sábado, 8 de outubro de 2016

As injustiças não morrem, mas falemos delas! É importante sempre...

Este 'post' é dedicado à minha amiga Vittoria Ferrero que falou desta tristeza dos ‘abandonados’ da sorte, em terras Guaranis! A imagem desta mulher impressionou-me e consegui saber mais coisas...

Hoje quero falar dum filme que não vi mas vou tentar encomendar - e ver. Chama-se "Birdwatchers" ou “A morte dos homens vermelhos” (*) e é foi realizado por Marco Bechis, realizador de origem italo-chilena (1955). 
Fala dos índios Guarani Kaiowa que foram obrigados a deixar as suas terras, a abandonar o modo de vida e que se sentem morrer. E se suicidam. 
Na floresta do Amazonas, onde todo o habitat foi transformado e onde os Guaranis foram expropriadas das terras, pelos grandes construtores ou cultivadores de cana de açúcar e soja, que as cultivam em extensões enormes.
E depois há o 'fenómeno' do turismo exótico: o espectáculo dos que vão fingir 'viver' a aventura, ‘em ambiente selvagem’. Dentro de uma piroga segura, olham os "povos primitivos". Sim, os turistas vão ‘ver’ como esses selvagens viviam. 
E isso recorda-me uma história triste que assisti em São Tomé. Estávamos na ilha do Príncipe.  Havia uma reunião importante de que participavam algumas personalidades. Para as 'senhoras', que não iam assistir, não se aborrecerem foi aconselhado por alguém (do restaurante mais importante da cidade): "as senhoras podem ir  ver a praia, mas também há aqui umas aldeolas de 'povos primitivos' engraçadas..." 
Eu vivia em São Tomé há anos e sabia quem eram os são-tomenses do arquipélago e não havia lá primitivos de espécie nenhuma! 
Indignei-me e deitei-lhe um olhar tal que ela não disse mais nada. Nunca me esqueci dessa pessoa que- ela sim era um bocado 'primitiva'!
Guarani, no filme Birdwatchers
No filme, os turistas deparam-se com um grupo de índios escondidos num bosque e aparentemente espantados. Ou mesmo assustados. Só que tudo é falso e eles foram pagos para servirem de comparsas duma história inventada. 
índio Guarani, cena do filme
Os índios, meio despidos, fingem lançar flechas, com expressões e pinturas de guerra. Mas, depois, afastam-se e vão vestir os seus velhos jeans e as T-shirts que lhes impingira, recebem o salário de figurantes e voltam para as suas cabanas na reserva onde estão "arrumados" como gado.
índio Guarani (filme)
Sim, é isso: tal como os índios da América, também eles estão "arrumados" em reservas a fingir que são como os outros –eles que eram - e são- os verdadeiros autóctones! Só que não contam nada e não são nada. 
 índios da América, gravura antiga
Foram destruídos aos milhares durante séculos e hoje quase desapareceram. Vivem, ou, melhor, sobrevivem nas reservas. Cheios de doenças, de humilhações constantes. Lembro o actor Gary Farmer, do filme de Jim Jarmush -"Dead Man Walking"-, a história do morto que caminha, com e Johnny Depp e Gary Farmer.
Gary Farmer é de ascendência Cherokee e lembro-me que, quando vi o filme, fui ler a sua biografia. 
E vi que é um homem instruído, inteligente - o que se via bem no filme em que ele era a 'reincarnação' de Wlilliam Blake, o poeta-maldito. Vive ainda hoje na Reserva das Seis Terras, no Canadá.
O filme de Béchis quer denunciar a situação de outros índios, os da tribo Kaiowa do Brasil, na região de Mato Grosso. Guaranis que vão fingir de Guaranis, fingir deles próprios, imitando o modo como dantes viviam, numa caricatura do que realmente foram, nessa altura, antes de perseguidos e escravizados. 
Família de Guaranis escravizados, Baptiste Debret, 1830
Uma encenação que é uma mascarada. Da sua identidade, da sua imagem verdadeira  pouco resta a não ser o que ‘os outros’, os espectadores – o mundo!- estão à espera de ver. 
O filme de Marco Béchis -segundo leio- “Birdwatchers” (de 2008) procura dar outra visão: não é documentário nem é ficção: trata-se sim duma história representada por ‘guaranis’ do Brasil, autênticos, relatando factos verídicos, através de um inquérito verdadeiro sobre as humilhações sofridas, a espoliação das terras pelos fazendeiros brancos, a dissipação da cultura que era a deles. 
Guaranis (filme)
O título é algo irónico e presta-se a várias interpretações. Os que observam os pássaros-  designa de igual modo os turistas à espreita do pitoresco da vista do indígena local; mas também os próprios indígenas que perderam os seus costumes e a sua cultura de observadores de pássaros e de tudo, vivendo numa floresta virgem -hoje devastada, onde já nem sabem caçar; e designa igualmente o proprietário –o pássaro imperialista que os tornou no que são.
 ‘guaranis’  hoje, na Reserva
Afastando-se dos outros filmes já realizados sobre o assunto -desde Herzog a Malik- Bechis procura 'pintar' não o explorador branco mas sim a revolta da tribo Kaiowa. Contestando a legalidade desse terreno agrícola, os Guaranis violam as terras que eram suas, e sentem roubadas, e instalam um acampamento fora do território que lhes foi concedido e consulta um shaman
o actor Ambrósio Vilhalva, o Shaman 
A morte ronda, cercados e perseguidos, e muitos dos jovens, querendo agarrar-se às velhas crenças, suicidam-se, procurando fugir aos sofrimentos deste mundo e reencontrar noutro mundo -e noutra dimensão- uma vida. Acreditam nos espíritos, nas entidades maléficas, na eternidade das almas. 
Mas são perseguidos e amaldiçoados pelos outros sobreviventes que acham que eles desertaram a causa do combate colectivo. 
E a tribo afasta-se para longe dos cadáveres dos enforcados, enterrados com os telemóveis e os sapatos de ténis- os fétiches da sociedade inimiga, e sinais da sua traição… 
E na realidade?  Os Kaiowa vivem no Estado do Mato Grosso do Sul. Perderam a maior parte do território depois de expulsões brutais. As terras deles estão hoje, é claro,  na mão de criadores de bovinos e plantadores de soja e de cana do açúcar. 
jovem mulher guarani, no filme de Bechis

