eu, a Berta, a avó Branca e o meu avô
Nos
anos da infância não pensava na morte, ela não existia para mim. O tempo
passava-se entre a escola, as brincadeiras, correrias, leituras.
Entrara
para o Liceu, os estudos interessavam-me e gostava de ouvir as novidades que
vinham da rua trazidas pela Florinda ou pela Tia Zézinha, irmã da minha avó
materna, quando passavam depois do jantar - ela e as irmãs.
Lá vinha a minha
avó, que se chamava Branca, a tia Leopoldina e a tia Mariquinhas. O meu avô acompanhava-as até à porta da nossa casa, ia ao café ter com os amigos ou ao cinema e vinha buscá-las por volta da meia noite.
O meu avô era um homem bonito e elegante, com uma doçura enorme, incapaz de magoar fosse quem fosse. Era muito respeitado na nossa cidade, ao ponto de os autocarros pararem na rua para ele subir.
Mais tarde, quando já viviam na Vila Branca na serra de São Mamede o avô ia da cidade para a serra, de autocarro à hora do almoço; a avó já tinha o almoço preparado, ele sentava-se à mesa, comia tranquilamente enquanto o autocarro ia dar a volta lá em cima.
O meu avô era um homem bonito e elegante, com uma doçura enorme, incapaz de magoar fosse quem fosse. Era muito respeitado na nossa cidade, ao ponto de os autocarros pararem na rua para ele subir.
Mais tarde, quando já viviam na Vila Branca na serra de São Mamede o avô ia da cidade para a serra, de autocarro à hora do almoço; a avó já tinha o almoço preparado, ele sentava-se à mesa, comia tranquilamente enquanto o autocarro ia dar a volta lá em cima.
vista da Vila Branca
Não era preciso mais nada. Se o avô já estivesse pronto, pegava na pasta e ia apanhar o transporte - mas se ainda estivesse a comer, o condutor dizia à minha avó: "não se preocupe, D. Branca, deixe o seu marido tomar o cafezinho em paz..." E o meu avô despedia-se e lá ia no seu passo vagaroso e com um sorriso.
da janela da minha casa
Voltando aos
serões de Inverno, com a braseira debaixo da mesa, as eram uma forma de irmos conhecendo o que se passava lá fora na cidade, as conversas satisfaziam-nos a
curiosidade natural.
Por vezes falava-se da morte, ou de histórias do “outro mundo”, até de fantasmas, mas tudo pertencia um pouco à imaginação criadora e rica de quem contava e à necessidade de histórias fantásticas de quem ouvia. E a conversa não tinha fim e íamos para a cama mais tarde.
Por vezes falava-se da morte, ou de histórias do “outro mundo”, até de fantasmas, mas tudo pertencia um pouco à imaginação criadora e rica de quem contava e à necessidade de histórias fantásticas de quem ouvia. E a conversa não tinha fim e íamos para a cama mais tarde.
Mas
a ideia de morrer, do sofrimento que podia trazer o desaparecimento para sempre
de alguém amado ou a ideia de o mundo acabar quando eu morresse - era uma coisa
que não conseguia materializar.
Um
dia de manhã, a Florinda entrou pela casa dentro, agitada e muito nervosa: trazia uma
notícia terrível. Sentou-se na cozinha, afogueada, a abanar-se com um lenço e
pediu um copo de água.
Tinha
morrido uma menina que era nossa vizinha. Vivia nas traseiras da minha casa, na
rua da Mouraria, paralela à rua dos Canastreiros. Parece que estava
muito doente mas nós não sabíamos.
Portalegre, João Tavares
A morte estava tão longe de mim, das minhas
preocupações, da minha realidade que se ligava sobretudo à vida.
“Sentira”
a morte apenas nos romances que lia e comoviam-me até às lágrimas, pelo
sofrimento que os seus autores sabiam descrever ao ponto de o tornarem “real”. No
entanto, continuava longe, muito longe o que era morrer.
"Ofélia" do pré-rafaelita Millais
E, de repente, aquela notícia desorientava-me. Não compreendia como podia morrer uma menina que morava perto da minha rua. E lembro-me
dela, uma jovem bonita, com os cabelos loiros e uma pele muito branca. Imaginei-a como a Ofélia do Hamlet - de olhos fechados, linda e cheia de flores em volta do seu corpo afogado.
