


Veio de Alegrete para a cidade “servir”, como se dizia nesses tempos, com pouco mais de dezasseis anos. E a Adélia veio uns tempos depois, para casa de uma amiga da minha mãe que morava também na velha rua dos Canastreiros.
Conta-me hoje a Adélia, nas nossas conversas, enquanto tomamos um chá. O chá é sempre "Earl Grey", ela só gosta de "Earl Grey"! Um dia dei-lhe "Lady Grey" e ela disse logo:
- Foi o dia mais triste da minha vida!
Durante os anos em que o meu pai foi médico em Alegrete, a família delas, a família Solano, conhecera-o bem.
Dizia-me outras vezes, mudando de conversa:
-Os seus pais, em Alegrete, viviam lá para a Rua Nova, mesmo no fundo. A menina conhece?
- Nem vale a pena..., acrescenta, céptica. Já lá não há ninguém.
- Só velhos!
Sem eu lhe dizer nada, retorquia:
- Sim, sim! Em Alegrete o que lá há são só velhos! Morreu toda a gente dos meus tempos... Até faz pena.
Todos os anos em Agosto ela volta para a festa da Senhora da Alegria. Custa-lhe ver a vila sem gente: os novos partiram para Portalegre, ou para muito mais longe.

“Muitos vivem nesta zona, por detrás da Alapraia, em S. Domingos de Rana”, diz-me ela.
- Os que ficaram por lá, são velhos...
- Solidão é doença... Não fui eu que inventei, não, menina (eu sou ainda “menina” para ela), foi o doutor lá do Centro de Saúde. Bom médico, mas muito rabugento. Comigo não, porque eu não o aturo, mas dá cada berro a mandar calar as velhas que estão na sala de espera “sempre a cacarejar”, diz ele...
Eu rio-me sozinha, sem ela ver, a imaginar a cena, e vou perguntando, fingindo que não percebi:
-Ai sim? A cacarejar?
- Sim, sim! Falam e não dizem nada. Velhas...
A Adélia é uma pessoa inteligente, capaz de entender as subtilezas, e argumentar até sobre política. A ideia de envelhecer sozinha entristece-a. Ser velho, para ela, é ser afastado, diminuído, metido em lares e fala da velhice quase com desprendimento, como se não quisesse fazer parte dessa gente.

Hesitava e dizia:
- Estão todos velhos, o que vou para lá fazer? Ou, então, morreram...
Outras vezes lembra-se de personagens de Alegrete.
- A menina lembra-se da Valéria lá de Alegrete?
Lembrava-me, sim, de ouvir a Florinda contar-nos histórias cómicas sobre essa Valéria que sempre pensámos –eu e as minhas irmãs- que não existisse e fosse apenas mais uma história da Florinda, para nos entreter e fazer estar quietas.
Essa Valéria fazia muitos disparates, é só do que me lembrava.
- Não, não me lembro dela...
- Bem, a Valéria tinha uma casa que era um disfarce de uma casa! A cair de velha, lá para os lados da Caganita, no Castelo...
Naquela zona do Alentejo, usava-se muito a palavra “disfarce”, “disfarçudo”, no sentido de cómico e divertido, fora do vulgar...
A Adélia sorri, irónica:
- Era ela e a Bezerra. As duas parvas. Nunca ouviu falar da morte da Bezerra?
- Claro que ouvi, mas pensei que era invenção...
Ainda não tinha acabado e ela, sem me ouvir, continuava, a rir-se, fungando, como é seu costume:
- Lá em Alegrete diziam: “é mais velha que a Bezerra!” Falava-se da morte da Bezerra que vivia lá na vila e tinha morrido muito velha... E na sua terra também, em Portalegre, também se falava dela.

rua de Portalegre
E acrescentava, um pouco espantada:
- Nas telenovelas brasileiras também aparece a Bezerra. A menina não ouviu? E falam na Valéria...
Ficou a pensar e concluiu, duvidosa:
- Como é que podem conhecer a Bezerra, lá no Brasil?!
Voltava às vezes a recordar-se do meu pai.
- O seu paizinho e a sua mãe eram muito amigos da minha mana Maria. Era a minha cunhada... Também já morreu.
E continuava:
- Sim, Sim! Porque o seu pai era amigo dos pobres, não julgue lá...
E, com um ar suavizado:
- Andava por lá de burro, pelas serranias, o que é que julga? E dava remédios e nunca levava dinheiro aos pobres.
Eu ouvia-a comovida. lembrava-me de ter ouvido contar essas histórias.
-Não aceitava, dizia que eles precisavam mais do que ele. E a sua mãe fazia vestidos para as cachopinhas. Os pobres, coitados, ofereciam-lhe um franguinho, umas couves do quintal, uns ovos, flores para a senhora... Era o que tinham. Havia muita fome nesses tempos...
E acrescentava, com aquele desgosto que a obcecava:
- Por isso é que eu vim servir para Portalegre... Sim, sim, esse foi o dia mais triste da minha vida...
Dizem os entendidos que o mêdo à solidâo já está a ser um dos maiores handicap do século XXI.Precisamente li há pouco uma entrevista à escritora de novela negra Asa Larson,em que afirma:"Apesar de que tenho uma familia e filhos,muitas vezes sinto-me à margem da felicidade que se supôe que me está destinada.Posso sentir-me uma solitaria mesmo estando acompanhada".
ResponderEliminarCada pessoa é um mundo!Que coma muitas amêndoas,beijinhos,maría
Sempre estas ternuras feitas letras, estes textos de sentires, me inundam o olhar. Há tanta verdade de doer...
ResponderEliminarUm beijinho muito grande!!
Boa Páscoa
As irmãs Solana foram das pessoas mais extraordinárias que conheci na vida!
ResponderEliminarManuel Poppe
É verdade: As irmãs Solano! Adélia, Florinda e Isaura, todas diferentes, todas inteligentes, com um coração enorme. Com vidas não muito felizes... Resta a Adélia, grande amiga!
ResponderEliminaralegrete linda terra
EliminarEste comentário foi removido por um gestor do blogue.
ResponderEliminaralegrete linda terra
ResponderEliminar