sexta-feira, 11 de maio de 2018

HENRY DE MONTHERLANT: RELENDO “O CAOS E A NOITE”


Tenho uma recordação especial que me prende a este romance de Henry de Montherlant : “ajudei” o Manuel a traduzir livro “Le Chaos et la Nuit” (publicado em 1963), para a editora Ulisseia, em 1977. 
Enquanto ele traduzia, e eu ia lendo, página a página, e descobrindo, cada dia, maior encanto naquelas páginas que eram para mim uma descoberta e a consciência de um certo desencanto e desilusão do escritor. De facto, suicida-se dez anos depois.
Nestes dias tenho relido "O Caos e a Noite" e vou consultando “Montherlant par lui-même”, livrinho de uma colecção fundamental para se “completar” o estudo de um autor. Este volume foi organizado por Pierre Spriot, em 1959 (1).
 Nascido em 1896, Montherlant publica o primeiro livro em 1920, “La relève du matin”, editado pelo próprio autor. Em 1924, deixa Paris. Viaja durante dez anos pela África do Norte, Espanha, Itália.
A Espanha atraiu-o de sobremaneira, desde sempre. Admira as qualidades do espanhol, do “aficcionado”, do orgulho, do sentido da honra, do amor à tauromaquia que é, no fundo, o confronto do homem com a “besta”, o touro, o qual pode ser visto como a “vítima” - que é arrastada (involuntariamente) para a "competição" que não deseja e de onde sairá vencedora a morte. Outra das suas paixões era o exercício físico, os jogos.
Montherlant, 1928, esboço de R. Delaunay
Tourada, desenho de Montherlant

Onde se encenará, como num espectáculo, a sua tortura e morte.
Em Março de 1925, depois de ter vivido algum tempo na parte do Marrocos espanhol, e muito tempo em Espanha, escreve:
desenho de Montherlant

“Aconteceu-me que ao fazer uns ”passes” de capa a um jovem touro acabei por ser colhido por uma cornada que me cortou a periferia de um pulmão. (…) Foi depois disso que senti as consequências tardias de uma ferida de guerra (1) causada por estilhaços de um obus - que me atingiram os rins. (…)”
Dessa experiência, de violência vivida, escreverá: “O meu carácter suavizara-se. Na guerra, nos estádios, eu vira a violência de igual para igual: violência sã. 
Na África do Norte, vi-a ser exercida pelo forte - o Europeu- contra o fraco, o indígena. Creio que isso me enojou para toda a vida da violência. E comecei a amar os vencidos.”
Montherlant (fotografia de Brassaï)

No dia 21 de Setembro de 1972, às quatro da tarde, Montherlant, sentado no seu 'maple' desenhado por David, disparou uma bala na garganta, depois de ter tomado um comprimido de cianeto, a França perdeu um dos seus maiores escritores.”
Tinha 77 anos. A morte fora cuidadosamente preparada, como tudo o que se lhe seguiria. Tudo ficou escrito e os documentos necessários preparados. A Claude, seu herdeiro, escreve:

“Mon cher Claude, je deviens aveugle. Je me tue. Je te remercie de tout ce que tu as fait pour moi.(…)”

Creio que é hoje um escritor pouco lembrado, em França. Desconhecido, quase, por aqui…
Em 1952, num disco gravado, Montherlant, diz: “As minhas personagens: não sou nenhuma delas, e sou cada uma delas.” 
Henry de Montherlant, 1922, por J. Emile Blanche 

Nos “Carnets” (1935-1938) escreve: “Conheço muito bem os defeitos dos homens porque os estudo em mim próprio.” (p.204)

Voltando ao livro: nunca me esqueci da personagem principal, Don Celestino Marcilla, anarquista espanhol refugiado em França - figura única no seu género - depois da Guerra Civil de Espanha, é internado num campo no Sul da França. Tivera um papel importante na guerra, amava a sua pátria e muito lhe custara deixá-la para trás, nas mãos do “Caudillo” Francisco Franco.
Paris, Boulevard Montmartre, Camille Pissarro

Do campo de retenção “sobe” até Paris e vive o seu exílio, mais “mal” do que bem – sem nunca se adaptar completamente.
Criada por um francês, nunca “vi” personagem tão espanhola. Mas a verdade é que Montherlant adorava a Espanha que visitava muitas vezes e cujas qualidades de bravura dos espanhóis admirava. O orgulho, a coragem, o afrontar todos os perigos  eram também características suas.
Desenho de Picasso, Tourada

Sempre presentes, a luta entre o bem e o mal, a tourada e a tragédia : toureiro e touro: a vítima. Há na vida de Montherlant um momento em que se afasta dos vencedores prepotentes que tem o poder de morte e tortura sobre  os que vencem  – o  toureiro - e se aproxima dos vencidos –o touro.
Homem e touro, Jean Cocteau