Mas ela não morrera assim, tinha sido uma doença que a levara para sempre. Vi-a, então, com um vestido branco e uma fita de cetim azul a servir de cinto, no seu jardim, entre as flores da Primavera, como um quadro da grande pintora inglesa Dame Laura Knight. Ou num campo a apanhar flores na Primavera.
Ou pronta para uma festa, a escolher uma flor para se enfeitar. E fiquei muito triste.
Jovem e flores, Laura Knight (1877-1970)
Mas ela não morrera assim, tinha sido uma doença que a levara para sempre. Vi-a, então, com um vestido branco e uma fita de cetim azul a servir de cinto, no seu jardim, entre as flores da Primavera, como um quadro da grande pintora inglesa Dame Laura Knight. Ou num campo a apanhar flores na Primavera.
Ou pronta para uma festa, a escolher uma flor para se enfeitar. E fiquei muito triste.
Pré-rafaelita, John Waterhouse
a minha casa amarela, na rua dos Canastreiros
O quintal do lavrador da Mesquita, o quintal que eu via da janela da
cozinha cheio de limoeiros, dava para a essa rua que descia até ao Rossio.
Nesse bocadinho de rua, vivera aquela jovem a sua curta vida e morrera.
O
que era morrer? Nunca me tinham falado nisso, além das tais histórias contadas
pela tia Zézinha – mas a ideia da morte estava tão distante de mim e era tão
vaga.
Nesse bocadinho de rua, vivera aquela jovem a sua curta vida e morrera.
Amigas, Vittorio Bollaffio
A
morte referia-se sempre a pessoas já velhas, ou doentes, pessoas chegadas ao
fim da vida. Mas
esta menina que eu sabia tão nova, com tanta beleza – por que tinha de morrer? Por que não poderia ter tido a vida dela? Por que não tivera direito a um futuro? A viver ao sol, a ir à praia, ver o céu azul, falar às suas amigas...
Laura Knight , Verão
Andávamos
pela casa silenciosas, não quisemos ligar o rádio nem o gira-discos. Uma
tristeza invadiu-me, misturada de espanto.
Dias
mais tarde, alguém veio deixar em nossa casa uma fotografia da morta,
em que a mãe agradecia o cartãozinho de pêsames que a minha mãe mandara.
Lembro
o rosto bonito, o sorriso, o cabelo loiro separado ao meio e apanhado por
detrás das orelhas.
Arthur Hughes, Pré-rafaelita
Chamava-se Sofia Amélia e nunca esqueci o dia da sua morte. O seu
nome podia ser o de uma heroína de
Camilo Castelo Branco e a verdade é que a recordo com se fosse uma personagem
de romance.
Triste morrer tão jovem e deve ter sido terrível para os seus pais
ResponderEliminarUma história interessante. Quando somos crianças a noção da morte ainda não nos magoa, a menos que nos falte alguém muito próximo. E ao longo da vida vamos mudando a nossa relação com a morte.
ResponderEliminarUm beijinho. Já tinha saudades de a ver por aqui.
Escrevi um comentário, mas pelos vistos não seguiu...
ResponderEliminarÉ interessante o que escreve.
Uma mágoa que tinha na minha infância era a de não ter família na minha cidade. Muitas das minhas amigas e colegas de escola tinham primos e tios e avós e eu não tinha e pensava sempre que adoraria ter.
Esses serões com a sua avó e as suas tias, deviam ser giros.
Beijinhos e saudades:))
Querida Isabel, já não vinha aqui há uns dias, só hoje vi os teus comentários. beijinhos
EliminarGostei muito da aguarela e gosto muito de sobreiros. Bom dia!
ResponderEliminarEmbora não os conheça em pormenor, admiro os pintores citados, nomeadamente Laura Knight e John Waterhouse.
ResponderEliminarAgradeço a agradabilíssima leitura das suas memórias e esse desvendar tocante da morte que, de um modo ou de outro, afecta todos.
Beijinhos, com votos de dias bons.
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