Tenho
uma recordação especial que me prende a este romance de Henry de Montherlant : “ajudei”
o Manuel a traduzir livro “Le Chaos et la Nuit” (publicado em 1963), para a editora Ulisseia, em 1977.
Enquanto ele traduzia, e eu ia lendo, página a página, e descobrindo, cada dia, maior encanto naquelas páginas que eram para mim uma descoberta e a consciência de um certo desencanto e desilusão do escritor. De facto, suicida-se dez anos depois.
Enquanto ele traduzia, e eu ia lendo, página a página, e descobrindo, cada dia, maior encanto naquelas páginas que eram para mim uma descoberta e a consciência de um certo desencanto e desilusão do escritor. De facto, suicida-se dez anos depois.
Nestes dias tenho relido "O Caos e a Noite" e vou consultando “Montherlant par lui-même”, livrinho de uma colecção
fundamental para se “completar” o estudo de um autor. Este volume foi
organizado por Pierre Spriot, em 1959 (1).
Nascido em 1896, Montherlant publica o
primeiro livro em 1920, “La relève du
matin”, editado pelo próprio autor. Em 1924, deixa Paris. Viaja durante dez
anos pela África do Norte, Espanha, Itália.
A
Espanha atraiu-o de sobremaneira, desde sempre. Admira as qualidades do
espanhol, do “aficcionado”, do
orgulho, do sentido da honra, do amor à tauromaquia que é, no fundo, o
confronto do homem com a “besta”, o touro, o qual pode ser visto como a “vítima” - que
é arrastada (involuntariamente) para a "competição" que não deseja e de onde sairá vencedora a morte. Outra das suas paixões era o exercício físico, os jogos.
Onde se encenará, como num espectáculo, a sua tortura e morte.
Montherlant, 1928, esboço de R. Delaunay
Tourada, desenho de Montherlant
Em
Março de 1925, depois de ter vivido algum tempo na parte do Marrocos espanhol,
e muito tempo em Espanha, escreve:
desenho de Montherlant
“Aconteceu-me que ao fazer uns ”passes” de capa
a um jovem touro acabei por ser colhido por uma cornada que me cortou a
periferia de um pulmão. (…) Foi depois disso que senti as consequências tardias
de uma ferida de guerra (1) causada por
estilhaços de um obus - que me atingiram os rins. (…)”
Dessa experiência, de violência vivida, escreverá: “O meu carácter suavizara-se. Na guerra, nos estádios, eu vira a
violência de igual para igual: violência sã.
Na África do Norte, vi-a ser exercida pelo forte - o Europeu- contra o fraco, o indígena. Creio que isso me enojou para toda a vida da violência. E comecei a amar os vencidos.”
Na África do Norte, vi-a ser exercida pelo forte - o Europeu- contra o fraco, o indígena. Creio que isso me enojou para toda a vida da violência. E comecei a amar os vencidos.”
Montherlant (fotografia de Brassaï)
Tinha
77 anos. A morte fora cuidadosamente preparada, como tudo o que se lhe seguiria.
Tudo ficou escrito e os documentos necessários preparados. A Claude, seu
herdeiro, escreve:
“Mon cher Claude, je deviens
aveugle. Je me tue. Je te remercie de tout ce que tu as fait pour moi.(…)”
Creio
que é hoje um escritor pouco lembrado, em França. Desconhecido, quase, por
aqui…
Em
1952, num disco gravado, Montherlant, diz: “As
minhas personagens: não sou nenhuma delas, e sou cada uma delas.”
Nos “Carnets” (1935-1938) escreve: “Conheço muito bem os defeitos dos homens porque os estudo em mim próprio.” (p.204)
Henry de Montherlant, 1922, por J. Emile Blanche
Nos “Carnets” (1935-1938) escreve: “Conheço muito bem os defeitos dos homens porque os estudo em mim próprio.” (p.204)
Voltando
ao livro: nunca me esqueci da personagem principal, Don Celestino Marcilla, anarquista espanhol refugiado em França - figura
única no seu género - depois da Guerra Civil de Espanha, é internado num campo no
Sul da França. Tivera um papel importante na guerra, amava a sua pátria e muito lhe
custara deixá-la para trás, nas mãos do “Caudillo” Francisco Franco.
