O livro de António Falcão, “MORRI”, consta de mais de 60 textos. Saiu em Macau, durante as 'Comemorações dos 150 anos de Camilo Pessanha', em Setembro passado.
Escrito entre 2004 e 2017, muitos dos textos recolhidos foram publicados nos anos de Macau, onde viveu cerca de 17 anos. Crónicas, artigos, evocações, figuras, momentos salvos ao Tempo.
Escrito entre 2004 e 2017, muitos dos textos recolhidos foram publicados nos anos de Macau, onde viveu cerca de 17 anos. Crónicas, artigos, evocações, figuras, momentos salvos ao Tempo.
Sente-se
uma voz verdadeira, de alguém que procura um sentido para a vida enquanto vive. Mas…e se morrermos várias vezes?
“Tem tudo a ver com o tempo - diz numa
entrevista ao jornal no jornal "Hoje Macau". Se existir um deus, é o
tempo. É a única omnipresença que existe no mundo e da qual fazemos parte.”
(1)
E continua:
E continua:
“’Morri’ foi o título que me apareceu. Comecei
a escrever para o 'Hoje Macau' (em 2004), numa altura da minha vida em que tinha
uma necessidade da escrita para que pudesse continuar a viver ou a ficar perto
do chão. Escrevia com o nome de Ring Joid. Acabei por inventar essa personagem.
Há sempre duas coisas a viver em mim. É como se andasse com uma companhia. Um puxa para o desvio, para ir por outros caminhos mais longos e mais difíceis. Depois há as histórias ao longo do livro que têm o carácter de morte.»
Há sempre duas coisas a viver em mim. É como se andasse com uma companhia. Um puxa para o desvio, para ir por outros caminhos mais longos e mais difíceis. Depois há as histórias ao longo do livro que têm o carácter de morte.»
Morre-se
muitas vezes. Quando tudo morre e
desaparecem os nossos momentos de uma vida vivida que, sabemos, não voltam mais - isso é
como se morrêssemos. Pode-se viver outra vez?
Quantas
vezes morri? E eu imagino, por mim: "quando
morrer como será? Para trás fica tudo o que vivi e me fez bater o
coração."
Porque “MORRI” é também uma história do coração. De quem que viveu com o coração.
E com a imaginação de alguém que sonhou que viu a vida toda diante dele um dia.
Porque “MORRI” é também uma história do coração. De quem que viveu com o coração.
E com a imaginação de alguém que sonhou que viu a vida toda diante dele um dia.
“Durante uma infinidade de tempo permanecemos
estáticos. É uma transparência com uma imagem que se acende e apaga, que começa
a baloiçar até chegar às traseiras da nossa retina para nunca mais de lá sair.
Uma violência para a percepção humana (...)" ( pg. 9)
Como uma máquina fotográfica do tempo? Película não impressa que pode ter
várias cores diversas. Ou não ter. Ser apenas a branco e preto. O autor interessou-se muito cedo pela fotografia, fotografando e revelando e trabalhando as fotografias.
António Falcão, em Macau
Morri
já? E o coração começa a bater de novo e a recordar (recordar, etimologicamente, é “trazer
ao coração”). Ou, como no filme “Amarcord”,
de Fellini, recordar com amargura e melancolia. Como num sonho. Real. Sempre.
De novo. O coração bate sempre.
“Amarcord” de Fellini e o barco na noite
Quando
se vive pelo coração, há pedaços que ficam por aqui por ali, farrapos de
pessoas, coisas e pessoas, momentos.
“Ode
a tudo” é um texto belíssimo. Uma doce recordação amarga. Um pretexto para
trazer ao coração histórias vividas na infância, misturadas com uma espécie de
sonho, sob um luar verdadeiro contemplado, num telhado, durante uma noite inteira.
Há locais onde tudo é possível porque a criança tem tudo à frente. A vida passa-lhe diante dos olhos. "A Lua o dia todo a fazer-nos ver de outro modo". Abstracção num mundo irreal tão forte. Um teatro em que as luzes se apagaram.
Há locais onde tudo é possível porque a criança tem tudo à frente. A vida passa-lhe diante dos olhos. "A Lua o dia todo a fazer-nos ver de outro modo". Abstracção num mundo irreal tão forte. Um teatro em que as luzes se apagaram.
“Quando saímos nunca mais fomos os mesmos
(pg.68). A cidade nunca mais foi a mesma. Amainou congelada naquele Verão
quente. Lembras-te das groselhas? Já não existem. As borboletas? Raramente lá
vão e são todas da mesma cor. Não há cães nem gatos, nem outros animais.
Apenas erva a crescer em desatino. A deixar-se daninha.”