Vai ser com a figura do touro, espicaçado pelas bandarilheiros, perseguidos pelos toureiros, e pelo “matador” até à estocada final - que o herói Don Celestino se vai identificar no momento da morte. Touro e toureiro confundem-se, ora vítimas, ora vencedores...
***
Vive com a filha. A mulher morrera dando à luz Pascualita. A filha que estivera quase sempre em colégios internos, com vinte anos, viera estar com ele.
E toda a acção do romance se centra entre “vida e morte”, “caos e noite” – como no título. 
O “caos” é para ele a vida e a “noite” é o absurdo da morte. Nada de especialmente sério: mas há a tragédia!  
A "noite" é tudo o que precede a vida - e o que virá depois dela, isto é: o ‘não-ser’. A vida e tudo o que nela há de absurdo e indiferença (pior do que o ódio) é o "caos".
A acção do livro situa-se no final da vida de Don Celestino, quando, desiludido, velho, erra raivosamente por Paris à procura de um sentido para essa raiva e insatisfação.
***
Tem dois amigos: Ruiz e Pineda, refugiados espanhóis como ele, mas sente que não o acompanham e sente-se desiludido.
De repente, tudo lhe parece inútil. A começar pelos artigos revolucionários que escrevia para uma revista - e que nunca lhe publicam; desconfia de todos, acha que os amigos se converteram ao fascismo. 
A própria filha lhe parece uma desconhecida, desinteressada dos artigos que lhe passa à máquina, apenas mecanicamente. Pensa: “uma franquista, se calhar”. Evita falar com ela.
Sente-se incompreendido. Ninguém o lê ou publica os seus artigos revolucionários, numa tentativa de se despojar das crenças, ideais e ficar sozinho em frente da própria morte.
Consegue zangar-se com todos, provocando a ruptura por motivos absurdos. Como se a velhice lhe tivesse caído em cima e nada lhe servisse se não a morte. 
Depois de um almoço com Ruiz, em que este é duro com ele, seco, e o recrimina nem ele sabe o quê, acabando por lhe chamar “ideológico retardado”, levanta-se da mesa e nunca mais o procura.
Como vingança daquilo que considerou “a traição” de Ruiz, decide cortar relações com Pineda. 
Atitude paradoxal? Mas Don Celestino é dentro de si um paradoxo de ideais, ilusões e ideologias, descrenças e crenças. Como o seu criador o era, na sua riqueza e complexidade. Nas escolhas e no gosto refinado.
Don Celestino vai fechando portas, afastando-se dos lugares que amava, das pessoas a que estivera ligado…
A ansiedade marca-o, envelhece a olhos vistos, não acredita em ninguém, sente-se ameaçado por todos – que para ele são “franquistas”.
A vida de refugiado começa a parecer-lhe “morna”, sem grandeza. E vem-lhe a saudade da Espanha, das touradas – a memória dele, menino, a brincar às touradas, nas ruas de Madrid. O boulevard Saint-Martin e a vida do bairro tornam-se monótonos, repetitivos, desinteressantes, apertados…
Tourada, Salvador Dali

O desafio é o que resta, é o resultado do descontentamento e da insatisfação. A impaciência do nada à sua volta. Não respeita os franceses, acha-os cobardes. Deles diz: “só sabem dar uma estocada para atacar a fruta!”
Boulevard Saint Martin
Na raiva e no desprezo por tudo, volta ao hábito espanhol de outros tempos: tourear os carros, com a gabardina a fazer de capa, no Boulevard Saint Martin. Desafiar o perigo? Um perigo relativo pois só escolhe carros pequenos…
A ansiedade marca-o, envelhece-o. “Vivo sempre”, pensa ele: “na ânsia do toureiro”. Outras vezes diz, em voz alta: “ Eu sou o touro.”
De repente, surge, inesperado, um pretexto para voltar a Espanha: a herança da irmã que morrera de repente.
O “pessimismo espanhol” - que está na frase de Don Celestino “lo peor es siempre certo” - vai levá-lo à viagem a Madrid, não por causa da herança – mas para procurar a morte. Ele sabe algo trágico o espera. O regresso a Madrid vai ser decisivo : a morte – ou a prisão.
Nas noites de insónia em que imagina a viagem, pensa nela como uma viagem para a morte. 
Como Montherlant escrevera no “Mestre de Santiago”- “Partamos para morrer, sentimento e amor. Partamos para morrer…”, pensa ele.
Aceita o perigo que vier, seja ele qual for. Quer voltar para viver como vivera antes em Espanha: lutando, “vivo”. O momento presente é a paragem total. Sente a necessidade da acção: de afrontar a sua morte. Não há outra saída.
Marca a viagem mas assegura-se que compra um bilhete para assistir a uma tourada de touros de morte.
Começa a viver esse espectáculo como se a morte futura estivesse intimamente ligada à morte que espera o touro, no final da tourada. A estocada final do matador que vai enfiar-se no pescoço e o sangue jorrar até à morte. 
O sacrifício do touro, a luta até ao fim, que iria assumir como a sua própria. É evidente o paralelo entre a morte do touro e a sua: dois lutadores destinados a serem abatidos. Sem qualquer esperança. Porque a morte é inexorável.
 “Parto para morrer, como um homem da minha época”, pensa à noite, antes de adormecer. O sono é pesado e cheio de pesadelos. Fala no sonho, grita, sente que o estão a matar.
Pascualita ouve-o gritar e sente-se gelada de medo. “Será verdade o que o pai diz?” Durante o sono parece estar a fazer a sua defesa num tribunal perante um acusador. Preocupa-se. 

