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E continuo com a triste e bela aventura de Uriel da Costa de que Agustina soube tão bem falar. Voltando um pouco atrás...
Entre
1600 e 1608, Gabriel da Costa estudara, intermitentemente, em Coimbra, Direito
Canónico e começara a leitura da Bíblia e interessara-se, seriamente por esse
estudo. Quando o pai morre, volta ao Porto e, em 1609, ocupava já o lugar
eclesiástico de Tesoureiro da Colegiada
de S. Martinho da Cedofeita.
Desde
jovem estudante, no Real Colégio das Artes, em Coimbra - fechado no quarto das meditações- “as dúvidas que o atormentavam eram muito
inferiores ao desejo de situar o homem na sua verdadeira dignidade. A sua
ambição intelectual estava centrada na explicação do que é justo e injusto, na
sintetização da filosofia do erro. O estado natural e o estado social do homem eram o motivo principal das suas meditações, desde o princípio da sua querela com os doutores (…)".
Agustina pensa que Gabriel (Uriel)da Costa era um espírito superior e que, em relação aos seus adversários, "existiu uma desigualdade de mérito e sensibilidade e o
génio de Gabriel ultrapassavam em muito as condições mentais dos que se
propuseram ser seus adversários.”
Lamenta não se poder avaliar melhor essa superioridade intelectual de Uriel da Costa por não existir nada de certo: “(...) todos os seus escritos foram destruídos e até porque o seu último documento, o ‘Exemplar Humanae vitae’, é provavelmente uma falsificação, não é possível avaliar a superioridade do seu espírito.”
Lamenta não se poder avaliar melhor essa superioridade intelectual de Uriel da Costa por não existir nada de certo: “(...) todos os seus escritos foram destruídos e até porque o seu último documento, o ‘Exemplar Humanae vitae’, é provavelmente uma falsificação, não é possível avaliar a superioridade do seu espírito.”
estátua de Maimónides, em Córdova
Por outro lado, definir
a carreira espiritual de Gabriel da Costa como uma passagem cripto-judaica, depois
judeu-rabínica e por fim saduceísta
(2) é, para ela, inacreditável. E explica: “Na verdade ele nunca fora exemplarmente um cristão, e muito menos um judeu converso.”
Um
místico? Com um enorme desejo de martírio? Um homem em meditação constante?
Rembrandt, Auto-retrato quando jovem
“O quarto das meditações, que em Coimbra fora
uma espécie de sepultura antecipada em que a alma consolida a sua agonia,
levou-o Gabriel para Amesterdão. Numa salinha do primeiro andar, para onde se
subia por uma escada de caracol (vide quadro de Rembrandt de 1632, hoje no Louvre) ele deixava cair o pensamento nos mesmos terríveis deleites que tinham
sido já motivo de horror e desejo nunca saciado.
Rembrandt, Auto-retrato (162)
Porque nada mais o atraía do que abeirar-se do
medo, com passo furtivo, e deixar cair a máscara de tão atrozes apetites, como
era ver-se a arder em fogo, derreter em carvões acesos, ir consumindo as carnes
por efeito de tremendos tormentos. Já tormentos não eram mas um abusar da
fraqueza humana (…)” pg. 135.
Agora,
em Amesterdão e Hamburgo, de judeu converso, ou cristão novo, como era
considerado, tem de se reconverter ao
judaísmo dos seus antepassados.
O seu quarto das meditações, em Amesterdão, é de novo o que fora em Coimbra: o
esconderijo, o lugar para se desvendar e se recompor.
Em Coimbra, criança, saía dali “tremendo, quase a cambalear das suas visões (…) e era ainda um ponto onde ele todo se ia abrigar.”
Em Coimbra, criança, saía dali “tremendo, quase a cambalear das suas visões (…) e era ainda um ponto onde ele todo se ia abrigar.”