Paris, Boulevard Montmartre, Camille Pissarro
Do
campo de retenção “sobe” até Paris e vive o seu exílio, mais “mal” do que bem –
sem nunca se adaptar completamente.
Criada
por um francês, nunca “vi” personagem tão espanhola.
Mas a verdade é que Montherlant adorava a Espanha que visitava muitas vezes
e cujas qualidades de bravura dos espanhóis admirava. O orgulho, a coragem, o afrontar todos os perigos eram também características suas.
Desenho de Picasso, Tourada
Sempre
presentes, a luta entre o bem e o mal, a tourada e a tragédia : toureiro e
touro: a vítima. Há na vida de Montherlant um momento em que se afasta dos
vencedores prepotentes que tem o poder de morte e tortura sobre os que vencem
– o toureiro - e se aproxima dos
vencidos –o touro.
Homem e touro, Jean Cocteau
Vai
ser com a figura do touro, espicaçado pelas bandarilheiros, perseguidos pelos toureiros, e pelo “matador”
até à estocada final - que o herói Don
Celestino se vai identificar no momento da morte. Touro e toureiro confundem-se, ora vítimas, ora vencedores...
***
Vive
com a filha. A mulher morrera dando à luz Pascualita. A filha que estivera
quase sempre em colégios internos, com vinte anos, viera estar com ele.
E
toda a acção do romance se centra entre “vida e morte”, “caos e noite” – como
no título.
O “caos” é para ele a vida e a “noite” é o absurdo da morte. Nada de especialmente sério: mas há a tragédia!
O “caos” é para ele a vida e a “noite” é o absurdo da morte. Nada de especialmente sério: mas há a tragédia!
A "noite" é tudo o que precede a vida - e o que virá depois dela, isto é: o ‘não-ser’.
A vida e tudo o que nela há de absurdo e indiferença (pior do que o ódio) é o "caos".
A
acção do livro situa-se no final da vida de Don
Celestino, quando, desiludido, velho, erra raivosamente por Paris à procura
de um sentido para essa raiva e insatisfação.
***
Tem
dois amigos: Ruiz e Pineda, refugiados espanhóis como ele, mas sente que não o
acompanham e sente-se desiludido.
De
repente, tudo lhe parece inútil. A começar pelos artigos revolucionários que
escrevia para uma revista - e que nunca lhe publicam; desconfia de todos, acha
que os amigos se converteram ao fascismo.
A própria filha lhe parece uma desconhecida, desinteressada dos artigos que lhe passa à máquina, apenas mecanicamente. Pensa: “uma franquista, se calhar”. Evita falar com ela.
A própria filha lhe parece uma desconhecida, desinteressada dos artigos que lhe passa à máquina, apenas mecanicamente. Pensa: “uma franquista, se calhar”. Evita falar com ela.
Sente-se
incompreendido. Ninguém o lê ou publica os seus artigos revolucionários, numa
tentativa de se despojar das crenças, ideais e ficar sozinho em frente da
própria morte.
Consegue
zangar-se com todos, provocando a ruptura por motivos absurdos. Como se a
velhice lhe tivesse caído em cima e nada lhe servisse se não a morte.
Depois de um almoço com Ruiz, em que este é duro com ele, seco, e o recrimina nem ele sabe o quê, acabando por lhe chamar “ideológico retardado”, levanta-se da mesa e nunca mais o procura.
Depois de um almoço com Ruiz, em que este é duro com ele, seco, e o recrimina nem ele sabe o quê, acabando por lhe chamar “ideológico retardado”, levanta-se da mesa e nunca mais o procura.
Como
vingança daquilo que considerou “a traição” de Ruiz, decide cortar relações com
Pineda.
Atitude paradoxal? Mas Don Celestino é dentro de si um paradoxo de ideais, ilusões e ideologias, descrenças e crenças. Como o seu criador o era, na sua riqueza e complexidade. Nas escolhas e no gosto refinado.
Don Celestino vai fechando portas, afastando-se dos lugares que amava, das pessoas a que estivera ligado…
Atitude paradoxal? Mas Don Celestino é dentro de si um paradoxo de ideais, ilusões e ideologias, descrenças e crenças. Como o seu criador o era, na sua riqueza e complexidade. Nas escolhas e no gosto refinado.
