quarta-feira, 4 de maio de 2022

São Tomé e a Rua Morta

 
O Água Grande, pintura de Armindo Lopes

Quando chegámos a São Tomé fomos viver numa casa de “passagem”, no Bairro dos Cooperantes. Era uma vivenda bonita, com um amplo espaço em redor, dois andares e uma varanda que dava para a rua que se chamava Rua Morta.

Foi nessa varanda do rés-do-chão que eu ia vendo desfilar como num filme  as gentes de São Tomé. Era uma rua tranquila que ficava numa das saídas da cidade. Subíamos pela estrada da Chácara  que ia ter à Roça Monte Café e, depois, até ao alto onde ficava a velha Pousada agora vazia. 

Recordo que tempos mais tarde numa viagem na ilha passávamos mesmo ao lado da casa onde nascera o escritor do grupo do Orfeu, José Almada Negreiros.

Meses mais tarde mudámos para a vivenda da Rua Damão  - que tinha sido toda restaurada e que eu quisera pintada de branco com uma risca azul junto ao chão como nas casas alentejanas. Nessa altura tínhamos um jeep fantástico, um UMM Alter (1) de cor bordeaux.


Um dia disseram-me  que a risca azul tinha a função de afastar os mosquitos que não gostavam desse azul. Também contaram que era para tirar o mau-olhado.

Continuando a contar, as primeiras saídas em São Tomé da casa da Rua Morta foram uma surpresa. 

Era uma ilha perdida e bela, longe de tudo, no meio do Atlântico. Não sei que ideia teria de África mas ouvira falar de São Tomé como de um sítio paradisíaco, com uma baía linda onde os barcos ancoravam ao longe e que se chamava Baía Ana Chaves.

Os vizinhos passavam em frente da minha varanda com grande calma, calma a que me habituei. Em São Tomé ninguém tinha pressa. Passavam devagar, paravam para conversar sempre com modos muito amáveis.

Quando alguém perguntava como ia a vida, respondiam levi-levi, moli-moli. “Levi-levi” ou “moli-moli” eram expressões que nos revelavam o estado de espírito do momento.

Passavam na minha rua transportando à cabeça tudo o que se pode imaginar: cachos de bananas, latas, garrafões de água ou de gasóleo, lenha cortada, um lápis e um caderno ou apenas uma régua.

As meninas que iam para o liceu, levavam o pacote de livros em cima da cabeça, de pescoço bem esticado, e eram elegantes. Falavam, gesticulavam, e nunca se zangavam. Via-as rirem-se muito e davam-se pequenos encontrões de cumplicidade.

Os rapazes poisavam os livros no chão e começavam logo a deitar pedras aos caroceiros – chamados também ‘figueira da Índia’.

Na Rua Morta, em frente da casa, havia um enorme caroceiro. como Explicaram-me um dia esses miúdos que dá um fruto com uma “amêndoa” saborosa, o caroço.

A finalidade da brincadeira era essa: deitar abaixo o fruto e tirar a amêndoa para comer. Por vezes feriam-se uns aos outros pois as pedras caíam da árvore e faziam ricochete nos ramos, atingindo os desprevenidos.

 

Ao fundo minha rua passava o rio, o Água Grande. Corria, muito fundo, entre duas balaustradas brancas, tranquilo até à praia. No seu leito crescia a planta da 'matabala' que era no fim de contas o substituto da batata em São Tomé - cozida ou frita como acompanhamento ou nas sopas. Na casa nova da Rua Damão quantas vezes a minha cozinheira Milly nos preparou sopas com matabala.

  

o jardim da casa da Rua Damão

Claro que nesse momento ainda não sabia nada. Tinha acabado de chegar. Ficava apoiada ao corrimão da ponte a olhar para tudo em redor. Ali era o centro da cidade e onde havia mais movimento, o mercado, algumas lojas. Eu contemplava o leito do rio Grande e via lá em baixo a rama frondosa da 'matabala', aberta em leque como uma palmeira.

Mais tarde, na estação das chuvas, vi o Água Grande galgar tudo, rugir em torrente volumosa, levando tudo à sua frente.

   

a ponte e a balaustrada do Água Grande

 Nessa altura, o rio saía do seu leito e inundava as casas frágeis, cabanas de madeira com tectos ondulados, de latão, corria desde lá de cima do óbó, dos altos da floresta e desabava em vagas lamacentas sobre a cidade.

Mas eu tinha acabado de chegar e não sabia nada destas coisas tão diversas do que havia no meu país ou mesmo na Europa. 

São Tomé estava à minha espera para eu o descobrir, devagarinho. Havia gente que eu ia encontrar e nunca mais esquecer: a Daý, o Sr. Semedo, o Nini, o Miki, a Milly, a Nina e a Tina.

Gente que ia mudar a minha vida e acrescentar o meu conhecimento da vida. Ter experiências e aprender como se vive noutros mundos.

1 comentário:

  1. Lugares onde se vive assim e onde "ninguém tem pressa", hoje em dia são um autêntico tesouro. Tiveste uma vida cheia de contrastes e experiências enriquecedoras.
    Que hoje seja um dia como mereces, celebrando com paz e alegria tudo de bom que leves na mochila!

    ResponderEliminar