Há tanta coisa a descobrir nesta autora! Observações, apontamentos sobre coisas tão variadas como assuntos do dia a dia a pensamentos, reflexões sobre literatura e crítica, a condição das mulheres-escritoras, atitudes, ou a diferença dos mundos.
O mundo da cidade e o do campo, por exemplo. As gentes e a miséria que encontrou nas aldeias iguala a das gentes simples dos bairros populares de Lisboa, das ruas com as suas vendedeiras e seus pregões.
Ou os cafés onde se esconde a solidão não passam de fragmentos de vida, vivos, com as suas cores desmaiadas ou gritantes, quase agressivas mesmo, mais sentidas do que pensadas.
Toulouse-Lautrec, Café e solidão...
O seu olhar mergulha na vida, atento ao sofrimento do outro, às injustiças, aos sentimentos de injustiça, com o seu "recolhimento quase furtivo", a descortinar a humanidade de cada um, na sua desgraça, na sua pobreza ou na sua ambição, desalento ou esperança.
De si revela muito. Até a pena de não ver a sua obra apreciada. Um dia alguém lhe diz que apreciava a sua obra e sentir esse respeito faz-lhe bem.
“Este
homem que saiu daqui disse-me de cara a cara mas amavelmente que eu procurava o
‘inefável’ no quotidiano, e que tinha a mística…
Será
que o entendi? Que tinha a mística do que sensivelmente me agita: que exploro
as coisas com um recolhimento profundo. Ele respeitava-me dando-me a entender
tudo isto.”
As
suas palavras soltas, livres, são lançadas como pedradas tantas vezes, sempre inteira
na procura do tal ‘inefável no quotidiano’. A ver as pequenas coisas que os
outros não vêem, absorvidos como estão nas suas próprias “vidinhas”, fechados
ao que os rodeia.
Preocupada com a miséria da vida das mulheres, da dificuldade de chegar ao fim do mês quando nada se tem e se vive -sobrevive!-de subterfúgios, dum quartinho alugado a outro desgraçado que lhe garante a comida do dia a dia.
Conhece a marginalização da mulher em todos os campos
e classes sociais ou mesmo entre os intelectuais. Sabia defendê-las quando era necessário, muitas vezes em tom
sarcástico e irónico como no texto em que fala das mulheres escritoras.
Dizia
Irene que a palavra tinha poderes ocultos e a sua força era infinita. Os
textos sobre Lisboa impressionam-nos pela capacidade de compreensão, empatia,
com os seres mais frágeis, mais desprotegidos pela sorte – que ela encontra no
seu dia-a-dia.
Por curiosidade conto uma coisa engraçada: estava
eu a escrever sobre Irene Lisboa e a cidade de Lisboa e descobri aqui em casa
um livro maravilhoso do pintor Carlos Botelho que nem me recordava de ter.
Descobrir a cidade de que ela fala, com as cores de Botelho é muito bom para
mim.
Vejo-a vaguear por aquelas ruas, devagar, contemplativa, ou agitada, nervosa – a compreender
os os habitantes dos sítios por onde passa , com a sensibilidade delicada
à flor da pele que é a sua - e que é infinita.
Carlos Botelho
Vai falando consigo : “Eu penso que podia
fazer alguma coisa…E não eu! Não é bem em mim que penso porque eu sou
passageira e ínfima. Penso que alguma coisa se podia e devia fazer…”
Instantes
da realidade diária que a tocam e nos tocam. A história do burrinho coxo que vai
a arrastar a perna, mancando, enquanto puxa
a carroça que a dona trouxe à cidade carregada de fruta, couves e verduras – é patética!
Condói-se com o sofrimento do burrinho e a aflição dessa pobre “mulher esgrouviada
que dizia mal à sua vida” que explica, com vergonha, que não tem dinheiro para o levar
ao veterinário. O grupo que se formou à volta da mulher agita-se e tem
opiniões: os comentários de apoio ou de crítica são agressivos.
Carlos Botelho
Recordo a história do menino que vendia limões e que, a fugir do policia, vai parar debaixo
do eléctrico.
Ou
a mulher que ela encontra, certa manhã, às vassoiradas no passeio, enquanto um magote
de gente tenta perceber o que aconteceu. Ela grita e bate com a vassoira. Afinal
era apenas um rabo de lagartixa que se contorcia.
Tantas
e tantas histórias que se passam nos seus livros. Contadas apenas, deixando ao
leitor a sua liberdade de ouvir, reflectir também.
Nela há sempre a urgência de fazer alguma
coisa. Sente no entanto a fragilidade da sua pessoa. O mundo é vário e o seu poder é pouco. Mas ela não desiste.
Van Gogh, Olival e nuvens
“Cada lugar em que se vive exerce sobre nós a
sua influência, e não há que lhe fugir. É sempre reconhecível. Só a monotonia e
a permanência nos podem enganar, cegar, tirar-lhes o poder de sensibilidade.”