Leio na internet: “A verdade é que os Guaranis, expulsos das suas terras,  vivem em condições insuportáveis. O filme representa a revolta dessa comunidade para recuperar a terra. Sucede-se uma repressão violenta.(…) 230 guaranis participam na realização do filme de Bechis. O actor Ambrósio Vilhava - na altura 'chefe' dos kiowas- espera que o filme permita o reconhecimento oficial do território Guarani. Diz: “A terra e a justiça é o que mais desejo”.
 jovem actor guarani Abrisio da Silva Pedro
Pergunto eu: há solução para este problema? Alguém se preocupa, a sério? Não me atrevo a dar nenhuma resposta. Creio que não há resposta. 
Alguma coisa avançou na realidade? Todo o processo da expulsão das terras fora traumático, trazendo desequilíbrios fatais: além dos abusos sobre as mulheres guaranis, os suicídios dos jovens, surgem as doenças e o alcoolismo nos índios Kaiowas. Tal como acontecera com os Índios da América...
Em 2009, o Ministério da Justiça publicou uma 'portaria declaratória', reconhecendo a área como 'efectivamente indígena'. 
Uma vitória para os Kaiowa? Sim, talvez. Até que ponto o sucesso do filme terá ajudado?
cena do filme Birdwatchers
Sei que, em Janeiro de 2012, Eliseu Lopes, novo chefe dos Kaiowas, vai ao Parlamento em Brasília afirmar que não aceitarão ser despejados das suas terras.
 Eliseu Lopes, em Brasília
Notícias recentes revelam que, em 2 de Dezembro de 2013, Ambrósio Vilhalva é assassinado à facada: 
"Na sua aldeia, a caminho de casa, o chefe guarani Kaiowá do acampamento Guyraroká, morre esfaqueado. A sua morte é triste e complexa (...)"- escreve o 'Conselho Indigenista Missionário' (Organismo vinculado à Conferência dos Bispos o Brasil)
Apontam-se algumas explicações (ver o link abaixo): que o ser actor, as viagens pela Europa, a importância que lhe foi dada o  teriam levado a encher-se de orgulho e convencimento? A beber demasiado? A perder a confiança dos seus? Odiado pelos próprios Kaiowas?  
system=news&conteudo_id=7290&action=read
Será real a explicação? Sei que, em 2015, foi assassinado outro Vilhalva e que se aguarda, há mais de um ano, o resultado do inquérito. 

Sei que, durante os Jogos Olímpicos de Junho de 2016, uma equipa  de dois guarani participou na 'passagem da tocha olímpica'. 