O
tempo perdido, em que tudo era uma aventura, mesmo quando acabava mal. “Cores
proibidas” é um pequeno texto cheio de força, lembrança duma amizade. Que o vai conduzir a Macau.
fotografia de António Falcão
“Tudo o que dissemos foi feito. Tudo o que
afirmámos foi verdadeiro. Não foi preciso sangue nem pacto. Foi simples. Toda a
verdade foi termos vindo. Decididos ao que quer que fosse. À aventura dos
descobrimentos, o tesouro escondido, o barco dos piratas. O dragão cintilante
ou qualquer coisa do género. Foi um tufão que nos deu e ninguém acreditou!"
“Apesar do companheiro de
aventura ter ido, a verdade é que cá vou ficando. Para sempre? Não, só um pouco
mais."
(pg.20)
Macau. Como vim parar a esta terra? O imediato dessa decisão no limiar dum momento que arrastou toda uma vida para um destino ignorado. E recorda a decisão: "Noite escura. A iluminar-se. De repente. Na figura duma cor proibida."
O maior amigo, um encontro uma noite, fotografias a branco e preto, numa caixa cheia de mofo. Um rio, uma baía. Pessoas. E lá fora um trovão que os acorda dum semi-desinteresse. Sem aviso, um relâmpago. "A noite continuou. (...) E, num ápice a vontade de mudar de vida. De deitar tudo ao ar (...). Uma implosão da alma. (...)Era a vidinha que me segurava e que eu queria cuspir." (pg. 19)
E "cuspiu" a vidinha, fugindo. "Uma fuga. Para a frente."
Macau.
E a sensação de estar a sonhar: "cheiros, sabores, o fuso. Acordar nessa fantasia e viver nela, sem escape.(...) Não o via claramente, é certo (…) mas era isso. Um sonhar acordado, cheio de coisas vividas ainda por viver.”
Macau. Como vim parar a esta terra? O imediato dessa decisão no limiar dum momento que arrastou toda uma vida para um destino ignorado. E recorda a decisão: "Noite escura. A iluminar-se. De repente. Na figura duma cor proibida."
O maior amigo, um encontro uma noite, fotografias a branco e preto, numa caixa cheia de mofo. Um rio, uma baía. Pessoas. E lá fora um trovão que os acorda dum semi-desinteresse. Sem aviso, um relâmpago. "A noite continuou. (...) E, num ápice a vontade de mudar de vida. De deitar tudo ao ar (...). Uma implosão da alma. (...)Era a vidinha que me segurava e que eu queria cuspir." (pg. 19)
E "cuspiu" a vidinha, fugindo. "Uma fuga. Para a frente."
Macau.
E a sensação de estar a sonhar: "cheiros, sabores, o fuso. Acordar nessa fantasia e viver nela, sem escape.(...) Não o via claramente, é certo (…) mas era isso. Um sonhar acordado, cheio de coisas vividas ainda por viver.”
O
que é a realidade? “Onde estive?”, interroga-se o narrador, quando volta. Onde
estou? Por que estou aqui? Ou, mesmo, “quem
sou eu? Qual deles?” Porque lhe acontece sentir-se “outros”.
Passamos
pela vida. Em transe. E há coisas por viver. E há o sonho.
Escreve: “O transeunte é um fingidor, já se dizia, porque normalmente vai em transe.” (pg.16)
Escreve: “O transeunte é um fingidor, já se dizia, porque normalmente vai em transe.” (pg.16)
“E este que anda comigo quem é?” Porque
há o “outro” sempre, o que contraria as nossa decisões, nos
leva a fazer o que não queremos, o nosso “duplo” claro. O Outro, o Duplo, as Personagens que nos vivem cá dentro.
"Sempre e só eu. Sozinho e com todos cá dentro. Tantos outros cá dentro”, diz o autor: King Joid, LIME, PURPLE e Latvia?
E quem mais? Muitas vidas.
"Sempre e só eu. Sozinho e com todos cá dentro. Tantos outros cá dentro”, diz o autor: King Joid, LIME, PURPLE e Latvia?
E quem mais? Muitas vidas.
“King
Joid é um nome aleatório é o que ideal de mim que não consigo representar na
vida real. E por isso mantenho-o vivo artificialmente como um complemento de
uma vida com limites. Ele sou eu à solta”.
“Os dias correm sempre iguais, nesta terra, e
Latvia sente saudades de casa. Do tempo de pré-adolescente. Saudades de abrir
a mesa da cozinha onde jantava com a família. Os irmãos em redor. A mesa onde
ouvia o pai falar. O pai numa ponta junto às janelas. Um espaço onde mal
cabia;, o irmão mais velho, Josef, à direita, a mãe à esquerda, a bloquear a
porta da despensa. A mesa da cozinha que nas horas vagas também servia de mesa
de 'ping-pong'.
