Túmulo de Rafael (interior do Panthéon)
"Michael Brenner olhava através dos
vidros. Começou a pensar no que Erica dissera e como se vira metido naquela história. Tudo começara muito tempo antes, num dia de Inverno, ali mesmo, na 'Piazza della Rotonda', ao lado do Panthéon.
As pessoas passavam, rápidas, agarradas aos casacos e ao cachecol de lã. O frio instalara-se, mas o sol continuava a brilhar, intenso. Ouvira falar tanto nos magníficos dias de Inverno de Roma e parecia-lhe impossível estar a vivê-los.
As pessoas passavam, rápidas, agarradas aos casacos e ao cachecol de lã. O frio instalara-se, mas o sol continuava a brilhar, intenso. Ouvira falar tanto nos magníficos dias de Inverno de Roma e parecia-lhe impossível estar a vivê-los.
O restaurante era agradável,
muito tranquilo. Tinha-lhe dito um amigo italiano que era o sítio onde se
comiam os melhores spaghetti alle vongole da cidade.
o Panthéon e a Piazza della Rotonda, ao fundo
Sentado na mesa de canto, podia
ver de um lado a Piazza e, do outro,
a sala de jantar. Havia mais duas ou três mesas ocupadas.
O casal da mesa ao lado interessou-o. Percebia-se que eram conhecidos no restaurante, pelos gestos cuidadosos dos empregados, pela atenção.
O casal da mesa ao lado interessou-o. Percebia-se que eram conhecidos no restaurante, pelos gestos cuidadosos dos empregados, pela atenção.
Comiam, em silêncio, como se já
tivessem dito tudo um ao outro. Atraía-o o rosto delicado da mulher, não muito jovem, de que via o perfil. Dele, distinguia os cabelos com entradas brancas nas fontes, costas largas, o pescoço forte onde brilhava um fio de ouro. Bem vestido, camisola de cashemere.
Ela, elegante e fina, trazia um vestido de lã de cor clara e uma écharpe azul que lhe envolvia o pescoço esguio. O cabelo loiro escuro preso, com uma fita azul, formava um rolo na nuca. Lembrava figuras de certos quadros de mulheres melancólicas, com uma tristeza indescritível.
Foi ele quem quebrou o silêncio. Falavam inglês e, por ser essa a sua língua, Michael ouvia-os, involuntariamente.
Ela, elegante e fina, trazia um vestido de lã de cor clara e uma écharpe azul que lhe envolvia o pescoço esguio. O cabelo loiro escuro preso, com uma fita azul, formava um rolo na nuca. Lembrava figuras de certos quadros de mulheres melancólicas, com uma tristeza indescritível.
Foi ele quem quebrou o silêncio. Falavam inglês e, por ser essa a sua língua, Michael ouvia-os, involuntariamente.
- Ontem telefonei à pequena do café,
aquela que tem olhos azuis.
Sorriu, irónico, para a mulher. Ela ficou calada.
-Disse-lhe que era a mais bonita. Falei-te nela, não falei?
Sorriu, irónico, para a mulher. Ela ficou calada.
-Disse-lhe que era a mais bonita. Falei-te nela, não falei?
Continuou, num tom de
apreciador:
- Belo corpo! Vinte anos, ou talvez menos...
A mulher parecia ausente, de
olhos baixos.
- Sabes o que me respondeu?
Sem esperar a resposta, que não
viria, acrescentou:
- Que eram os meus olhos
que a viam assim.
Ria-se, parecia contente consigo. Ela ergueu os olhos, limitando-se a pegar no copo de vinho branco.
Michael sentiua-se incomodado, não queria
escutar a conversa. Tossiu, mexeu a cadeira, mas não podia evitar, estavam
demasiado perto as duas mesas e ele tinha que os ouvir.
Incomodava-o violar uma
intimidade. A conversa era banal e desinteressante e começou a sentir-se nervoso.
De repente, ela falou. Tinha
uma voz doce, um pouco cantada.
- De olhos azuis? Não sei quem é.
Encolheu os ombros, agitando o
vinho no copo, sem pensar no que fazia.
- Ontem, falaste numa escurinha,
com a doçura das africanas...
-
Escura, ou morena? - interessou-se ele.
- Disseste “escurinha”. Não sei o que querias dizer.
Falara devagar, em tom monocórdico. Desinteressada. Ele olhou-a, interrogativo.
-
Tens a certeza? Ontem?
-
Ontem, ou há dias. Esqueceste-te?
“Impassível
a senhora”, pensou Michael, “Deve tomar calmantes. Não devia beber.”
-
Eu nunca me esqueço de nada!
-
Na tua idade!, e abanava a cabeça, num ar de censura leve.
Não
o criticava, era quase indiferente que o notava.
