quarta-feira, 5 de setembro de 2018

A minha colega de carteira no meu primeiro ano do Liceu


Recordar é ter tanta coisa que temos dentro de nós e decidir trazê-las aos outros. Sentimentos novos, aprendizagens, amigos, espantos, medos e felicidades.
As amigas mais antigas que recordo são a Gioconda e a Letícia – que tinha esse nome porque era o da heroína de O príncipe com orelhas de burro, de José Régio, porque Régio – amigo do pai delas, o Dr. João Tavares, foi o seu padrinho. Para nós, ela era a Tiça e mais nada.
Com elas brincámos eu e a minha irmã mais velha, a Tiça era mais nova do que eu e acabou por vir a ser amiga da minha irmã mais nova. 
Eu era a do meio e esse lugar tem muitos problemas! Sentimo-nos mal-amadas, nem grandes nem pequenas com a sensação de que o amor dos pais e dos outros amigos e família se “fixam” nos outros e não em nós. Um dia conto a minha parte…
a rua dos Canastreiros

Morávamos na mesma rua, a casa delas era um pouco mais para cima e era do outro lado da rua. Podíamos até ver-nos da janela e acenar. Com elas brincámos tardes e tardes durante anos. Ora no jardim delas quando estava sol, ou vinham elas para nossa casa que lhes parecia mais “divertida” e aberta. Ao chegarem, ouvia-se lá em baixo o toque do martelo, e uma  de nós descia os dois andares a correr para lhes ir abrir a porta.
Podíamos ficar na garagem que servia de tudo menos de garagem. Onde se descansava nas tórridas tardes de Verão, com cadeiras de praia e uma mesa, o chão de ladrilho sempre salpicado com água. E foi, ali, por exemplo, que me tornei artista de circo. 
Ora pendurada da trave de uma porta sem porta, de cabeça para baixo, ou em cima duma prancha de lavar roupa rolando, equilibrada numa panela sem asas. 
a Casa Amarela

Nesses tempos da Casa Amarela, passeávamos na Corredoura e o grupo alargou-se com os irmão mais novo delas e a nossa irmã.  Aparecia sempre, o Luís Bacharel, bom amigo.
Mais tarde, andávamos já nós todas no liceu, apareceram umas amigas de passagem, que vinham de Lisboa passar o Verão com parentes. 
Carlos Botelho, Lisboa

Lembro a Liginha que chegava bronzeada, cada ano mais alta, com toilettes novas, cabelo curto ou uma fita larga, tipo bandelette, a segurar o cabelo para trás. Um ano até apareceu de luvas brancas de renda.
A outra era a Rosarinho que estudava num Colégio fora de Lisboa com um nome pomposo que associo sei lá porquê ao Eça!

Eu era tímida e talvez me deixasse impressionar  por elas, que pareciam trazer um perfume de fora, de longe. A Lígia tinha um modo afectado de falar com um grande sorriso de dentes brancos e perfeitos. Viam-se bem porque ela usava um bâton um pouco mais vivo – nós andávamos ainda pelos tons rosa, meio disfarçados.
o Plátano, plantado em 1848, pelo Dr. José Maria Grande, cientista

Uma noite vi chegar a Rosarinho ao jardim do Rossio - não muito longe do venerável e lindo Plátano, com uma saia plissada, branca, sapatos de salto alto e uma faixa de seda verde como cinto da saia. 
Moviam-se as duas, com grande à vontade, nos seus vestidos novos, frescos, decotados, de cores vivas. 

Eu era um pouco Maria-rapaz, que adorava andar de sapatilhas e com os vestidos simples de popeline que a minha mãe ajudava a Hermínia a "compor",  confesso que as invejei um pouco, certas noites.
 fotografias desse Cedro (*)

À noite, costumávamos sair, depois do jantar, ao Rossio, passear ou sentarmo-nos debaixo do Cedro da esplanada de Verão, onde serviam boas limonadas com muito limão e uma casca, bem geladas ou os copos lindos de groselha, cor do rubi.

A Gioconda e a Tiça apareciam também e também elas viviam o “fascínio” daquelas duas personagens.

À tarde, preferíamos ir ao Café Central, do meu avô Casaca, onde havia óptimas “mazagrans” (*) que o Carlos – o mais antigo empregado do avô – trazia em grandes bandejas até à esplanada do Café. Durante o Verão, o Café "estendia-se" até ao outro lado da rua Direita no meio da Praça dos Correios, debaixo de outro cedro, seguramente... 
Havia mesinhas redondas e cadeiras de ferro forjado pintadas de branco.
Praça dos Correios

Mas essas eram, como disse acima, as amigas de passagem. Acabado o Verão, tudo voltava à calma da nossa cidade. E nunca mais sabia delas até ao próximo Verão. Até que deixámos de nos ver.
foto na caderneta do Liceu

Mas, antes, eu descobrira as meninas do meu Liceu! Devo dizer que o meu Liceu era um palácio maravilhoso, da família Achaioli (em italiano seria Acciaioli...),com escadarias, mosaicos nas paredes, tectos esculpidos. 
(Por curiosidade conto aos que ainda não sabem - o Manuel conta a história a toda a gente! Nessas escadas, pois, tinha catorze anos e vinha a descer, tranquila, de olhos baixos e diz ele que logo se apaixonou por mim)
Subindo estas escadas e virando à direita, havia uma biblioteca,  forrada de estantes e livros, muito confortável.  

