segunda-feira, 1 de junho de 2009

Histórias da casa amarela: as nuvens







As nuvens subiam e desciam ao sabor do vento. Costumava sentar-me no degrau que dava para o quintal, e olhava o muro ao fundo.
Era um quintal pequeno. Nos cantos viam-se as ervas que rebentavam do muro, cresciam ao lado dos degraus, espreitavam nas pedras dos canteiros onde havia rosas amarelas. Nem sabia no que pensava. Apoiava o queixo na mão e o braço sobre o joelho.
Lá em cima, o céu e as poucas nuvens arrastadas pelo vento que começara a soprar, fresco, ao princípio da tarde. Eram essas nuvens que, momentos antes, me prendiam a atenção, ou parte dela.
Gostava de as contemplar. Conseguia descobrir coisas extraordinárias, composições que me maravilhavam pela estranheza e me faziam sorrir. Quantas vezes, à janela do quarto, uma janela alta, as vi correr sobre os pinheiros da Serra. Quantas vezes, inclinei a cabeça de lado para as poder olhar ao contrário, a imaginar-me por cima e elas a pairarem muito abaixo, parecia-me. Um jogo que me divertia mas que me deixava a cabeça um pouco tonta, quando a reerguia dessa posição incómoda.
- “É perigoso...E se caísse da janela?”, pensava. “Se a mamã soubesse...”
Hoje não queria ver as nuvens de pernas para o ar. Estava aborrecida, não me apetecia imaginar nada, nem divertir-me.
Sentira-me empurrada. Sozinha...
-"Perdoava muitas coisas..., ia pensando, lá isso é verdade”...
Mas desta vez não queria!
Aceitara até não ser bonita, saber que nunca seria como as actrizes que ia ver, às matinées do cinema, com a minha irmã. Filmes que me encantavam e me deixavam triste ao mesmo tempo. Nunca me esqueci daquele filme, com uma música linda que a mãe tocava às vezes ao piano, e que era sobre um poeta e uma mulher linda que devia ser a sua amada.
Contemplei os joelhos esfolados, cheios de pequenas cicatrizes de vários “acidentes”, cobertos por uma penugem que sempre me irritara, vi as pernas magras, os braços compridos, deselegantes. Pensei no nariz que era o que eu detestava acima de tudo: parecia-me largo de mais e com um espaço grande até à boca. E a boca também não me agradava.
Às vezes pintava-me, com o pó-de-arroz e os “bâtons” da minha mãe e, então, a meio do branco da face e do vermelho dos lábios, só via brilhar os olhos.
-“Achinesados...”, costumava dizer a mãe.
Via então os olhos, com as sobrancelhas finas, franzidas, que me davam um ar ainda mais irritado comigo própria e com a figura no espelho.
-“Só os olhos é que não são feios”, pensei.
Podiam até considerar-se mesmo bastante bonitos e, quando não estava aborrecida, tinham uma expressão doce... E as sobrancelhas também eram bem desenhadas, e tinha as pestanas compridas.
- "Não tão grandes como as da minha irmã, é verdade".
E mais aquele jeito que tinha de franzir as sobrancelhas, que me dava o ar de uma pequena fúria.
No fundo, talvez a culpa fosse minha. Não afastava eu as pessoas quando as sentia aproximarem-se? Pensava que vinham ter comigo por pena, porque era a mais feia das três...
Mas havia compensações, bem sabia. Quando tinha boas notas e os pais falavam dessas pequenas vitórias. E as tias chegavam ao serão e diziam:
- “Isso é verdade! Esperta, lá isso é...!”
E no “lá isso” sentia a restrição, a condescendência por tudo aquilo que os outros achavam que me faltava.
Seria eu que deturpava o sentido de tudo o que ouvia? Se calhar nem falavam de mim...
Por que havia de ter sempre aquela mania de ser infeliz? De me sentir preterida? Por não ser bonita?
- "Só a beleza é que nos pode dar segurança e confiança em nós?"
Pensava nisso, muitas vezes.
- "Não é possível!"
Mas a verdade é que muitas vezes me vira desajeitada nas festas das amigas, sem saber onde pousar as mãos, de olhos baixos, sentindo tudo a rodar, a fugir à volta, pensando que o vestido me ficava mal, que toda a gente estava a olhar para mim e a rir-se, ou que os sorrisos que via nos lábios das senhoras eram de comiseração.
- "Estou aqui a mais!..."
Por que é que não tinha ficado em casa, no meu cantinho do vão das escadas, a brincar, ou sentada à mesa, a ler, ou sem fazer nada?
Sozinha, sossegada no meu mundo, sem ver ninguém. Sem as outras...
As outras... As amigas, as que eram bonitas, que se sentiam à vontade nas festas, andando de um lado para o outro, rindo, tirando bombons, dizendo segredinhos, espreitando pelo cantinho do olho, risonhas, seguras, felizes...
Só eu é que estava sempre a mais, incapaz de fazer um gesto elegante, incapaz de estender a mão para a mesa sem ter medo de ver cair o prato dos bolos, entornar-se o copo da limonada ou cair a taça com o gelado...
Uma timidez que não conseguia vencer, um mal-estar muito conhecido, prendiam-me ao canto da parede onde me encostava. E então carregava o sobrolho, cruzava os braços e olhava de alto para toda a gente, sentindo-me antipática e desejando sê-lo ainda mais, engolindo no fundo da garganta um soluço, enquanto as lágrimas me afloravam aos olhos ofendidos.
Tudo me vinha à memória, agora, ali sentada, sentindo o frio dos degraus nas pernas.
Porque a avó me tinha ralhado injustamente e me pusera fora da sala.
-"Ou fui eu que fugi de lá, porque estava furiosa?"
Bem sabia que a irmã era a preferida, fora a primeira neta, muito mimadam, e que com ela não se podia brincar ao pé da avó.
- "A verdade, reconhecia, é que a culpa foi minha..."
Tinha levado a tarde inteira a implicar com ela, a fazer-lhe caretas que sabia bem como a enervavam. Não resistia à tentação de a provocar... Se ela não ligasse, talvez tivesse desistido... Mas só para ver a cara dela irritada, valia a pena! Até mesmo agora, ao lembrar-me, me vinha vontade de rir. E comecei a rir devagarinho.
Via a cara da minha irmã, vermelha de raiva, pegar no novelo da malha da avó e a ir pelos ares acertando na cabeça da avó... E a avó, a gritar:
- “Oh! Que feitio horrível! És insuportável! Sai daqui para fora!”
Teria mesmo dito “sai daqui para fora”?... Não me lembrava bem. Meio a rir, para não chorar, sem deixar que ninguém notasse, fugira da sala fazendo uma última careta e viera esconder-me no quintal.
Já não chorava, nem estava triste, começara a achar graça. Talvez no fim não devesse “fazer tragédias”. Uma coisa tão simples! Eu é que tinha a mania de sofrer com tudo, de imaginar que ninguém gostava de mim!
O dia estava a ficar lindo, pensei. Havia nuvens a voar. E aquele bom ventinho que lembrava o Outono. O Outono era a minha estação preferida. Nascera no Outono... Devia estar a chegar o dia dos meus anos!
Levantei-me de um pulo e pus-me a saltar. Alguém espreitava pela janela da cozinha.
- "Quero lá saber!"
Estava contente! Ri-me e continuei a dançar.

1 comentário:

  1. Vivi mil e muitos momentos assim. Ainda hoje, acho que não sou gostada em casa, na familia. Valem-me as filhas!!! Mas conheço pordentro as nódoas negrasda alma. Seconheço...

    Beijos parceiros

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