sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Kazuo Ishiguro e o Prémio Nobel de Literatura 2017

Kazuo Ishiguro e o Prémio Nobel de Literatura

Num Natal de há uns anos, o meu filho Diogo ofereceu-me um livro que se chamava “Nunca me deixes” (“Don’t let me go”) e o autor era um escritor britânico de ascendência japonesa, Kazuo Ishiguro. Tinha sido publicado em português pela Gradiva  e a tradução era excepcionalmente boa.


Kazuo Ishiguro nasceu em Nagasaki em 8 de Novembro de 1954, nove anos depois da bomba atómica sobre a sua cidade. Veio para Inglaterra com 6 anos. 

O pai era Físico Oceanógrafo e a família e viveram em Guildford  a partir de 1960. 
Kazuo estudou nas Universidades de Kent e East Anglia, no Sussex. 

Viveu sempre entre duas culturas. É pois um escritor nipo-britânico.

Licenciou-se em Inglês e Filosofia, em 1978, e seguiu a vida literária.


Em 6 de Outubro de 2010, escrevi aqui no blogue um post sobre a impressão que me causara o livro.

 “Não me deixes” foi o único livro que li até hoje de Ishiguro, e a verdade é que o li em três ou quatro dias, sem parar, porque se vive num suspense continuamente presente e adiado.

É um livro com um assunto inesperado, um tema estranho, de antecipação científica podemos dizer, o dos “clones” humanos. Não falo dos "híbridos" para que se aponta hoje, mas de seres "especiais" preparados para servirem de peças sobresselentes...

Romance onde, no entanto, os sentimentos e as emoções contam muito.
A verdade é que o livro me prendeu, me comoveu e nunca mais o esqueci!
Escrito na primeira pessoa, é Kathy H. que conta a história.


Chamo-me Kathy H. Tenho 31 anos e trabalho há mais de onze como ‘ajudante’. Parece muito tempo, bem sei, mas a verdade é que me pediram que continuasse por mais oito meses, até ao final deste ano. O facto de ser ajudante há tanto tempo não significa necessariamente que me considerem uma profissional excelente.”

O livro começa de um modo simples e directo, muito próprio da literatura de língua inglesa.

Não era preciso ir buscar o ‘tema estranho’ de uma parte da humanidade servir de peças para outros.  É muito mais do que isso:  a angústia e o sem sentido da vida das personagens é igual à de todos nós - que andamos atrás do sentido da vida, num mundo que evolui, desprovido de valores, para caminhos assustadores.

“Eles”, estas pessoas estranhas, nasceram e não tiveram vida familiar. Vivem num colégio “orfanato” desde crianças de 3-4 anos e são preparados para algo que desconhecem mas que o leitor, pouco a pouco, vai descobrindo - sem o perceber bem nunca.

Vão ser “dadores” e ignoram-no ainda. Fechados, protegidos, sim, sem contacto com o exterior. 
Protegidos mas para quê? Há uma preparação importante a fazer para o futuro, dizem os professores-ajudantes. 
Têm de ser "criativos", têm de ter cuidado com a saúde porque são especiais.
E vão criando as suas amizades como crianças normais. Kathy, Ruth, Tommy ficam para sempre ligados.


Sentem excitação pelo futuro - mas têm medo. Não sabem o que os espera lá fora.

E “nós”, seres normais que nos consideramos,  não andamos igualmente à procura do sentido do mundo agressivo, perigoso em que vivemos.

Como “eles”, quantas vezes nos sentimos solitários, diferentes, postos de lado, sem saber qual é o nosso lugar nesse mundo?

Eles receiam o futuro - e o nosso futuro qual será?
O que somos nós? Nascemos para quê? Como aqueles jovens internos não sabemos para quê.

Já o grande Paul Gauguin se interrogava sobre isso, no belíssimo “painel”: “Quem somos? De onde vimos? Para onde vamos?”

Qual o sentido da vida, se vamos morrer?”, já perguntava Malraux na “Condition humaine” e nos “Conquérants”. 

