doutor não se preocupe, que vai ter um belo quarto! Luz não falta!
Era um rapaz forte com um sorriso agradável no rosto redondo.
- Quer que o acordem?
- Sim, pode ser às oito. Com o pequeno almoço, por favor. Não, não vale a pena, eu depois desço. Espero que uns amigos me contactem. Ligue-me para o quarto se alguém me chamar, seja a que hora for...
- Ok, chefe. Boa noite. Vai ver que gosta do quarto!

Assim que entrou, estendeu-se em cima da cama, com o corpo mole e transpirado. Depois levantou-se e fumou um cigarro. O ar condicionado era fraco e barulhento, mas, quando o desligou, entraram pela janela que vedava mal os ruídos da rua: vozes esganiçadas, risos, um galo a cantar, cães que uivavam em matilhas, iam e vinham como se fossem dar a volta ao quarteirão onde ficava situado o hotel. E o rumor do mar, constante e surdo.
Pelas frestas das venezianas entrava o reflexo da lua que se poisava no soalho de madeira escura. Abriu as vidraças e as portadas.
A lua enorme pairava no céu, agora mais baixa, bola de fogo que se reflectia como riscos na água negra. Inspirou fundo e deitou fora o cigarro, mas pareceu-lhe que os pulmões não recebiam ar. Voltou a fechar, aplicadamente, as portadas de ripinhas envernizadas, os mosquiteiros e os vidros. Ligou o aparelho de ar condicionado e o ruído arrastado encheu de novo o quarto.
- Melhor assim! Respira-se...
A mala estava aberta ao fundo da cama. Pensou em arrumar alguma roupa mas quando abriu as portas do armário, o cheiro a bolor e a naftalina foi tão intenso que voltou a fechá-las.
- Amanhã!..., pensou.
Espalhou o fato claro de linho e o blaser azul pelas cadeiras do quarto, dobrou as calças e as camisas sobre o braço do sofá.
- Não vou usar nada disto. Com o calor que está...

Foi à casa de banho arrumar a escova dos dentes, o frasco de perfume e um saco com as coisas da barba. Olhou-se no espelho e não gostou do que viu.
- Que aspecto horrível, tenho olheiras e até parece que nem fiz a barba!... Bem, mas amanhã tudo muda! Fumar menos... Vida saudável!
Lavou os dentes, vestiu um pijama fresco e arrastou-se para a cama. Adormeceu instantaneamente.

Acordou-o a luz do dia que entrava pelas frestas. Pouco passava das cinco horas. Tapou a cabeça com a almofada e deixou-se dormir até ouvir o toque do telefone. Ninguém telefonara e na recepção também não havia qualquer mensagem para ele. Disseram-lhe que era fácil arranjar um jeep com um condutor experiente.

-“O Doutor pode ir ver o interior da ilha. Ou ir para o Sul até Angolares, à Praia das Sete Ondas, ou a Portalegre, na ponta da ilha... Há lindas praias vulcânicas...”
Agradeceu a informação. Sim, talvez fosse boa ideia arranjar um carro, um jeep como lhe sugeriam.
- “Vai mais seguro, Doutor...”

Não sabia como nem quando entrariam em contacto com ele. Restava-lhe esperar.O “Capitão” mostrara-se muito vago, em Lisboa.
- “Você espere. Alguém o há-de contactar...”, dissera, enquanto o olhava de lado, com o cigarro meio fumado entre os lábios, ou esmagado com força em qualquer sítio que lhe servisse para o apagar.
E depois o bilhete lacónico onde lera:
Há um voo para S. Tomé na 3ª feira. Espere que o contactem.”

Ninguém o contactara. Começava a duvidar se a viagem ia servir para alguma coisa.
“Ingénuo, acreditei no Zurigo...”- ia pensando.

“Como é que depois de tantos anos vou encontrar as pessoas certas? Esse tal Rodrigues ainda estará vivo?”
“Assisti a tudo”- afirmara Zurigo.
“Mas assistido a quê? Depois de tantos anos!... Quem é que se vai lembrar?!”
Era, no entanto, a única esperança.

Decidiu ir tomar o pequeno almoço. Tabuleiros cheios de frutos exóticos, um cheiro enjoativo a fruta e a bolor. Mas o café não era mau.
-É muito bom o vosso café!...
-Vem lá de cima, da Roça do Monte Café... - dissera logo o empregado, solícito.
A sala era enorme e tinha uma bela vista sobre a estrada Marginal. Lá estavam as colunas brancas formando uma reentrância redonda na balaustrada. E o mar era impressionante de cor e de brilho. O céu azul parecia parado, sem uma nuvem, sem um movimento. Como o mar.

-Ali ao fundo é o Pantufo... -explicou o empregado que o servia.
E continuou, apontando:
-Dali, está a ver?, virando à esquerda, é que se vai para o Sul, para Santana ou para Angolares... Foi o senhor que pediu um jeep, não foi? O meu tio é um bom condutor. Tem muita experiência. Leva sempre dois pneus de reserva... Sabe, as estradas para ali são perigosas, muito buraco, muito pedregulho... Só mesmo rocha, às vezes. Fura-se com muita facilidade, se não se conhece o caminho...
- Obrigado. Creio que vou mesmo alugar esse carro. Como é que se chama o seu tio? ~

Tinha gostado do rapaz e daquela conversa matinal enquanto lhe servia o café e lhe ia perguntando:
- Quer fruta? Gosta de manga, banana ouro, jaca? Temos tudo...
- E o seu tio? - insistiu, sem responder.
- Chama-se Floriano. Floriano Alcântara.

Pensou telefonar a Joan mas desistiu. A verdade é que não tinha nada para lhe dizer. O contacto esperado ainda não se fizera vivo. Mas ainda era cedo, não devia precipitar-se.
- Aguardar...
Pensou que era uma boa ideia ir dar uma volta pela ilha, para enganar o tempo. Talvez no regresso houvesse alguma novidade.

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