Foi no mesmo ano em que fiz o exame da 4ª classe e dispensei do exame ao liceu. Vejo-me, no final do exame, com a roupa que a mãe nos fizera, iguais, que eu achava super-chique:  saia rodada e um bolero de abas redondas, sem botões, e de mangas curtas. Debaixo, uma blusa de seda cor de marfim, com um bordado na gola. 
desenho a lápis feito numa vigilância de exames

Também não esqueci que, ao molhar a caneta no tinteiro, pus logo um borrão de tinta azul num dos lados do bolero. Só recordo a tristeza que tive e a Florinda a dizer, para me animar, que saía tudo com leite quente.
 Berthe Morisot, Menina do campo com tulipas

As meninas do meu liceu não eram como essas meninas de Lisboa. Eram meninas simples e vinham dos arredores da cidade. Do alto da Serra de São Mamede, do Reguengo, do Gavião, das carreiras ou dos Fortios, das Carreiras ou mesmo de Gáfete.
Carreiras, por João Salvador

Eram meninas do campo, com as carinhas vermelhas do sol ou do frio e muitas vezes no Inverno com as mãos gretadas ou com “frieiras”. As roupinhas delas cheiravam bem, a ervas do campo, a lavado, tinham o perfume da roupa corada ao sol. Elas mesmas me pareciam meninas coradinhas ao sol.
Tive boas amigas no liceu e recordo tudo com saudade. Algumas sei que desapareceram.
Berthe Morisot, Meninas à janela

A Helena foi a minha primeira colega de carteira. Recordo a simplicidade dela, o olhar bom como de certas figuras dos filmes do Walt DisneyA carteira ficava perto da janela e via-se o terraço interior. Às vezes perdia-me a olhar para fora.
Recordo a Helena com um vestido preto, creio que o pai tinha morrido há pouco. Tinha os cabelos castanhos lisos, muito bem penteados, uma pele clara e uns olhos que me pareciam tristes e se animavam quando me contava histórias. 
Ela adorava contar-me histórias enquanto esperávamos que os professores entrassem na aula. E eu adorava ouvi-las...
Eram histórias de fantasmas e de mortos, coisas que eu ouvia com um ar incrédulo mas encantado, tal como as ouvira, noutros tempos,  contadas pela Hermínia, a nossa costureira, que tinha um dom de contar extraordinário. À braseira, na cozinha, com a Florinda e a Rosalina, essas histórias de lobisomens e de cães solitários uivando à lua, metiam medo. 
"cães solitários uivando à lua"

Tal como a Hermínia, a Helena abria muito os olhos para me assustar e criar o suspense. 

Essa companheira de carteira chamava-se Maria Helena de Deus Almeida. Nunca me esqueci do nome completo dela porque foi uma boa amiga e senti saudades dela.

Ensinava-me a esfregar o dedos na costa da mão, com força, e dizia com um ar misterioso:
- Cheira a minha mão! Sabes a que cheira?
Eu cheirava, curiosa como sempre. Era um cheiro estranho e desconhecido.
- O que é? perguntava interessada.
- É o cheiro dos mortos, explicava com voz soturna.
Eu ficava na dúvida. Seria verdade que os mortos cheiravam assim? Nunca tinha visto um morto.
- É como a carne morta, explicava, com o ar mais tranquilo do mundo.
- è este cheiro mesmo…
- De verdade?

Hoje, ao lembrar-me dela, tento repetir os mesmos gestos que fazíamos, reencontrar o cheiro dos mortos. Esfrego os dedos na costa da mão. Não me cheirou a morto nem a nada. Talvez me tenha cheirado a creme ou a água de rosas – coisas que não usávamos nessa altura. Sorri. E foi o cheiro do creme que me fez pensar nela.
Como saber o que lhe aconteceu? Saberei alguma vez o que foi a vida da minha companheira de carteira nesse primeiro ano de Liceu? Nunca mais nos vimos. Pensava muitas vezes por onde andaria? o que teria estudado?
Via-a com os traços desta figura do pintor holandês Jacob Maris, “Menina a coser”.
O mesmo sorriso suave, o jeito da cabeça inclinada, neste perfil tão bonito e puro. E as casas brancas ao longe…
E, depois, pensava: e as outras? Onde andam as outras “meninas” que perdi de vista? O que fizeram? Foram felizes? Onde vai isso tudo, meu Deus…
Dito isto, confesso que tenho uma surpresa para lhes contar!
Um final feliz, diriam nos romances românticos. E ponho-me a pensar: o mundo que tanto corre e gira e roda; o mundo que é tão vasto quanto efémero, a vida que julgamos eterna, ara sempre e dura um suspiro ou o tempo de uma folha de Outono cair - como lembram os Salmos.