Rembrandt, Criança
Quando
pensava nos suplícios que inventava e em que se deliciava nesses tempos, “sabia agora o que aquilo
significava. Ele amava ser destruído, como se ama um retorno implacável ao seio
de origem. Se tinha que atravessar caminhos de deserto, com os pés em sangue;
se tinha que assistir à sua própria decomposição, ao seu próprio exame de
anatomia (…) ele tudo permitia, tudo amava, porque o esperava o grande ventre
da beatitude, onde tudo volta a ser água e densa combinação de génio e perdão
(…). Livre, sem sentimentos, lágrimas, prazeres, sem alma."
***
Em
Amesterdão, de judeu converso, ou cristão novo, como era chamado, tem de
se reconverter ao judaísmo. Não parece simples.
Falando
dos “medrosos esbirros, os denunciantes” que bajulavam os inquisidores, diz: “não são os nossos inimigos, são um
jogo de rupturas (…) estão amarrados ao tema da fascinação e não da coerência.
Basta um olhar, quase um sopro de olhar, que não se entende, não tem nome, e
eles desejam esmagar-te, pisar-te, até que não fique um vestígio de ti (…). Em nome da alma, em nome dessa
coisa sem reciprocidade e sem calor, que era a alma, eles abrasavam-se de
furor.”
Uriel
da Costa contestava a imortalidade da alma. E Agustina escreve:
“A alma era uma iguaria rara que
o homem introduzia na sua pele para se proclamar eterno. E se não era eterno?
Se morria, como uma folha de castanheiro sobre um lago, primeiro girando como
um barco desgovernado, depois apodrecendo e indo juntar-se ao limo da
profundidade? Então tantas vigílias gastas em vão, tantos pavores mal
empregados.” (pg. 137)
Escreve Agustina: “Uriel adoraria Deus na
consciência da razão absoluta que não exclui o ateísmo.”
Na
morte dum sobrinho, criança linda, sentiu um “desespero confuso apoderar-se dele” e percebeu que os homens podiam
aproximar-se através duma dor, dum sofrimento comum, experimentado pela “comunidade das pessoas”.
Como ensinava Maimónides: "é preciso conceber o mundo como suspenso entre destruição e construção, que tudo depende das acções do homem, do equilíbrio entre o bem e o mal."
Somos responsáveis, portanto. Há o bem e há o mal. Podemos agir. Podemos aproximar-nos, pelas nossas acções, ou afastarmo-nos.
Como ensinava Maimónides: "é preciso conceber o mundo como suspenso entre destruição e construção, que tudo depende das acções do homem, do equilíbrio entre o bem e o mal."
Somos responsáveis, portanto. Há o bem e há o mal. Podemos agir. Podemos aproximar-nos, pelas nossas acções, ou afastarmo-nos.
Percebeu que “(...) a dor é um património espiritual
que aproxima todos os povos e todos os elementos dum povo. Compreendeu que era
mais importante o sofrimento do que uma pátria.” (pg.188)
A Dor pode unir. É um património comum. Descobre “a filosofia do amor.”
A Dor pode unir. É um património comum. Descobre “a filosofia do amor.”
Recordo
o belo gesto de Branca, mãe de Gabriel, quando Francisca, a mulher de Uriel, morre.
Ao despi-la, encontra, escondida dentro da camisa, uma cruz pequenina de madeira, embrulhada num paninho.
Francisca, "cristã-nova" em Portugal, reconvertida ao judaísmo, em Amesterdão, guardara a sua “velha” fé de cristã-nova.
Branca -que a recebera e amara como filha – deixou-lhe a cruz junto do coração, por respeito, “honrando assim a liberdade de pensamento sem a qual o regresso não é possível.”
Rembrandt, Lutetia
Francisca, "cristã-nova" em Portugal, reconvertida ao judaísmo, em Amesterdão, guardara a sua “velha” fé de cristã-nova.