-
Na minha idade? O que tem que ver a minha idade? - perguntou, brusco.
Ela não ouvia, perdida noutro
mundo. A falar mais para si do que para ele, continuou:
- Os anos passam e não damos por eles…
-
Queres insinuar que estou velho?
Erguera a cabeça e desafiava-a.
A voz era agora mais forte.
- Aprecio a beleza das mulheres, a sua
frescura, o seu perfume. E se forem novas, tanto melhor. Sou um homem normal.
-
Estamos velhos. Mudámos.- insistiu ela.
Ignorando-a, a falar consigo mesmo, disse:
- As mulheres gostam de ser
seduzidas, e eu seduzo-as! A garota ficou lisonjeada por eu a achar bonita.
- E não achas?
A voz dela perdera o tom musical
que, de início, lhe lembrara um canto lamentoso. Soava agora seca, vazia. Michael sentiu simpatia e pena por aquela mulher que tinha uma voz bela, melodiosa e dolente, quebrada, alheia, como se a vida real não existisse para ela. Pairava acima daquele restaurante, ausente do mundo, figura etérea.
"Deve ser terrível envelhecer e deixar de amar a vida..."- pensou Michael.
"Deve ser terrível envelhecer e deixar de amar a vida..."- pensou Michael.
Encolhia os ombros, como se seguisse um pensamento que lhe agradava. Repetiu:
- Elas gostam de ser seduzidas e
eu gosto de as seduzir.
Procurava magoá-la? Ela sentira-se atingida e perguntou, num tom que endurecera:
- E tu o que queres dela?
Ele riu-se:
- Hum... Talvez a frescura da juventude.
A juventude é agradável, e eu não lhe resisto!
Concluiu, olhando
para ela, maldoso:
- Dou-lhes essa alegria.
- A frescura da juventude...para que serve a juventude?
Perde-se tão depressa. Passa. Como passou a minha!
Era como um grito de dor. Michael reparou que começara a
chorar, devagarinho. Os ombros agitavam-se, num movimento rítmico, suave.
O outro afastara o olhar, incomodado. Ia rodando o copo na mão, sem se dar conta.
O outro afastara o olhar, incomodado. Ia rodando o copo na mão, sem se dar conta.
“Que
besta!”, pensou Michael.
Constrangia-o o mal-estar da
mulher. O rosto franzira-se como o de uma criança, era patético, as lágrimas caíam pelo rosto e ela não fazia nada para as limpar.
O outro agitou a mão, como se quisesse afastá-la, num gesto de impaciência.
O outro agitou a mão, como se quisesse afastá-la, num gesto de impaciência.
-
Para com isso!
O
gesto revelava a contrariedade e o tom era seco:
-
Que maçada!
Do
outro lado da mesa, ela enrolava os spaghetti e a mão tremia. Não reparava que continuava a chorar. Era como se não estivesse alise não o corpo dela. O espírito ausentara-se.
Esqueceu o que se passava na rua, esqueceu o Panthéon e a sua luz difusa, acolhedora, preso das pálpebras fechadas, dos dedos desesperados, a tremerem. Via a pele
murcha e pequenas rugas marcando o rosto, junto dos lábios e ao canto dos
olhos.
- Perguntas-me para que serve a juventude? Essa
é boa! Para se usar!
Ela olhou-o, nervosa, agitando
a cabeça.
-
Estou velha, não é?!
Erguia a voz, pouco a pouco, inconscientemente, até ficar incontrolável, histérica. O outro forçou um sorriso. Olhava para o lado, agitava os
talheres. Talvez tivesse vergonha que os outros ouvissem. Prezava as aparências.
- Estão todos a olhar, é uma vergonha - disse, irritado. - Baixa a voz!
Ela
soluçava, agora, devagar, em soluços compridos como o de uma criança desesperada e infeliz.
O outro ia enchendo o espaço de palavras, falando baixo e adoçando a voz, para a
fazer calar. E dizia-lhe que era injusta; que ele a ouvia sempre; que apreciava tanto a sua
opinião. - Qual velha?! Que disparate! Por ti o tempo não passa.
Michael sentia-se indignado mas nada podia fazer.
“Saberá
esta nulidade como ela se sente? A juventude passou para ela e sabe-o e ele fala-lhe assim. Imbecil! "
Irritava-o não se ter já ido embora.
"Mas para que me meto nisto?!”
Irritava-o não se ter já ido embora.
"Mas para que me meto nisto?!”
Ela voltara a pegar no copo,
num gesto suave e lento. Esvaziou-o e voltou a enchê-lo quase até entornar,
concentrando-se no que fazia, tensa e de sobrancelhas franzidas. Depois, fixou-o
com expressão vazia, e repetiu, ansiosa:
- Estou velha, nã é?
