segunda-feira, 17 de agosto de 2009

A minha África outra vez: O Nini e a candonga




O Nini e as mangas do quintal

Uma manhã tranquila, no meu quintal. A brisa fresca faz esquecer por momentos o calor que vai chegar em breve. Vejo as mangueiras enormes, cheias de mangas, o papiro delgado que nasce ao lado da janela do quarto. Debaixo do coqueiro enorme, na cadeira de repouso, leio.
Ouço a Milly aos gritos. Acabou o sossego.
-Dôtôra, é vêrgonha! Nini levou manga do quintal e estava a vender à porta da escola.
O Nini estava atrás dela e ela puxava-lhe uma orelha.
- Deixa-o, Milly! Que mal faz? Há por aí tanta manga caída... Pode comer, levar o que quiser...
- É vêrgonha! A vender cada montinho a 100 dobras!
Na sua indignação agitava o corpo forte, ajeitava o avental repuxado na barriga, como se quisesse mostrar melhor a sua dignidade ofendida.
- Sim... O que vai mundo dizer? O quê? Candongueiro?
Eu sorria virando a cara para o lado para ela não me ver.
- Sim, que vai dizer?! Que mãe dele vive tão mal que manda seu filho vender manga?
Conhecia as fúrias da Milly e, sem querer, sorria a imaginar o Nini sentado num banquito –como eu via fazer tantos meninos como ele, à porta do mercado do Ponto- com um caixote virado a fazer de mesa e os montinhos de mangas bem empilhadas. Via-o a guardar as notas de 100 dobras bem arrumadinhas no bolso dos calções sempre a cair.
Eu tinha uma grande ternura pelo Nini. Era um menino frágil, enfezado, com um ar assustado e sempre a fugir das sovas da mãe. Quando a Milly se irritava, o Nini desaparecia do jardim com medo que ela lhe batesse. Ela batia sempre com força.
Ficava lá fora a ouvir, e só voltava quando ela estava calma e a tempestade tinha passado. O que acontecia de repente, pois a Milly nunca estava muito tempo zangada. As fúrias dela iam e vinham.
Quando ia pela rua acontecia às vezes ao Nini encontrar o pai -que abandonara a mãe logo que ele nascera, dois anos depois da Dáy- e também ele lhe dava uns sopapos.
Na escola era um aluno fraco, tímido, nunca respondia, parecia parado. Dizia o professor que não aprendia.
Uma tarde fui falar com ele à escola para saber que problemas eram os do Nini afinal. Aliás, do Wildger, pois Nini era "nome de casa".
- O Wildger? Oh! Esse menino não presta atenção, não aprende...
- Porquê? É um miúdo esperto...
- É preguiçoso, distrai-se a olhar para fora, não gosta de estudar!
Resolvi pôr-me a estudar com ele. Comecei a ensiná-lo a ler. Devagarinho, ia soletrando antes dele. Ficávamos de livro aberto em frente, íamos falando e ele ia lendo.
Como é natural -é o que acontece com todas as crianças, mais tarde ou mais cedo- de repente começou a ligar as palavras escritas às que conhecia, e leu. Vejo bem os seus olhos a brilharem de contentes. Depressa acabou a cartilha e já espreitava com curiosidade o jornal, as revistas. Ia dar com ele a ler alto: "no-jar-dim ha-vi-a-flo-res. Faus-ti-no-mai-z-a-gi-ra-fa..."
- E eu acabava: "acharam uma garrafa!"...
Ele ria-se. Não parecia o mesmo, ganhara confiança em si. Agora queria que eu lhe ensinasse matemática...
Como acabou a história das mangas?
Confesso que não sei. A Milly esqueceu-se, suponho, ou ele prometeu não voltar ao “negócio” da banca.
A verdade é que hoje o Nini (Wildger, na rua), já crescido, tem dois filhos e é "comerciante". A ideia do tal negócio das mangas à porta da escola desenvolveu-se, aumentou na sua cabeça, e vende na “candonga”, termo são-tomense para dizer que troca divisas, vende artigos sem licença, onde calha, tudo o que calha, a quem calha...

1 comentário:

  1. Estas hisórias encantam-me sempre, não só por elas mas como são tão bem escritas, com tanta sensibilidade.
    Obrigada!

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