De manhã, pergunta-lhe: “Estás bem?” Ele responde, irónico: “Não. Sofro de insuficiência ideológica.” Ela não o entende, encolhe os ombros. Ele acrescenta: “Avanço passo a passo para um destino trágico".
O seu destino irá cumprir-se em Madrid? É um pressentimento? Para Don Celestino, um pressentimento é sempre trágico…

***
(1)Poeta, ensaísta, romancista, Henri de Montherlant recebe, em 1934, o Grand Prix de Littérature de l’Académie Française  pelo livro “Les Célibataires”. Autor de vários romances entre os quais os do ciclo “Les Jeunes Filles”;


 e as peças de teatro “Le Maître de Santiago”, “La reine morte” (1934, peça inspirada na figura de Inês de Castro, ou “La ville dont le prince est un enfant". Em 1969 é nomeado para a Académie  Française.
(2) “Montherlant par lui-même”, Écrivains de Toujours, Seuil, 1959
(3) refere-se à I Guerra de 1914-1918. Montherlant é ferido pelos estilhaços de um obus, em 1918.





10 comentários:

  1. Não conheço o escritor mas fiquei com enorme curiosidade em ler o livro depois do que escreveu, por outro lado recordo-me de ver este livro na feira do livro.
    PS- Tomo a liberdade de lhe perguntar se o Dr. Manuel Poppe não tinha um programa sobre literatura, que era transmitido na RTP nos anos 70, na emissão da hora de almoço e faço esta pergunta, porque foi nesse mesmo programa que descobri Proust e mais tarde Romain Rolland.
    Bom fim-de-semana e obrigado
    Rui Lima

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  2. Vale muitíssimo a pena ler. Se o voltar a encontrar...compre-o!
    Sim, é o mesmo Manuel Poppe, meu marido...
    O programa chamava-se "O Livro à procura do Leitor".Vivemos muitos anos fora, ele, diplomata, como conselheiro cultural, escreveu muito e continua a escrever...
    Vou-lhe dizer, ele vai ficar contente por se lembrar do programa.
    Obrigada, Rui Lima

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    1. Na época tinha começado o liceu e via o programa antes de sair e agradecia-lhe que lhe comunicasse que lhe devo a descoberta de Proust e por diversas vezes falo nisso aos amigos, quando se aborda a falta de programas como "O Livro à procura do Leitor" na nossa televisão. Foi no ano passado por insistência da Paula que terminei por comprar o "Jean Christophe" do Romain Rolland em Paris na Gibert Joseph, (já estávamos "carregados" de livros),que me encontro neste momento a ler.
      Os meus sinceros agradecimentos ao Dr. Manuel Poppe, deste leitor:)
      Agradeço a sua amável resposta e desejo a ambos um excelente fim-de-semana!
      Rui Lima

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    2. Já comuniquei ao Manuel que, como imagina, ficou muito sensibilizado! Nem sempre há estes momentos de"reconhecimento" digamos assim e é reconfortante. Ele manda-lhe um grande abraço e agradece as suas palavras!
      Bom fim de semana. Vai adorar o Romain Rolland, grande nome também esquecido....

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  3. Excelente e motivadora apresentação do livro e do autor.
    Não conhecia e a leitura foi marcante e aliciante.
    Fico grata pelos bons momentos e pelo conhecimento.
    Beijinhos, MJ.
    ~~~~

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  4. Obrigada, Majo, é um grande escritor sim. La Reine Morte é uma peça maravilhosa sobre a morte de Inês de Castro, com diálogos duma beleza enorme! Um beijo

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  5. Querida Maria João,
    Curioso falar nesta obra "O caos e a Noite" que está anunciada na página da Lumière.
    Lembro-me que na altura que a descrevi, fiquei muito admirada pela tradução ser de Manuel Poppe, pois desconhecia que ele tinha traduzido...
    Um beijinho.:))

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    1. Pois foi, "traduzimos" os dois alguns livritos...Não dei por o ver na Lumière!!! Leia porque é muito bom

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  6. Pois eu já fui a correr pedir o livro à Cláudia e espero que ainda esteja disponível.

    Gostei muito de ler este post e ficar a conhecer um pouco do autor.

    Beijinhos e um bom fim-de-semana:)

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