Afinal, não foi esse mundo que gira e corre que nos fez reencontrar. Foi sim, o mundo substituto do real, o mundo virtual – esse mesmo que nos vai prendendo com os seus tentáculos enganadores e nos “encanta” enquanto nos pode”esmagar”, pois foi nesse mundo do Facebook que há dias recebi um pedido de amizade que me fez pensar na minha cidade. 
foto do amigo desaparecido, José Fernando

O nome era igual ao dela. Aceitei. Na mensagem que me enviou, escreveu mais ou menos isto : ”Dra. Maria João Falcão, eu fui a sua colega de carteira no Liceu de Portalegre. Queria dizer que gosto do que escreve”, etc etc”.

Eu desatei a rir sozinha! Depis contei ao Manuel. Ele sabia quantas vezes lhe falara dela. Coisa extraordinária na verdade, pois, meses antes, ao escrever uns Apontamentos: “O meu Pai e os figos de Setembro”.
Demorei-me, longamente, nesse tempo de Liceu: as idas a comprar bichinhos da seda à rua do Sapateiro, as aulas de Francês com a D. Lucinda e o nosso 'esforço' em pronunciar o ‘ü’ francês sem dizer ‘iú’…
Comovi-me quando lhe respondi em duas ou três linhas, apressadas, a dizer que pensara tanto nela sempre - que era impossível que não nos encontrássemos. Lá fora, a nossa árvore, frente à casa no nosso 4º andar alto, um belo salgueiro, pareceu-me estar de acordo. Lembra-me os salgueiros da quinta dos meus pais, hoje deitados abaixo.
Stefan Zweig, o conto Xadrez

Claro que a proibi de me tratar por 'doutora' nem nada dessas coisas cerimoniosas. Que me tratasse por tu como nos velhos tempos, em que estávamos as duas sentadas na mesma carteira a conversar da vida e da morte. E do xadrez que é o destino que jogamos sem saber jogar...
 a Maria Helena

Para mim ela é a minha primeira colega de carteira, a minha companheira de entrada no mundo do Liceu!
 Van Gogh, Outono

Vamos encontrar-nos, lá para o final do mês de Setembro Ainda não combinámos onde nem quando, mas será já no Outono!
Tenho já uma ideia do lugar! 
Depois, depois…digo! E prometo pôr as fotografias no Facebook!

(*) fotos antigas do Cedro da esplanada de Verão, que pedi emprestadas ao blog Largo dos Correios.
(**) Palácio Achaioli, no blogue Diário de bordo

6 comentários:

  1. Comovente, minha Jana. Li agora de manhã em 3 minutos ! Como te lembras dos nomes, de tudo, és invejável. Mas eu sou a tua irmã e não tenho inveja de nada de ti, tenho sim, orgulho ! (Que bom teres reencontrado a tua amiga Helena! Ela já leu o teu blog ?) ADOREI, Jana. COMO SEMPRE.

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  2. Esqueceu-se de dizer o que eram as "Mazagrans", que também tinham asterisco!

    Adorei esta leitura , a história e principalmente o final feliz: reencontrou a sua amiga!

    Depois não ponha só fotos no Facebook, não é justo para quem não tem, (como eu) e que também gostaria de conhecer a Helena. Aqui nesta foto ela é muito bonita. Tem um arzinho malandro e vivaço!
    Confesso: até eu fiquei curiosa para saber que é feito dela! Tem que voltar a esta história e contar qualquer coisinha da actualidade...

    Gostei das suas fotos e das imagens que escolheu.

    Beijinhos e um bom fim-de-semana:))

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  3. Que maravilha ter ficado com tão boas memórias...
    Dos primeiros quatro anos num colégio de freiras, guardo apenas vagas ideias de alguns episódios... poucos.
    Fui para o liceu misto ainda com nove anos, não tinha colegas de carteira... Só tenho boas recordações dos jogos e brincadeiras do recreio. Era a época do ringue...
    Um mês de Setembro muito agradável.
    Beijinhos
    ~~~
    Ps - Também levei um bolero para o exame, branco, tricotado à mão pela mãe, com pompons...

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  4. Maria João, sempre me emociono ao lê-la. Sinto a sua escrita pontuada com fios de ternura! Fico com a alma macia e os olhos sempre húmidos.. Enorme beijinho

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  5. Tenho a certeza absoluta que deixei aqui um comentário...não sei o que pode ter acontecido...

    Já li e reli este post. Gostei muito da leitura. A sua colega de carteira era muito bonita.

    Beijinhos e um bom fim-de-semana.

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  6. Emoção do começo ao fim, que delícia esta história, em todos os seus detalhes. Não é uma postagem para se ler uma única vez. Olhe Maria, as lágrimas lavaram os meus olhos.

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