Branca -que a recebera e amara como filha – deixou-lhe a cruz junto do coração, por respeito, “honrando assim a liberdade de pensamento sem a qual o regresso não é possível.”
"Dedico-me à utopia dum programa"...
Agustina põe na boca de Uriel da Costa:
“Eu próprio amo a tragédia, é inevitável que
eu a ame. Dedico-me à utopia dum programa, ao irrealismo do método, com esse
amor da tragédia que está no prólogo de todas as coisas. O apetite da vida é o
apetite devorador para a tragédia.”
Talvez amasse acima de tudo a sua condição trágica de homem?
"Essa condição trágica é o sustento do seu afecto pelo mundo; se não fosse pensador da tragédia, nunca seria sequer um homem livre." (pg. 148)
Agustina, citada por Fátima Marinho (3), afirma: ‘Para
Uriel da Costa como para Baruch Spinoza, o judeu tinha de ser uma tragédia
privilegiada, a da dispersão como criação.”
Baruch Spinoza (1632-1677)
“O seu vocabulário não diferia em nada do de
Uriel e traduzia em latim as palavras usadas por este. Para ambos Deus não
tinha nada que ver com o Deus das pessoas supersticiosas e amedrontadas pela
identidade justiceira de um pai poderoso.
Era uma formidável noção filosófica e não menos divina por isso (...) ” (pg 305)
Era uma formidável noção filosófica e não menos divina por isso (...) ” (pg 305)
Rembrandt, o Arcanjo Gabriel
A inteligência era o amor filosófico de Deus.
Deus? Que Deus? Ele queria um Deus que não metesse medo, que não pesasse nos
ombros dos homens. “A filosofia do amor”?
“O que me irrita em vocês todos é
a necessidade de um pai espantosamente outro, a quem não se pode perdoar ser
outro e não nós”. Escreve Agustina Bessa-Luís: “Aderir a uma teologia ou a um
ateísmo parecia-lhe igual esperança e boa fé.”
Uriel da Costa dizia:
“Eu luto pela verdade e, antes de tudo, pela
liberdade inata aos homens, que deveriam desembaraçar-se das falsas
superstições e dos ritos mais vãos e levar uma vida não indigna da sua
qualidade de homens.” (pg.199)
Liberdade (imagem da net)
Rembrandt O Filósofo em Meditação, 1632
“Eu luto pela verdade e, antes de
tudo, pela liberdade inata aos homens."
Amesterdão era considerada uma cidade livre. Descartes disse da Holanda: “Haverá país onde se logre mais liberdade?”
Amesterdão era considerada uma cidade livre. Descartes disse da Holanda: “Haverá país onde se logre mais liberdade?”
No
entanto, é em Amesterdão, nessa cidade "livre", que Uriel da Costa - e, anos mais tarde,-Espinosa,
acusados os dois de ‘ideias racionalistas sobre Deus’, foram banidos, amaldiçoados e separados da comunidade, numa maldição,
dita com termos terríveis.
“Maldito
él en su entrar. Maldito él en su salir. Maldito él en la ciudad. Maldito él en
el campo (…).” Não
eram os rabinos que agiam directamente nas excomunhões,
eram os administradores laicos das Congregações.
Afastado
da sua comunidade, Uriel da Costa “arrepende-se”. Está velho e cansado. Mas Uriel não podia submeter-se a nenhuma religião, ele era fundamentalmente livre.
“Ele tudo permitia, tudo amava,
porque o esperava o grande ventre da beatitude, onde tudo volta a ser água e
densa combinação de génio e perdão (…). Livre, sem sentimentos, lágrimas,
prazeres, sem alma.”
Depressa,
volta a teimar na sua liberdade. Revolta-se. Condenado e humilhado,
agora na Sinagoga, pensa:
Anjo de El Greco, Enterro do Conde de Orgaz
“Consumara a obediência e via que tudo estava
ali, tudo o que se aprende na terra e ele sabia antes de ter chegado ali.”