Por isso, para ela, a chuva é diferente não campo e na cidade.
O
mistério das nuvens carregadas de chuva, manchas negras num campo aberto até ao
horizonte – de onde começam a mover-se e é assustador.
“No campo a chuva passa às ondas,
num movimento, baixas e baças. Entristece e parece misteriosa”,
escreve.
Não
se compara à chuva que vemos na cidade “num ambiente doméstico de conforto.” No
calor da casa, ou nas ruas com gente e movimento, companhia.
O único modo de fazer algo pelo seu semelhante, creio, é o olhar que lança sobre o
ser humano, seja no campo, seja na cidade, a descortinar os sofrimentos, os
problemas que vive no dia a dia e a escrever. Felizmente, há a palavra!
É
urgente ouvir sua palavra. Ler o que
escreveu. Saber que há estudos, teses sobre Irene Lisboa, de jovens e menos
jovens que se interessam pelas suas preocupações éticas.
Lembro
o trabalho importante que realizou a Professora Paula Morão (1), quer pela organização dessa primeira
Antologia de textos de Irene Lisboa (2), quer pela tese de Doutoramento a ela
dedicada, intitulada “Irene Lisboa Vida e Escrita” quer pela continuação do seu
interesse por ela.
O que a leva a interessar-se pela reedição das obras da autora. Em 1994, prefacia a reedição de “Voltar atrás para quê?”, que sai na Editora Presença – livro cuja primeira edição é de 1940.
De
assinalar, porém, que é em 1973 que sai a primeira reedição de "Voltar atrás
para quê?", saído, em 1973, na colecção Unibolso
(Lisboa Editores Associados). E que, nessa altura, vendeu mais de 15.000 exemplares!
Paula
Morão interessou-se também pela criação da Casa-Museu Irene Lisboa na terra da
autora, na Arruda dos Vinhos. Museu onde se realizam exposições, conferências e
onde existem originais da escritora.
Quero
referir também a recente tese de Mestrado, defendida em 2017 por Sara Barbosa, professora
do ensino secundário – minha amiga e apaixonada pela escritora.
Todas estas publicações são muito relevantes para o conhecimento desta personalidade da nossa
Literatura ainda desconhecida para o grande público.
Irene Lisboa
(1)Paula Morão nasceu em
1951. É Professora Catedrática do departamento de Literaturas Românicas da
Faculdade de Letras de Lisboa.
(2)Esta “antologia”,
organizada, prefaciada e anotada por P.M. (“ensaio preparado em Paris de Janeiro
a Julho de 1983) intitula-se “Folhas
Soltas da Seara Nova” e reúne escritos variadíssimos da autora, publicados
na revista Seara Nova de 1929 a 1955. Saiu na Imprensa Nacional Casa da Moeda,
biblioteca de Autores Portugueses, em
1986.
Bonito e elaborado texto, tenho a certeza que Irene Lisboa merece toda a atenção que lhe dedicas. A mim acontece-me como a Javier Marías, que "já não tem idade de estar ao corrente", mas sempre é agradável saber mais de alguém que vale a pena. Para isso te tenho a ti, pessoa culta, viajada e com uma vida interessante, e por isso somos amigas há já uns anitos...
ResponderEliminarBeijinho
Querida María! não exageremos...é só uma questão de amor...Bom finde!
ResponderEliminarGosto da Irene Lisboa e do que li dela, que não foi muito. Já tenho ali mais uns livros para ler.
ResponderEliminarTambém gostei das pinturas que escolheu. gosto da pintura de Carlos Botelho.
Beijinhos e um bom domingo.
Obrigada, Isabel, fiel leitora, por teres a paciência de pôr novo comentário neste post: o outro estava todo truncado...coisas da internet e dos blogues....Bom domingo!
ResponderEliminarGostei muito deste post, vou procurar encontrar livros de Irene Lisboa e descobrir a sua obra
ResponderEliminarGostei de conhecer Irene Lisboa. Interessante e bem construído post.
ResponderEliminarMaria, deixo o meu agradecimento pela oportunidade de aprender, por textos tão interessantes e assuntos oportunos. Muitas reflexões por aqui, sempre!
Um beijinho, forte abraço e desejando uma feliz primavera. Cá será outono, a minha estação preferida.
Querida Maria da Glória, obrigada por tanto comentário no meu blog! Parecia uma invasão "aliena"!
EliminarObrigada. Quis agradecer, mas não consegui entrar no seu "Fare la scarpetta" para deixar uma saudação. Um beijo e obrigada. Já cozinhei muitas das suas"paste"italianas...
Maria, com suas linhas que me inspiram e também, conseguem que eu pare no tempo, sem perceber o tempo...
EliminarVocê é sempre querida no meu blog, mas a ferramente blog por vezes é assim, não facilita as nossas vontades. Fico feliz de saber que tem cozinhado as delícias italianas.
Mais um abraço do Brasil.