Don Celestino vai fechando portas, afastando-se dos lugares que amava, das pessoas a que estivera ligado…
A
ansiedade marca-o, envelhece a olhos vistos, não acredita em ninguém, sente-se
ameaçado por todos – que para ele são “franquistas”.
A
vida de refugiado começa a parecer-lhe “morna”, sem grandeza. E vem-lhe a
saudade da Espanha, das touradas – a memória dele, menino, a brincar às
touradas, nas ruas de Madrid. O boulevard
Saint-Martin e a vida do bairro tornam-se monótonos, repetitivos,
desinteressantes, apertados…
Tourada, Salvador Dali
O
desafio é o que resta, é o resultado do descontentamento e da insatisfação. A
impaciência do nada à sua volta. Não respeita os franceses, acha-os cobardes.
Deles diz: “só sabem dar uma estocada
para atacar a fruta!”
Boulevard Saint Martin
Na
raiva e no desprezo por tudo, volta ao hábito espanhol de outros tempos:
tourear os carros, com a gabardina a fazer de capa, no Boulevard Saint Martin. Desafiar o perigo? Um perigo relativo pois
só escolhe carros pequenos…
A
ansiedade marca-o, envelhece-o. “Vivo
sempre”, pensa ele: “na ânsia do
toureiro”. Outras vezes diz, em voz alta: “ Eu sou o touro.”
De
repente, surge, inesperado, um pretexto para voltar a Espanha: a herança da
irmã que morrera de repente.
O
“pessimismo espanhol” - que está na frase de Don Celestino “lo peor es
siempre certo” - vai levá-lo à viagem a Madrid, não por causa da herança –
mas para procurar a morte. Ele sabe algo trágico o espera. O regresso a Madrid
vai ser decisivo : a morte – ou a prisão.
Nas
noites de insónia em que imagina a viagem, pensa nela como uma viagem para a morte.
Como Montherlant escrevera no “Mestre de Santiago”- “Partamos para morrer, sentimento e amor. Partamos para morrer…”, pensa ele.
Como Montherlant escrevera no “Mestre de Santiago”- “Partamos para morrer, sentimento e amor. Partamos para morrer…”, pensa ele.
Aceita
o perigo que vier, seja ele qual for. Quer voltar para viver como vivera antes
em Espanha: lutando, “vivo”. O momento presente é a paragem total. Sente a necessidade da acção: de afrontar a sua
morte. Não há outra saída.
Marca
a viagem mas assegura-se que compra um bilhete para assistir a uma tourada de touros de morte.
Começa
a viver esse espectáculo como se a morte futura estivesse intimamente ligada à morte
que espera o touro, no final da tourada. A estocada final do matador que vai
enfiar-se no pescoço e o sangue jorrar até à morte.
O sacrifício do touro, a luta até ao fim, que iria assumir como a sua própria. É evidente o paralelo entre a morte do touro e a sua: dois lutadores destinados a serem abatidos. Sem qualquer esperança. Porque a morte é inexorável.
O sacrifício do touro, a luta até ao fim, que iria assumir como a sua própria. É evidente o paralelo entre a morte do touro e a sua: dois lutadores destinados a serem abatidos. Sem qualquer esperança. Porque a morte é inexorável.
“Parto
para morrer, como um homem da minha época”, pensa à noite, antes de adormecer.
O sono é pesado e cheio de pesadelos. Fala no sonho, grita, sente que o estão a
matar.
Pascualita
ouve-o gritar e sente-se gelada de medo. “Será
verdade o que o pai diz?” Durante o sono parece estar a fazer a sua defesa
num tribunal perante um acusador. Preocupa-se.
De manhã, pergunta-lhe: “Estás bem?” Ele responde, irónico: “Não. Sofro de insuficiência ideológica.” Ela não o entende, encolhe os ombros. Ele acrescenta: “Avanço passo a passo para um destino trágico".
De manhã, pergunta-lhe: “Estás bem?” Ele responde, irónico: “Não. Sofro de insuficiência ideológica.” Ela não o entende, encolhe os ombros. Ele acrescenta: “Avanço passo a passo para um destino trágico".