Não
estava habituada a beber, via-se, e a voz tornara-se confusa.
- Velha...-
balbuciava, absorta. Como certos quadros horríveis.
Impaciente,
ele disse, secamente:
- Não bebas tanto! Queres dar espectáculo?
O velho criado, de guardanapo no braço,
aproximou-se e mudou de lugar a jarra das flores em frente dela.
- A senhora deseja mais alguma
coisa?
Ela agitou-se como se acordasse
e deixou cair o garfo. Michael apressara-se a apanhar
o garfo do chão e entregou-o ao criado que foi buscar outro. Enquanto o pousava, ao
lado, perguntou, outra vez, com uma simpatia evidente:
- A senhora não come mais?
Ela teve um sorriso bonito, como
um parêntesis, naquela cena.
Contemplava a jarra de flores,
silenciosa. quando o criado se afastou, virou-se para o marido como se não sentisse
o efeito do vinho. Lúcida, talvez por isso mesmo, disse, friamente:
- Chorar? Há anos que não
choro...
Michael
agitava-se na cadeira. Chamou o empregado, pediu um café.
- Ristretto, por favor. E traga a conta, prego!
Queria ir-se embora depressa. Não aguentava mais um minuto.
“Só a mim é que acontecem estes
azares!"
Bebeu o café, enervado, pagou e saiu. Ao sair, não resistiu e olhou para trás. Ela virara-se e percebeu que ele a observava. A linha dos lábios
cerrou-se, quase sem expressão.
Piazza Santa Maria Sopra Minerva
Lá fora, a bela cidade de Roma vivia, na sua beleza livre. Sem hipocrisias. Michael suspirou, aliviado, pensou que nunca mais os veria e respirou fundo. Porém, não conseguia deixar de pensar nos olhos dela.
“Os olhos eram azuis… ou cor de cinza?”
Por que pensara em papoilas de repente, naquele dia de Inverno frio? Sabia por que se lembrara...
Sabia que não esqueceria a tristeza daqueles olhos. Lembravam-lhe a doçura do olhar da mãe, na melancolia dos últimos tempos de vida.
Reviu os cabelos vermelhos ondulados, o vestido com papoilas vermelhas, e um chapéu de palha. Ou uma camisa branca que era do pai sobre a saia comprida. Parecia-lhe às vezes uma menina! A mãe, morta. O irremediável. Dor inesquecível.
Por que razão a desconhecida de azul lhe lembrara a mãe? E veio-lhe à ideia uma imagem romântica, de uma mulher sozinha, ao longe, a olhar. Era um dia de sol mas a névoa envolvia-a, dourada.
Por que pensara em papoilas de repente, naquele dia de Inverno frio? Sabia por que se lembrara...
Sabia que não esqueceria a tristeza daqueles olhos. Lembravam-lhe a doçura do olhar da mãe, na melancolia dos últimos tempos de vida.
Reviu os cabelos vermelhos ondulados, o vestido com papoilas vermelhas, e um chapéu de palha. Ou uma camisa branca que era do pai sobre a saia comprida. Parecia-lhe às vezes uma menina! A mãe, morta. O irremediável. Dor inesquecível.
Por que razão a desconhecida de azul lhe lembrara a mãe? E veio-lhe à ideia uma imagem romântica, de uma mulher sozinha, ao longe, a olhar. Era um dia de sol mas a névoa envolvia-a, dourada.
Abanou a cabeça, queria que a visão desaparecesse. Deu umas voltas pela praça, devagar, e
foi sentar-se na esplanada do café da esquina. Do seu lado esquerdo, erguia-se a massa pesada e harmoniosa do Panthéon. Começou a contar as colunas.
NOTA: As pinturas são de Zinaida Serebriakova, Hopper e Monet. As
fotografias são minhas.
Fui à procura do 1º Capítulo, encontrei-o e volto depois para ler o 2º
ResponderEliminarJá de volta para ler o 2º capítulo e gostei muito do primeiro
ResponderEliminarEstou a gostar muito, muito da história, estão-me a prender os personagens, quero saber o que vai acontecer a seguir!
ResponderEliminarum beijinho
Mal empregadas lágrimas por alguém que diz que as mulheres bonitas estão "disponíveis" e gostam de "ser seduzidas" e logo tratar tão mal a que tem em frente...
ResponderEliminarGosto como escreves, já sabes. Tens lá no fundo qualquer coisa que não acaba de sair a flote. Nunca é tarde!
Está um dia estupendo, que o aproveites bem. Um beijíssimo
Entre um episódio e outro há um tempinho...espero que agora não nos deixe tanto tempo à espera do 3º episódio.
ResponderEliminarA Maria João escreve muito bem!
Beijinhos e uma boa semana:)