A
menina da papelaria suicidou-se. É o que dizem. A verdade ninguém a sabe ao certo. É irremediável, no entanto.
Desapareceu há poucas semanas e foram encontrá-la, três ou quatro dias
depois, afogada, na Boca do Inferno.
De vez em quando penso nela e lembro-me do seu rosto muito branco, os cabelos frisados e um pouco aloirados, dos olhos azulados. Como num sonho, já não recordo bem as feições. Era educada e tinha um bonito sorriso. Para mim, pelo menos. E parecia-me feliz.
céu de trovoada, no Guincho (MJF)
De vez em quando penso nela e lembro-me do seu rosto muito branco, os cabelos frisados e um pouco aloirados, dos olhos azulados. Como num sonho, já não recordo bem as feições. Era educada e tinha um bonito sorriso. Para mim, pelo menos. E parecia-me feliz.
o céu e mar, no Guincho (MJF)
No
dia do enterro, sem o saber, fui comprar envelopes à papelaria. Soubera que uma
delas tinha morrido e não sabia qual e, com uma certa forma de morbidez, quis saber qual “faltava”.
Quando perguntei por ela, disse-me uma das colegas: “Foi-se embora…” E a outra acrescentou, de olhos baixos: “Faleceu. O enterro foi esta manhã”.
Quando perguntei por ela, disse-me uma das colegas: “Foi-se embora…” E a outra acrescentou, de olhos baixos: “Faleceu. O enterro foi esta manhã”.
Calaram-se, com o pudor natural com que se fala da morte, em certas idades
da juventude. Só os velhos têm algum prazer em falar disso, da morte dos
outros, porque, aliviados, pensam que eles “ainda cá estão” e (felizmente) não era a sua vez…
Abel Salazar, Vendedora, nas Galleries
As
meninas da papelaria evitavam olhar para mim. Tinham os olhos fixos nos envelopes e na caixa registadora e havia uma sombra neles.
Não me quiseram contar o que não tinham de me contar. E que outras pessoas me contaram: a infelicidade no casamento, os problemas da vida, a falta de dinheiro que leva as pessoas a desentenderem-se.
Seria, não seria? Quem sabe?
Não me quiseram contar o que não tinham de me contar. E que outras pessoas me contaram: a infelicidade no casamento, os problemas da vida, a falta de dinheiro que leva as pessoas a desentenderem-se.
Seria, não seria? Quem sabe?
Millais, Outono e folhas mortas
céu com nuvens, em Portalegre (MAF)
Senti
uma revolta grande dentro de mim. Claro que a "vida passa como um sopro". Lá diz o Salmo 144…
Mas
a vida das pessoas deve encher-se de coisas boas enquanto dura: de esperança, de confiança, deve
haver um tempo para tudo, deve existir uma justiça neste mundo. A juventude deve viver!
George-Frederic Watts, Retrato de Terry
Por que foi que isto aconteceu? E vem-me à cabeça uma bela canção de Serge Reggiani, dolorosa e triste, de um outro suicídio. Outra afogada, porque mal-amada...
"Quand ils t'ont trouvée
Si blanche et dorée
Blonde blonde blonde
Maumariée, oh maumariée
Quand ils t'ont trouvée noyée
Dans le courant
Entre tes draps de mousse
Dans le courant
Les yeux fermés si douce
Comme un jardin de fleurs
Comme un jardin
Saccagé par l'orage
Comme un jardin
Comme une fleur sauvage
Tu fuyais ton malheur
Entre deux eaux
Entre deux eaux..."
Inconsolável, fiquei a pensar nela.
É muito triste uma pessoa tão jovem escolher esse caminho. Teria que haver outra escolha, outro caminho...
ResponderEliminarA vida passa num sopro...
Um beijinho grande :)
Um belo trabalho a tratar assunto tão delicado. A manifestação do seu estado de alma com essa desgraça revela uma virtude que vai rareando: a compaixão.
ResponderEliminarQue força implacável empurra uma jovem para a sua própria destruição?
Na minha juventude tive um colega que escolheu "libertar-se" e fiquei na altura muito impressionado; ainda hoje quando me recordo dele pergunto-me: porquê?
Evocou o Reggiani muito bem para aqui.
O assunto mais difícil da vida, a morte.
ResponderEliminarGostei do texto. Triste a partida assim precipitada. Muita gente a precipitar-se assim. Cada vez mais.