sexta-feira, 4 de junho de 2021

Chegada a São Tomé


Recordo bem a noite em que cheguei a São Tomé. Como esquecê-la?
A minha curiosidade durante a viagem era enorme. Não conhecia a chamada África negra e entusiasmava-me a descoberta que ia fazer. Ia entrar num continente desconhecido. De África conhecia o Magrebe marroquino, do lado de lá do Mediterrâneo, aqui ao lado da Europa.
São Tomé era outra coisa. África! Duas ilhas situadas quase sobre a linha do Equador, lera uma vez numa enciclopédia.
E o que era para mim o Equador? Estudara nos compêndios de Geografia que era "uma linha imaginária". 

Coisas que eu “imaginava”, pois, aventurosas. Tal como a constelação do Cruzeiro do Sul, a mais importante do hemisfério Sul. E quantas vezes a vi, quantas noites passou quase por cima de mim -explicou-me o senhor Semedo.

Era Outubro. Deixara para trás um Outono tranquilo e fresco mas, quando o avião aterrou em São Tomé, a porta deslizou para o lado de repente e a noite entrou. Tão quente, tão negra e um calor tão pesado. Respirei esse ar e o cheiro da terra molhada.

Desci as escadas e atravessei a pista com os outros passageiros e sem imaginar o que me esperava.
 
Era a estação das chuvas e, para mim, tudo era estranho: o calor húmido, o perfume das flores de magnólia, os hibiscos de cores violentas, a terra barrenta e gretada de onde parecia sair fumo.
Os cheiros eram intensos, enjoativos, misturados. Cheiro a flores? A frutas? A terra? A especiarias?

Ao aspirar os cheiros desconhecidos sentia ao mesmo tempo na boca um gosto de canela e de cacau - com certeza uma sinestesia na minha imaginação.

Era uma realidade diferente, nova e ao mesmo tempo familiar. Os livros de aventuras teriam ajudado a sentir essa forma de intimidade com aquele mundo?
Ia andando, a olhar para todos os lados, mas a noite era escura. Lá adiante ouvia-se um barulho de vozes, de chamamentos, de risos. Era a multidão daqueles que esperavam fora do aeroporto, acrescentada ao entusiasmo dos que chegavam agora de Lisboa, carregados de coisas que não havia em São Tomé.
 
Empurrando, esbracejando e procurando apanhar as bagagens e os pacotes meio desfeitos, que dois empregados iam amontoando lentamente numa carreta de madeira, os passageiros iam seguindo em frente. E eu com eles. Esse à vontade, essa alegria iria encontrá-la noutros lugares quando comecei a conhecer a cidade. 
Como, por exemplo, no mercadinho "Mundo já vê" que ficava perto da casa onde iríamos viver muitos anos e noutros lugares onde as pessoas se reuniam, falavam abertamente e comunicavam sem problemas com os que vinham de fora.
As malas desapareciam de repente sugadas por braços invisíveis. Nada me espantava e deixava-me levar. Sentia, porém, uma vaga irritação que não conseguia controlar.
 
Pensava : “Como é que isto é possível esta confusão e esta agitação?! 
Mais tarde, quando já vivia na minha casa da rua Damão, rodeada de um jardim maravilhoso cheio de perfumes diferentes dos que conhecia e cores vivas - que o nosso jardineiro, o senhor Semedo,  criara para nós,  tive a possibilidade de conhecer bem essa gente de São Tomé. 
Gente alegre, contemplativa, que andava levi-levi, mas que era agitada quando se tratava de alguma coisa que os entusiasmava ou desejavam, gente amiga e sempre disponível. Como foi a minha amiga Dáy que conheci com nove anos e deixei quando ela tinha feito os catorze. 
Amigas para sempre - ainda hoje, apesar de estarmos em continentes tão diferentes. Tem filhas lindas e escrevemo-nos pelo Facebook, claro.

Na sala da aero-gare havia dois guichets, um para passaportes e o outro para a inspecção sanitária. Todas as pessoas se acotovelavam para chegarem mais depressa, de braços esticados e a agitarem os passaportes e os livrinhos amarelos das vacinas.
 
Eu espreitava para todos os lados, curiosa, a querer ver, a observar bem o que era a terra onde ia viver cinco anos. Dei por mim a sair pela porta e a empurrar como os outros até chegar à rua.
 
Senti-me mal quando me vi fora. O calor ardia na pele mesmo àquela hora tardia da noite. Parecia-me de repente que não era capaz de respirar. Na noite cálida sentia-me sufocar.
 
Um táxi esperava-nos para nos conduzir ao bairro residencial, de construção recente, onde iríamos ficar até escolher uma casa para alugar. 
E essa casa que tanto amei era linda e branca com uma barra azul como as casas do meu Alentejo - com a sua cerca de madeira e tantas árvores de frutas estranhas. Nessa casa onde o Manuel e eu vivemos com o nosso cão Zac iam fazer-me companhia pessoas inesquecíveis, como a Dáy, o senhor Semedo, a Milita. E muitos outros.

O carro avançava na noite, balançando-se, procurando o caminho menos acidentado e eu virava-me para todos os lados: havia de tudo: praia, rios e pântanos, árvores e muitas flores.
E antes de chegarmos à cidade vi pela primeira vez, como um milagre, a baía de Ana Chaves na sua beleza invulgar. Era o lugar onde ia desembocar o rio Água Grande, majestoso entre as duas balaustradas brancas que o acompanhavam até ao mar.


Baía maravilhosa de cores que, naquela primeira noite da chegada, uma ponta de luar iluminava e desenhava arabescos nas cintilantes águas negras. 
 
Fiquei para sempre apaixonada pela baía. E infelizmente nunca consegui ter uma fotografia dela que a mostrasse tal como a vi.
Foram as primeiras imagens da terra onde iria encontrar pessoas com quem tanto aprendi e lugares que tanto me ensinaram e tantas saudades deixaram. E onde vivi cinco anos muito importantes da minha vida.
 
São Tomé, ilha perdida, quase na linha do Equador...


 

6 comentários:

  1. Lindo!
    Leio-a sempre com tanto gosto. Sempre encontro algo novo.

    Beijinhos e bom fim-de-semana:))

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  2. Nota-se que tens um curriculum interessante, muito enriquecedor e variado.
    Feliz dia, aqui calor. Bjnhssss

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  3. Muito obrigada, amigas, obrigada Margarida Elias também...

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