Ou os existencialistas. E, antes deles todos, o próprio Tolstoi se interroga.

Kathy H. fora, em tempos idos, interna em Hailsham e hoje está fora e é "ajudante". 

A acção é situada numa Inglaterra “distópica” (decidi manter a palavra porque acho que é sempre útil enriquecer a língua, que tão mal tratada tem sido, tão adulterada) - que é o contrário de “utópica”- onde não vai haver lugar seguro para aqueles adolescentes super-preparados, sem saberem para quê.

Pouco a pouco, vamo-nos apercebendo da “anormalidade” da sua situação.

Mas essa anormalidade não é a que existe nos nossos tempos? Não será uma metáfora do autor? 

Onde haverá para os nossos jovens de hoje um lugar seguro? O mais natural vai ser a insegurança e a precariedade.

Kathy, Ruth, Tommy e outros viveram no orfanato e interrogam-se, preocupam-se. 

Personagens “vivas”, bem conseguidas, que nos “arrastam” nas suas dificuldades, nas angústias, na solidão. No medo que chega quando a noite desce e as conversas na camarata não têm fim.

Porque o colégio é um ambiente de segredos, de meias verdades, de alusões nunca explicadas. 

E há a figura misteriosa de Madame que vem de vez em quando recolher os trabalhos mais criativos para pôr numa (imaginária) Galeria lá fora.

Um dia Kathy está sozinha  no quarto a ouvir a canção abraçada a uma almofada, embalando-a, e cantando. 
- Oh baby, baby, never let me go...

Madame espreita-a do corredor e desata a chorar. 
Esta canção Don’t let me go, de Judy Bridgewater, fora gravada numa cassete por Kathy, adolescente,  tirada dum álbum intitulado Songs After Dark (*). 

E obceca-nos desde o início: nunca me abandones é o título do romance e o mesmo da canção. 

Até ao fim, pareceu-me ouvir dentro de mim a canção. Procurei-a. Descobri que é uma canção inventada, de uma cantora que nunca existiu.

Uma história que nos horroriza, se entrarmos com uma alma sensível e delicada naquele conflito.
Não conto mais porque acho que é o leitor que tem de ir descobrindo, pouco a pouco, o enredo.

Apesar de a Inglaterra o considerar um Nobel britânico, o Japão festeja também o "seu" Nobel!... Ambos os países têm razão.


2010, "Never let me go” filme de Romanek

(1), filme de James Ivory, de 1993, com dois actores extraordinários, Emma Thompson e Anthony Hopkins que todos lembramos.

(2) “Never let me go”, pelo realizador Mark Romanek em 2010, tendo nos principais papéis Keira Knightley, Carey Mulligan and Andrew Garfield. Foi do filme que tirei algumas das imagens.

Podem encontrar alguns livros de Kazuo Ishiguro traduzidos, na Gradiva ou Relógio d'Água . O último a sair foi O gigante enterrado, em 2015, história de ficção científica.


4 comentários:

  1. Maria João,
    Apesar de conhecer o escritor, ou melhor, o seu nome, não conheço a sua obra. Nunca li nenhum livro seu!
    Já tinha curiosidade em o fazer, mas após esta sua exposição, essa vontade aumentou consideravelmente!
    Um beijinho e bom fim-de-semana.:))

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  2. Não li nada deste último Prémio Nobel anglo-japonês ou nipo-britânico... Vi na net uma série de escritores japoneses que se suicidaram, fiquei impressionada e curiosa, voltarei ao assunto.
    Só li Tokio Blues de Murakami, e La Casa de Las Bellas de Kawabata, há mil anos. Fizeste um bom trabalho, como sempre, com o teu rigor e entusiasmo de sempre. Parabéns por isso!
    Beijinho

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    1. Obrigada! gosto muito da literatura japonesa! Vê se lês o Kawabata, "País de Neve" ou as "Histórias da palma da mão". Excepcional!
      Um beijinho e bom eterno Verão...

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  3. Vi o filme e li o livro, a história deles é tão triste

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