O
seu destino irá cumprir-se em Madrid? É um pressentimento? Para Don Celestino, um pressentimento é
sempre trágico…
***
(1)Poeta,
ensaísta, romancista, Henri de Montherlant recebe, em 1934, o Grand Prix de Littérature de l’Académie
Française pelo livro “Les
Célibataires”. Autor de vários romances entre os quais os do ciclo “Les Jeunes Filles”;
e as peças de teatro “Le Maître de Santiago”, “La reine morte” (1934, peça inspirada na figura de Inês de Castro, ou “La ville dont le prince est un enfant". Em 1969 é nomeado para a Académie Française.
e as peças de teatro “Le Maître de Santiago”, “La reine morte” (1934, peça inspirada na figura de Inês de Castro, ou “La ville dont le prince est un enfant". Em 1969 é nomeado para a Académie Française.
(2)
“Montherlant par lui-même”, Écrivains
de Toujours, Seuil, 1959
(3)
refere-se à I Guerra de 1914-1918. Montherlant é ferido pelos estilhaços de um
obus, em 1918.
Não conheço o escritor mas fiquei com enorme curiosidade em ler o livro depois do que escreveu, por outro lado recordo-me de ver este livro na feira do livro.
ResponderEliminarPS- Tomo a liberdade de lhe perguntar se o Dr. Manuel Poppe não tinha um programa sobre literatura, que era transmitido na RTP nos anos 70, na emissão da hora de almoço e faço esta pergunta, porque foi nesse mesmo programa que descobri Proust e mais tarde Romain Rolland.
Bom fim-de-semana e obrigado
Rui Lima
Vale muitíssimo a pena ler. Se o voltar a encontrar...compre-o!
ResponderEliminarSim, é o mesmo Manuel Poppe, meu marido...
O programa chamava-se "O Livro à procura do Leitor".Vivemos muitos anos fora, ele, diplomata, como conselheiro cultural, escreveu muito e continua a escrever...
Vou-lhe dizer, ele vai ficar contente por se lembrar do programa.
Obrigada, Rui Lima
Na época tinha começado o liceu e via o programa antes de sair e agradecia-lhe que lhe comunicasse que lhe devo a descoberta de Proust e por diversas vezes falo nisso aos amigos, quando se aborda a falta de programas como "O Livro à procura do Leitor" na nossa televisão. Foi no ano passado por insistência da Paula que terminei por comprar o "Jean Christophe" do Romain Rolland em Paris na Gibert Joseph, (já estávamos "carregados" de livros),que me encontro neste momento a ler.
EliminarOs meus sinceros agradecimentos ao Dr. Manuel Poppe, deste leitor:)
Agradeço a sua amável resposta e desejo a ambos um excelente fim-de-semana!
Rui Lima
Já comuniquei ao Manuel que, como imagina, ficou muito sensibilizado! Nem sempre há estes momentos de"reconhecimento" digamos assim e é reconfortante. Ele manda-lhe um grande abraço e agradece as suas palavras!
EliminarBom fim de semana. Vai adorar o Romain Rolland, grande nome também esquecido....
Muito obrigado.
EliminarUm bom domingo!
Excelente e motivadora apresentação do livro e do autor.
ResponderEliminarNão conhecia e a leitura foi marcante e aliciante.
Fico grata pelos bons momentos e pelo conhecimento.
Beijinhos, MJ.
~~~~
Obrigada, Majo, é um grande escritor sim. La Reine Morte é uma peça maravilhosa sobre a morte de Inês de Castro, com diálogos duma beleza enorme! Um beijo
ResponderEliminarQuerida Maria João,
ResponderEliminarCurioso falar nesta obra "O caos e a Noite" que está anunciada na página da Lumière.
Lembro-me que na altura que a descrevi, fiquei muito admirada pela tradução ser de Manuel Poppe, pois desconhecia que ele tinha traduzido...
Um beijinho.:))
Pois foi, "traduzimos" os dois alguns livritos...Não dei por o ver na Lumière!!! Leia porque é muito bom
EliminarPois eu já fui a correr pedir o livro à Cláudia e espero que ainda esteja disponível.
ResponderEliminarGostei muito de ler este post e ficar a conhecer um pouco do autor.
Beijinhos e um bom fim-de-semana:)