Um ano antes tinham acontecido os Jogos Olímpicos Indígenas. E agora?
Sei que, em 2016, eles temiam a 'vitória' de Temer. E foram presos alguns Kaiowas depois disso.
Será, pois, a real explicação? Ou, sou eu que me tornei de facto céptica?!… 
(*) Birdwatchers, é um filme ítalo-brasileiro, de Marco Bechis, com Abrisio da Silva Pedro, Ambrosio Vilhalva, Claudio Santamaria, Chiara Caselli. 
Vilhalva e Bechis, em Veneza (2008)
Em 2010, o filme que já tivera excelentes críticas aquando da sua saída, no Festival de Veneza em 2008, recebe o One World Media Award. 
O actor Ambrósio Vilhalva viaja pela Europa com Marc Bechis e Abrisio da Silva Pedro, para apresentarem o filme. O seu desejo de justiça continua intacto. O entusiasmo cresce. Talvez Vilhalva acreditasse que o filme poderia ajudar a causa dos Guaranis.
Marco Bechis, Ambrósio Vilhalva e Abrísio da Silva Pedro

NOTA: Marco Bechis nasce em Santiago do Chile em 24 de Outubro de 1955, de mãe chilena e pai italiano, cresce entre São Paulo e Buenos Aires. Em 1977 é expulso da Argentina e vai para Itália. Em 1981 inscreve-se numa escola de Cinema em Milão, o Albedo di Milano. Viaja por Nova-Iorque, Paris e Los Angeles. 
Em 1982, filma “Los desaparecidos, dove sono?” -vídeo-instalação de 1982-  virá a transformar-se no filme “Garage Olimpo” sobre campos de retenção na Argentina (1995). 
Em 1991, apresenta 'Alhambrado', no Festival de Locarno. 
A partir de 2004, funda a Karta Film e começa a preparação do filme 'La terra Degli Uomini Rossi  - de que será director e produtor. 


6 comentários:

  1. Amiga, nosso país tem cometido crimes horrorosos. Denunciamos todos os dias, mas a grande mídia não nos permite aparecer. Junto com eles, morrem nossos jovens negros, nossas crianças e um pouco de nós.
    Para além da Olimpíadas, somos hoje um pais que finge não ver.

    beijos nossos
    resistir é a nossa palavra e lutar o nosso lema.

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    1. Queridas amigas, nunca as esqueço! Queria voltar a ver-vos, quem sabe? Penso como vocês e receio pelo 'nosso' Brasil, aquele que é verdadeiro! Todos os países (todos não sei bem...) cometem crimes, atrocidades mais ou menos visíveis, mais ou menos 'brandas'... Só desejo que vocês tenham mais sorte! Sei que lutam, estou com as minhas amigas dos vurdóns! Beijos x 7

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  2. Mais uma história horrível, a que um cineasta sonhador dá mais visibilidade que todos os sacrifícios das víctimas. É assim a vida, com a sua parte cruel sempre a assomar, e o resto, cómodamente instalado, a não querer saber. Admiro imenso as pessoas que lutam pela justiça universal, e os heróis anónimos que sofrem em carne própria os desvarios deste mundo cão.
    Gostei de ver por aqui as nossas Vurdóns, também as sinto por perto de mim, penso que uma em especial...Tenho sempre uma visita do Brasil, e gosto de pensar que é ela.
    Feliz domingo!

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    1. E serei, saiba disso. Não há nada que nos afaste.
      Infelizmente nosso pais está sobre forte pressão. Estamos perdendo direitos. Um atrás do outro. Agora vão congelar os investimentos em saúde, educação e previdencia social por 20 anos, imagine o estrago, pense nas minorias, inclusive nos indígenas, quilombolas, ciganos, ribeirinhos, pescadores artesanais, quebradeiras de coco e muitos outros.

      Hoje nosso pais agoniza e a nossa mídia nos trai, com falsas reportagens e jornais que não contam nada da realidade.

      Mas vou te ver.... sei disso.

      Pode me esperar.

      Bjs

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  3. Sabia do infortúnio dos índios guarani, provocado pelo desmatamento, a favor da cultura da horrível soja geneticamente modificada...
    Gostei de saber do filme e dos sinais que revelam abertura aos direitos dos povos autótones.
    Ao contrário do que se possa pensar, o Brasil tem fortes representações de verdes, ambientalistas e ecologistas, pelo que, em 2010 tive muita esperança de ver a senadora Marina Silva como presidente do Brasil.
    Não fossem eles, a Amazónia já tinha desaparecido...
    Praticam todas as atrocidades ambientais em nome do «progresso» e nós vemos um Brasil sempre com mais pobres...
    ~~~ Beijinhos, MJ ~~~

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    1. Tem razão, Majo, o Brasil é muito mais do que se diz dele (normalmente diz-se mal...), acredito que não vão parar - no bom sentido- e que Temer tem de acabar por acabar...Um beijo

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