Quando
o irmão o vai visitar, depois, em casa, encontra-o agitado mas não sofredor.
“A inteligência conhece-se no inteligível”,
disse-lhe Uriel. E, segundo Agustina, ele teria pensado: “É possível invocar a Deus de maneira insincera.”
“Haverá outra?” - pergunta Agustina.
“Haverá outra?” - pergunta Agustina.
No seu quarto, as dúvidas “eram muito inferiores ao desejo de situar o homem na sua verdadeira dignidade.
A sua ambição intelectual estava centrada na explicação do que é justo e
injusto (…).”
Poucos dias depois, Uriel da Costa suicida-se com um tiro na cabeça.
Ele,
o “bicho da terra tão pequeno”,
estava cansado das perseguições dos homens e da indiferença dos deuses.
Marc Chagall, O judeu
“O judeu
tinha de ser uma tragédia privilegiada, a da dispersão como criação.” (pg. 306)
Uriel
talvez estivesse tranquilo “porque o
esperava o grande ventre da beatitude, onde tudo volta a ser água e densa
combinação de génio e perdão”.
Talvez como neste quadro de Salomon Konnick, "Filósofo a pensar", meditasse quanto tudo era inútil.
Talvez como neste quadro de Salomon Konnick, "Filósofo a pensar", meditasse quanto tudo era inútil.
O
livro termina com a descrição da morte do filósofo, encontrado por Ancilla, a criada, que ouve o tiro e vem a correr. “Chegou
a tempo de o amparar no regaço, sem surpresa nem medo”. Ela,
que o amparara sempre, sente-se aliviada quase - pelo seu sofrimento que conhecia bem. Olhou e pareceu-lhe ver um sorriso de ironia nos seus lábios dele.
“Recolheu o último olhar de Uriel, uma luz que foi abrigar-se na boca, como um beijo, e lá ficou morando na forma dum sorriso leve, de ironia.”
“Recolheu o último olhar de Uriel, uma luz que foi abrigar-se na boca, como um beijo, e lá ficou morando na forma dum sorriso leve, de ironia.”
E Ancilla pensou: “Era o que ele tanto queria”.
Livre. Enfim.
E penso na frase que acima referi de Agustina sobre Uriel - e não estaria ela a pensar em si própria? "Livre, sem sentimentos, lágrimas, prazeres, sem alma."
“Sim era um riso de ironia”, conclui Agustina.
E penso na frase que acima referi de Agustina sobre Uriel - e não estaria ela a pensar em si própria? "Livre, sem sentimentos, lágrimas, prazeres, sem alma."
“Sim era um riso de ironia”, conclui Agustina.
(1) Saduceus: seita
judaica que não acreditava na imortalidade da alma.
(2) Moises Maimónides nasceu
em Córdoba, em 30 de Março de 1135 ou 37/38- e morre no Cairo, Egipto, em 13 de Dezembro de 1204. Foi enterrado em
Tiberíades, Israel. Filósofo, religiosos, codificador rabínico e médico. Viveu em El-Andaluz até ter de fugir para Fez e daí para o Egipto.
3) Fátima Martinho é professora na Universidade do Porto .
http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/3020.pdf
3) Fátima Martinho é professora na Universidade do Porto .
http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/3020.pdf
Links sobre
Uriel da Costa e o livros de Agustina Bessa-Luís:
Interessante leitura.
ResponderEliminarBeijinhos e um bom fim-de-semana:)
pelo prazer de ler...
ResponderEliminarsempre estimulantes as suas escolhas
Brava Maria! Que belo trabalho, envolvente e escolha inteligente.
ResponderEliminarMuito obrigado pelos instantes, pela qualidade e, igualmente, pelo aprendizado. Muito obrigado pela consciência com que partilhas conosco obras incríveis, personalidades interessantes.
Deixo o meu beijinho carinhoso de gratidão.