Que também servia para estudar. Para pôr o rádio e ouvir música. Em cassetes. O tampo rectangular arredondado nos cantos, onde as bolas tocavam de raspão e se estatelavam na porta do frigorífico. Havia sempre alguma coisa para ir buscar à despensa. E a porta abria-se uma polegada, o suficiente para Latvia enfiar o seu fino braço e retirar o que lhe pediam. O vinho para a viagem. Batatas, uma mão cheia de alhos, a paprika.” (pg. 192).
Que também servia para estudar. Para pôr o rádio e ouvir música. Em cassetes. O tampo rectangular arredondado nos cantos, onde as bolas tocavam de raspão e se estatelavam na porta do frigorífico. Havia sempre alguma coisa para ir buscar à despensa. E a porta abria-se uma polegada, o suficiente para Latvia enfiar o seu fino braço e retirar o que lhe pediam. O vinho para a viagem. Batatas, uma mão cheia de alhos, a paprika.” (pg. 192).
Ou
noutra vida, num mundo à ‘Blade Runner’: “Eu
sou o último dos Replicants (2), a peça restante de uma colecção numerada, os
Nexus 6. Somos virtualmente idênticos aos seres humanos (…) fomos concebidos
para durar pouco. Quatro anos no máximo. Roy foi o último a partir. É dele que
me prolongo. Perdido nesta imortalidade que me habita."
Roy que vivia nos intervalos entre os "fugazes momentos."
Roy é Roy Batty, um Replicant. Costumava dizer-lhe: “é o momento para fazer, só pode ser agora. Só podemos viver neste instante que passa. Aqui. Já. Sempre. E tentava explicar-me. Tentava demonstrar como o tempo, quando controlado, se torna vasto. Se torna ilimitado. (…) Não há, eu sei. Não há. É por saber que não há, sei que tudo o que existe é inexistente. E o que é inexistente é absoluto e preenche o universo inteiro.” Um mundo "de onde não há saída.” (pg.171)
Replicants? Andróides? Semi-humanos? Imortais? Um pouco de antecipação científica já que um dos géneros de ficção que leu era ficção científica.
Roy que vivia nos intervalos entre os "fugazes momentos."
Roy é Roy Batty, um Replicant. Costumava dizer-lhe: “é o momento para fazer, só pode ser agora. Só podemos viver neste instante que passa. Aqui. Já. Sempre. E tentava explicar-me. Tentava demonstrar como o tempo, quando controlado, se torna vasto. Se torna ilimitado. (…) Não há, eu sei. Não há. É por saber que não há, sei que tudo o que existe é inexistente. E o que é inexistente é absoluto e preenche o universo inteiro.” Um mundo "de onde não há saída.” (pg.171)
Replicants? Andróides? Semi-humanos? Imortais? Um pouco de antecipação científica já que um dos géneros de ficção que leu era ficção científica.
O
tempo de vida, o tal sopro em que são arrastadas as folhas mortas da vida, é
curto. Podem ser quatro anos apenas. Podem ser mais. É limitado, porém.
O Tempo “é o único deus
se deus existir”? Mas o Tempo é inexistente!
O único tempo que temos é o do absoluto que – esse- preenche o universo inteiro. O tempo roubado ao Tempo? ...
O único tempo que temos é o do absoluto que – esse- preenche o universo inteiro. O tempo roubado ao Tempo? ...
fotografia de A. F. "KleptoKronos"
É um
primeiro livro com muita coisa dentro. É uma procura, um mergulhar dentro de si
para trazer pedaços de coisas, farrapos do coração.
Que dizer mais? Leiam, vão gostar.
Que dizer mais? Leiam, vão gostar.
(1) Nota
auto-biográfica:
“António Falcão nasceu em Lisboa e viveu
17 anos em Macau. Foi fotógrafo. Teve uma livraria. Escreveu. Regressado a
Portugal, rejeitou a densidade urbana e ancorou numa vilória da costa
alentejana, por isso, também na Lua. Como sempre.”
(2) Replicants: https://en.wikipedia.org/wiki/Replicant
(3) "MORRI", edições COD, Setembro 2017, Macau
(2) Replicants: https://en.wikipedia.org/wiki/Replicant
Deve ser interessante:)
ResponderEliminarUm beijinho e desejo-lhe uma boa semana:)
O outro, o duplo, as personagens que nos vivem cá dentro. Mas "sempre e só nós", sem poder transmigrar...Sozinhos e com tantas coisas cá dentro! Uma vida com limites, um mundo sem saída...
ResponderEliminarA condição humana!
É por acaso parente teu?
Bom dia de chuva, que prazer!!
Ainda bem que te interessou. É um livro sério dum jovem que teve uma vida diferente. Também gostei do livro. Sim, é um dos meus sobrinhos...
EliminarGostei de saber. Nunca tinha ouvido falar no autor. Por aqui aprende-se muito.
ResponderEliminarObrigada.