Herman Melville à esquerda (óleo de autor que desconheço)
Venho
lembrar um livrinho precioso que fala do mal de viver, da solidão e do sem
sentido da vida. Trata-se de “Bartleby”, escrito por Herman Melville (1), em 1853, e
publicado, mais tarde, com outros contos em The Piazza
Tales.
Melville
era um grande escritor do qual se recorda sobretudo “Moby Dick”, a Baleia
Branca, mas Herman Melville escreveu muito mais do que isso – se bem que “isso”
já fosse suficiente para mostrar que era um grande escritor.
Ninguém que tenha
lido o livro esquecerá comandante Ahab e a caça à baleia Moby Dick. Como se se tratasse da luta eterna e até à morte, do Bem
contra o Mal, tema que aparece recorrente na obra de Melville. E lembro a bela novela "Billy Budd, o Marinheiro".
Voltemos,
porém, à história que aqui me trouxe. “Bartleby” é uma história estranha, cujo
personagem principal, um anónimo escrivão de um escritório de advogados, é uma
figura invulgar: praticamente não fala, quase não come e quase não faz nada. De
facto, quando solicitado a fazer uma tarefa - que não seja o simples trabalho
de copista para que tinha sido contratado - limita-se a responder: “Prefiro não fazer”.
A
frase “I would prefer not to” passa a
ser a sua resposta a qualquer pedido, ou ordem, do advogado – o narrador da
novela - para quem trabalha.
Vive
na negativa, fechado num mundo seu que não existe para os outros, recluso – ou
excluso?-. senta-se todas as manhãs, à secretária virada para a janela de onde
se avista apenas um muro e copia, copia até o escritório fechar.
Para
onde vai? Onde vive? Ninguém sabe. Sairá do escritório para comer ou beber uma
cerveja no intervalo do almoço? Nunca sai e ninguém o vê comer.
Num
fim de semana, o patrão ao passar pelo escritório descobre que, afinal, Bartleby dorme ali. A
sua vida de solidão emociona o chefe de Bartleby. Sente pena por um lado mas
irrita-o ao mesmo tempo saber que Bartleby abusara da sua confiança.
Wall Street, hoje
O
centro da Wall Street, de noite e aos
domingos, é vazio e a cidade é desoladora – “como uma cidade fantasma”. Por isso o narrador escreve que esta “era a história do homem mais estranho que
conhecera”.
Estranho,
sim, pela sensibilidade excessiva, pelo isolamento voluntário, pelo silencio.
Mais
tarde, soube-se que o jovem Bartleby trabalhara antes nos Correios, no Dead Letter Office, a secção das “cartas
perdidas” - aquelas que nunca chegavam ao destino e eram destruídas. Talvez viesse
daí a sua enorme melancolia - causada pela consciência da efemeridade de tudo.
A
acção passa-se em 1853. No entanto, podia passar-se no mundo moderno, neste
nosso tempo de solidão e de indiferença.
Bartleby
é considerado a figura do absurdo “avant la lettre”, antes do “absurdo” de Franz
Kafka (1883-1924) ou de Albert Camus
(1913-1960, Prémio Nobel em 1957), e
do próprio existencialismo em que se
inspiram. (2)
Lembra
personagens “absurdas” de Gogol de “O Nariz”, ou de Fedor Dostoievsky d’ “O
Duplo” ou de “Os Possessos”.
Bartleby simboliza o homem perdido num mundo
de que não se sente parte integrante, no qual não se insere. Sozinho, para ele
a sociedade e o mundo são absurdos - não o entendem e não têm para ele, também,
qualquer sentido.
“Qual o sentido da vida se a morte é o fim do
Homem?”, perguntou o grande Tolstoi.
Bartleby
está vivo, como se estivesse morto, com pessoas à volta que nem vê, nem o vêem,
na cidade que o rodeia, enorme e fria.
O
narrador termina a história murmurando: “Oh!
Bartleby! Oh Humanidade!”
A
novela “Bartleby” apareceu publicada, anonimamente, na revista americana Putnam’s Magazine, dividida em duas
partes.
A primeira parte surge em Novembro de 1853 e a segunda em Dezembro do
mesmo ano. Em 1856, como escrevi acima, a novelinha é de novo publicada
com outras histórias de Melville no livro intitulado The Piazza Tales.
Procurem
o livro, Bartleby. E poderão seguir o desenrolar desta novela imprevisível, cheia de humor e ternura.
(1) Herman Melville, escritor norte americano. Nasceu em 1821 em Nova Iorque e em Nova Iorque morreu em 1891, completamente esquecido por todos, depois de ter sido um autor de sucesso.
(2) NOTA SOBRE a chamada Teoria do Absurdo –ou Absurdismo. É uma filosofia relacionada
com o existencialismo e com o nihilismo. As ideias do filósofo
dinamarquês pessimista Soren Kierkgaard terão dado origem à filosofia do
Absurdo.
