O
casamento do meu tio
Para
a tia Nina, com muito amor, esta recordação
O meu tio Fausto era o único irmão da minha mãe que se chamava
Zélia Sofia. Sempre me interroguei por que razão os meus avós lhes deram estes
nomes um pouco diferentes do comum. Ideias do meu avô, por causa do ‘Doutor
Fausto’ de Goethe? E a minha mãe: Sofia, a sabedoria?
Faziam uma diferença de pouco menos de dois anos. Recordo-os
numa fotografia que a minha mãe guardava em cima da lareira.
Estavam num carrinho de verga puxado, por um cão que me parecia um
São Bernardo. Contava a minha mãe que o cão era muito pachorrento e que tinha
uma paciência infinita para as traquinices deles.
Tinham o ar de meninos compostos, a minha mãe com um vestido de
rendinhas e fitas e um ar assustado; o meu tio estava vestido à marinheiro.
Mas o olhar dos dois era semelhante e, apesar de muito diferentes
no feitio e nas atitudes, tinham muitas afinidades e a amizade que sempre os
uniu.
Quando éramos pequenas, o meu tio era esperado com
ansiedade por todas nós. Alegre, brincava sem se cansar, fazia-nos rir com as
caretas cómicas que inventava e os seus olhos esverdeados nunca se
impacientavam com coisa nenhuma da vida.
Vivia com a mesma tranquilidade do meu
avô, uma pessoa extraordinária de bondade e respeito por todos.
Estive no casamento do meu tio e sempre disso me orgulhei. Tinha quatro anos e foi uma aventura extraordinária essa viagem. Fomos de comboio
até ao Porto: os meus avós, a tia Leopoldina, uma prima da minha mãe, a Lena, e
eu.
Os meus pais não foram porque tinha nascido a minha irmã mais
nova, duas semanas antes, e a mais velha estava doente com um ataque de asma.
Vivi coisas maravilhosas nesses dias que vejo como um dia único
que parecia nunca mais ter fim.
Lembro-me bem da loja dos chapéus! Laços, fitas de cetim,
alfinetes, flores de seda por todo o lado, e, no meio de tudo, fiquei a
espreitar pela janela baixa, de joelhos numa cadeira, a rua cheia de sol, de
bulício, de cores bem mais vivas do que as da minha rua.
Ouvia a voz da dona da loja que era diferente, parecia um pouco
cantada, e a da minha avó a responder-lhe, e comecei a sentir-me tonta.
A meio da escolha dos chapéus, adormeci na cadeira e já só me
lembro do casamento.
A minha avó ia vestida de azul vivo e tinha um chapéu com um véu
da mesma cor; o meu avô vestia um fraque e trazia um chapéu que me parecia
enorme.
De braço dado, subiam, com ar solene e comovido, as escadas da
Igreja.
A tia Leopoldina, mostrava-se imponente, com no seu vestido de
seda castanha, com rendas no peito, o penteado de cabelos enrolados
no alto. A toilette completava-se com o chapéu - que recordo ter uma pena – e o
colar de várias fieiras de pérolas, bem agarrado ao pescoço.
A Lena ia vestida com um vestidinho simples, ela não era de
grandes vaidades, mas os seus olhos inteligentes nunca me deixavam – ela é que
ia tomar conta de mim.
Eu levava um vestido de tule azulado claro, vaporoso, cheio de
folhos, e umas fitinhas na cabeça. Ia contente, excitada, curiosa. Nunca
viajara até tão longe. Ao Porto! Tinha deixado os meus pais em casa com as
minhas irmãs, ia sozinha à guarda dos avós.
De repente, surgiu a noiva, linda, cheia de vida, risonha, de
flores brancas nos cabelos mais as suas damas de honor.
O vestido era de tule e seda e tinha uma cauda muito
comprida. Segundo me contou muitos anos mais tarde, teria levado quase
cinquenta metros de tecido.
E eu, encantada com aquela maravilha da cauda, levava o tempo a
segurá-la mesmo quando não era preciso.
Agora, vejo a noiva numa fotografia, no jardim, com jovens bonitas
à sua volta e eu, à frente, preocupada com uma pontinha do vestido bem agarrada
na mão e a outra mão espalmada na barriga.
O meu tio estava de fraque e cartola debaixo do braço. Muito
elegante, pensei eu.
Lembro pessoas que não conhecia e que eram simpáticas, riam muito, tinham lindos vestidos, com
bordados e rendas, e giravam à volta da mesa cheia de doces, bolos, amêndoas,
rebuçados e flores.
Eu andei a espreitar as salas todas, corria pelos corredores
saltitando com os meus sapatinhos brancos novos e ia ter à sacada da grande
janela, com uma protecção de ferro forjado.
Levava as mãos cheias de rebuçados e bolinhos embrulhados num
papel fino, e deitava-os para a rua, por cima do parapeito.
Debaixo da varanda tinha-se reunindo um grupo de miúdos, que
andavam a jogar à bola ali perto, e olhavam para cima, para mim, à espera das
guloseimas que eu deitava lá do alto. Sentia-me feliz. Eram meninos como eu,
mas não tinham a sorte de terem uma festa assim bonita como a minha, onde podia
fazer o que quisesse.
Quando a festa acabou, não sei para onde fui, ou o que aconteceu:
tinha adormecido num sofá.
Ainda hoje me parece estar a ver os meus tios, depois de casados,
e pétalas de flores brancas a caírem sobre a cabeça deles.
Ou talvez tenha imaginado que os vi, então. Imaginei-os tal como
estão na fotografia que a tia Nina guarda em cima da cómoda, à entrada da casa. Muito bonitos, os dois, com aquele sorriso alegre: o sorriso que lhes vi
sempre.
Tudo o resto esqueci completamente, cansada como estava ao fim de
um dia tão especial, tão diferente, tão aventuroso para mim.
Não recordo a viagem de regresso, nem a chegada a casa, tudo se
confunde numa nebulosa em que só via cores, as flores a tombarem por todos os
lados e a mesa e a toalha bordada, cheia de coisas boas.
Ah! Recordo sim os rebuçados que deitei àqueles meninos lá do alto
da janela.
A verdade é que nunca me esqueci da noiva tão bonita, no seu
vestido branco, de cauda longuíssima e um véu com um toucado de flores no alto
da cabeça.
Como não esqueci o vestidinho de saia rodada de tule azul e o corpete
de seda também azul. Foi o vestido que mais adorei vestir, na minha infância!
Foi mandado fazer de propósito para o casamento do meu tio.
Há coisas da vida que não se esquecem e esta é uma das mais
antigas e belas recordações da infância. Tinha então quatro anos e adorava
viver! A vida é maravilhosa, sim. E o meu tio fez parte dessa vida!
tio Fausto, com os filhos e netos, e com o Manuel
de chegar ás lágrimas....com tão belas recordações, és o máximo, Jana querida....mil beijos
ResponderEliminarEu sei, Mané! Um beijo
EliminarSaudações Mrs. Falcão, além marés de terras distante. Boa música, boa leitura, combinação quase perfeita se não fosse a distancia entre elas na senciência de certas pessoa, 'que não é nosso caso'. Abraços e bossa nova em seu dia.
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