quarta-feira, 5 de junho de 2019

Tantas saudades do meu Tio! Deixo esta recordação..


O casamento do meu tio

Para a tia Nina, com muito amor, esta recordação

 
O meu tio Fausto era o único irmão da minha mãe que se chamava Zélia Sofia. Sempre me interroguei por que razão os meus avós lhes deram estes nomes um pouco diferentes do comum. Ideias do meu avô, por causa do ‘Doutor Fausto’ de Goethe? E a minha mãe: Sofia, a sabedoria?

Faziam uma diferença de pouco menos de dois anos. Recordo-os numa fotografia que a minha mãe guardava em cima da lareira.
Estavam num carrinho de verga puxado, por um cão que me parecia um São Bernardo. Contava a minha mãe que o cão era muito pachorrento e que tinha uma paciência infinita para as traquinices deles.

Tinham o ar de meninos compostos, a minha mãe com um vestido de rendinhas e fitas e um ar assustado; o meu tio estava vestido à marinheiro.
Mas o olhar dos dois era semelhante e, apesar de muito diferentes no feitio e nas atitudes, tinham muitas afinidades e a amizade que sempre os uniu.
Quando éramos pequenas, o meu tio era esperado  com ansiedade por todas nós. Alegre, brincava sem se cansar, fazia-nos rir com as caretas cómicas que inventava e os seus olhos esverdeados nunca se impacientavam com coisa nenhuma da vida. 
Vivia com a mesma tranquilidade do meu avô, uma pessoa extraordinária de bondade e respeito por todos.
Estive no casamento do meu tio e sempre disso me orgulhei. Tinha quatro anos e foi uma aventura extraordinária essa viagem. Fomos de comboio até ao Porto: os meus avós, a tia Leopoldina, uma prima da minha mãe, a Lena, e eu.
Os meus pais não foram porque tinha nascido a minha irmã mais nova, duas semanas antes, e a mais velha estava doente com um ataque de asma.
Vivi coisas maravilhosas nesses dias que vejo como um dia único que parecia nunca mais ter fim.
Lembro-me bem da loja dos chapéus! Laços, fitas de cetim, alfinetes, flores de seda por todo o lado, e, no meio de tudo, fiquei a espreitar pela janela baixa, de joelhos numa cadeira, a rua cheia de sol, de bulício, de cores bem mais vivas do que  as da minha rua.
Ouvia a voz da dona da loja que era diferente, parecia um pouco cantada, e a da minha avó a responder-lhe, e comecei a sentir-me tonta.
A meio da escolha dos chapéus, adormeci na cadeira e já só me lembro do casamento.
A minha avó ia vestida de azul vivo e tinha um chapéu com um véu da mesma cor; o meu avô vestia um fraque e trazia um chapéu que me parecia enorme.
De braço dado, subiam, com ar solene e comovido, as escadas da Igreja.
A tia Leopoldina, mostrava-se imponente, com no seu vestido de seda  castanha, com rendas no peito, o penteado de cabelos enrolados no alto. A toilette completava-se com o chapéu - que recordo ter uma pena – e o colar de várias fieiras de pérolas, bem agarrado ao pescoço.
A Lena ia vestida com um vestidinho simples, ela não era de grandes vaidades, mas os seus olhos inteligentes nunca me deixavam – ela é que ia tomar conta de mim.
Eu levava um vestido de tule azulado claro, vaporoso, cheio de folhos, e umas fitinhas na cabeça. Ia contente, excitada, curiosa. Nunca viajara até tão longe. Ao Porto! Tinha deixado os meus pais em casa com as minhas irmãs, ia sozinha à guarda dos avós.
De repente, surgiu a noiva, linda, cheia de vida, risonha, de flores brancas nos  cabelos mais as suas damas de honor.

O vestido era de tule e seda e tinha uma cauda muito comprida. Segundo me contou muitos anos mais tarde, teria levado quase cinquenta metros de tecido.
E eu, encantada com aquela maravilha da cauda, levava o tempo a segurá-la mesmo quando não era preciso.
Agora, vejo a noiva numa fotografia, no jardim, com jovens bonitas à sua volta e eu, à frente, preocupada com uma pontinha do vestido bem agarrada na mão e a outra mão espalmada na barriga.
O meu tio estava de fraque e cartola debaixo do braço. Muito elegante, pensei eu.
Lembro pessoas que não conhecia e que eram simpáticas,  riam muito, tinham lindos vestidos, com bordados e rendas, e giravam à volta da mesa cheia de doces, bolos, amêndoas, rebuçados e flores.
Eu andei a espreitar as salas todas, corria pelos corredores saltitando com os meus sapatinhos brancos novos e ia ter à sacada da grande janela, com uma protecção de ferro forjado.
Levava as mãos cheias de rebuçados e bolinhos embrulhados num papel fino, e deitava-os para a rua, por cima do parapeito.
Debaixo da varanda tinha-se reunindo um grupo de miúdos, que andavam a jogar à bola ali perto, e olhavam para cima, para mim, à espera das guloseimas que eu deitava lá do alto. Sentia-me feliz. Eram meninos como eu, mas não tinham a sorte de terem uma festa assim bonita como a minha, onde podia fazer o que quisesse.
Quando a festa acabou, não sei para onde fui, ou o que aconteceu: tinha adormecido num sofá.
Ainda hoje me parece estar a ver os meus tios, depois de casados, e pétalas de flores brancas a caírem sobre a cabeça deles.

Ou talvez tenha imaginado que os vi, então. Imaginei-os tal como estão na fotografia que a tia Nina guarda em cima da cómoda, à entrada da casa. Muito bonitos, os dois, com aquele sorriso alegre: o sorriso que lhes vi sempre.
Tudo o resto esqueci completamente, cansada como estava ao fim de um dia tão especial, tão diferente, tão aventuroso para mim.
Não recordo a viagem de regresso, nem a chegada a casa, tudo se confunde numa nebulosa em que só via cores, as flores a tombarem por todos os lados e a mesa e a toalha bordada, cheia de coisas boas.

Ah! Recordo sim os rebuçados que deitei àqueles meninos lá do alto da janela.
A verdade é que nunca me esqueci da noiva tão bonita, no seu vestido branco, de cauda longuíssima e um véu com um toucado de flores no alto da cabeça.
Como não esqueci o vestidinho de saia rodada de tule azul e o corpete de seda também azul. Foi o vestido que mais adorei vestir, na minha infância! Foi mandado fazer de propósito para o casamento do meu tio.

Há coisas da vida que não se esquecem e esta é uma das mais antigas e belas recordações da infância. Tinha então quatro anos e adorava viver! A vida é maravilhosa, sim. E o meu tio fez parte dessa vida!



tio Fausto, com os filhos e netos, e com o Manuel


3 comentários:

  1. de chegar ás lágrimas....com tão belas recordações, és o máximo, Jana querida....mil beijos

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  2. Saudações Mrs. Falcão, além marés de terras distante. Boa música, boa leitura, combinação quase perfeita se não fosse a distancia entre elas na senciência de certas pessoa, 'que não é nosso caso'. Abraços e bossa nova em seu dia.

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