Também Franz Kafka (Praga 1883-1925),
escritor checo de origem hebraica, fala do mesmo absurdo, no início do século
XX.
Em 1920, Kafka entrega uns papéis ao seu
amigo Max Brod pedindo-lhe que os destrua. Mas Brodd acha que os tem de publicar e assim aparece, em 1925, depois da morte de Kafka. “O Processo”.
Neste livro refere-se a vida absurda de Joseph K. Vive numa atmosfera claustrofóbica e
distópica onde nada existe com algum sentido
ou explicação. As suas perguntas e dúvidas sobre a sua situação ficam sem resposta.
Da
filosofia do Absurdo é Albert Camus (escritor
e filósofo francês nascido na Argélia) a figura mais marcante.
“Le
Mythe de Sisyphe” (*) é o livro em que mais se sente consciencializada a sua
teoria.
O Homem procura o sentido para a vida, procura a unidade e a clareza
num mundo desprovido de Deus e eternidade. Conclui que tudo é absurdo, o Homem terá de arrastar toda a vida uma condição
absurda. Deverá recorrer ao suicídio?
Para
Camus, essa condição “exige, sim, a
revolta”. Do mesmo sentimento de absurdidade fala André Malraux, em “La condition humaine” e em “Conquérants”, e a sua resposta para um “mundo sem sentido ao fim do qual está a
morte” vai ser “Felizmente, existe a
Acção!”
(*) O Mito de Sisifo
baseia-se num mito da cultura grega. Sísifo foi castigado pelos deuses a
carregar um pedregulho até ao cimo da montanha – de onde resvala até ao sopé,
tendo de recomeçar tudo de novo.
"Sisifo", por Tiziano, 1549
Gosto muito da forma como conta os livros que lê...já o disse não disse! :))
ResponderEliminarVou ver se compro o livro Bartleby.
Beijinhos e muita saúde:))
É a eterna questão sem resposta alguma. Creio que Bartleby tem muito do próprio Melville, eu pessoalmente emocionei-me mais com este livro que com Moby Dick, que me custou muito ler, confesso. De todos modos passou tanto tempo já disso, que mal recordo as duas leituras. Tenho a memória feita uma passa e a vista também, assim que cada vez leio menos. Cést la vie...Aprecio muito a agilidade mental que conservas! Que continues assim por muito tempo, um beijo grande.
ResponderEliminarObrigada! Sei como compreendes bem tudo!
Eliminar"Moby Dick" gostei muito, há tantos anos quando lia as grandes epopeias! Mas Bartleby é bom sempre ler e reler. Tanto dos nossos dias - e de sempre.
ResponderEliminarAgora estou a ler "Billy Budd,o marinheiro". O último livro que escreveu, em 1888, já com 68 anos (ia morrer dois anos mais tarde!)
Beijinhos
Desapareceram-lhe duas fotos, deste post. A mim também me desapareceu uma do post da Páscoa, mas já a repus. É estranho!
ResponderEliminarJá encomendei o Bartleby.
Beijinhos e bom domingo:))
Já reparei Isabel, nem me lembro o que eram...Talvez houvesse direitos sobre elas. Beijinhos minha querida!
EliminarTenho o livro na edição da Assírio & Alvim, que a Maria João colocou. Fiquei com imensa vontade de o ler. A Maria João tem um dom especial para explicar as coisas e abrir o apetite sobre elas!
ResponderEliminarAgora ando a ler a correspondência entre Jorge de Sena e Mécia de Sena e anteriormente li a correspondência entre Vitorino Nemésio e José Régio.
Beijinhos e abraços, mesmo virtuais.:))
Ler é sempre um remédio para tudo, até para as pandemias! ler repousa-me, faz-me pensar, faz-me acreditar. Foi sempre assim. Jorge de Sena é uma pessoa inesquecível. Encontrei-o em Roma, o Manuel viajou com ele até à Sicília onde foi receber um prémio, em Taormina. Gosto do que escreve. Era uma pessoa muito afectiva e desconfiada de que ninguém o sabia amar e compreender. A Mécia era uma força da natureza, havia quem tivesse medo dela, protegia-o como um cão pitbull! Regio/Nemésio deve ser muito interessante. Beijinhos
EliminarGostei muito deste texto e fiquei com vontade de ler os dois livros aqui referidos - dele só li e há muitos anos Moby Dick, também tenho de o reler
ResponderEliminarum beijinho
Querida Gábi, vale sempre a pena ler Melville. Teve uma vida rica de experiências humanas, nos baleeiros, nos mares, nos portos que ele dizia terem sido a sua Harvard. Culto e inteligente, er um homem bom e uma grande alma, como dizem todos. Por isso se lê sempre bem : é a sua enorme humanidade! Muitos beijinhos. Penso em ti e desejo que tudo esteja bem
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