segunda-feira, 18 de agosto de 2025

A Marion e os caracóis


Tenho uma amiga que me conta histórias fabulosas. Verdadeiras. Da vida dela. Não as conta com a intenção de ser engraçada ou de se dar importância, vêm naturalmente à conversa, são espontâneas. Aconteceram. Passaram-se no tempo dela. Ela viu ou ouviu.

Para mim, ela é uma pessoa especial, vem de outro mundo - é  francesa - mas não é por isso - foi porque a sua vida percorreu mundos confusos. Sei que teve uma vida que nunca entendi bem - mas cheia de aventuras -  por Paris, Londres e pelo mundo todo antes de se vir instalar em Portugal.

Conta as coisas e olha-me com espanto, ingenuamente. Ingénua a Marion? Não sei, mas se o fosse era no bom sentido da palavra, das pessoas que são crédulas, que são generosas e que se entusiasmam com a vida mesmo quando ela não corre assim tão bem.

Muito esguia, lembra-me um “folletto” – que é uma palavra italiana intraduzível. Será duende? É e não é só isso. É uma figurinha frágil que anda por aqui e por ali, na sua leveza quase etérea. Mas cheia da sua força.

Uma das primeiras histórias dela foi, aliás, a daquele dia de vendaval em que, leve e etérea, depois de ter girado e girado como uma folha seca sobre si própria, foi projectada ao chão pelo vento.

- Salvou-me um senhor ucraniano - contou-me ela depois - que parou a carrinha de propósito para me ir levantar do chão. E protegeu- me de encontro ao carro. 

Parecia assustada ainda. Continuou:

- E parti três dentes! A porta da carrinha ia voando!

Com tudo o que se vê dos furacões que percorrem o mundo, até me assustei.

- Três dentes? É horrível!

E continua, mudando de assunto de repente:

- Maria João, sabes, adoro a natureza. E os animais. E tu?

Pelas histórias que me conta, sei que é verdade. Além disso, basta ver a cadela velhinha deitada num belo colchão com almofada de cetim cor de rosa. E a conversa, cheia de ternura que faz com ela, elucida-me.

  o falcão

Tem um falcão na parede que bem gostava se lho pedir, mas essas coisas não se fazem. Tem também um gato enorme que pesa sete quilos - esse ainda não o vi. 

Sei que existe pois há dias confiou-me que a mãe vem de França visitá-la e que não quer ficar em casa dela. Vai para o hotel. Por causa do gato de sete quilos.

- Um hotel soturno!

- Ela não quer estar na minha casa, sabes porquê? Porque acha que o meu gato pode comer o mini-cão dela, um chiwawa ou coisa do género. Pesa um quilo só.

Encolheu os ombros como se a tal cadela que a mãe ia trazer fosse um rato minúsculo - e continuámos a conversar. Ela vai-me cortando o cabelo. 

Ah, porque ainda não disse que a Marion é a melhor cortadora de cabelos curtos que conheço! E eu uso sempre o cabelo curto.

Ela vai avisando, séria:

- Não mexas a cabeça, nem um milímetro! E quase relojoaria. Tenho que ver a tua cabeça sempre na mesma posição. É quase matemático. Uma esquadria ou lá como lhe chamam.

Imobilizo-me por uns minutos e ela continua a falar:

- Tens uns pombinhos na varanda, não é? Sabes que eu tive a minha varanda cheia de caracóis?

- O quê? Não acredito!

 A verdade é que me pus-me a rir porque me lembrei de uma história de horror 'hilariante', de Patricia Highsmith que, nas suas histórias de mistério e suspense, é uma verdadeira peste sem piedade dos leitores!

"O mundo dela é “irracional e claustrofóbico”. Lembro-me que era o grande Graham Greene que o dizia, no prefácio aos "Melhores Contos de  Patricia Highsmith" : "entramos naquele mundo com a sensação de um perigo pessoal". (1) 

Alguém leu, por acaso, “O observador de caracóis”? Se não leu, se não tem os nervos fortes, não leia. No início a escritora diz:


“Nada mais insignificante do que um caracol. Mas a vida naquela casa nunca mais foi a mesma. Sobretudo desde a noite em que Knoppert disse:

- Encontrei um caracol na salada e tive pena dele. Fui pô-lo nas flores e nunca pensei que se reproduzissem assim! É verdade que eu os ia alimentando sempre bem com muita alface fresca.”

Eu estava já a rir-me cá para dentro! Lembrava-me da história! Pobre do observador de caracóis que 'era observado e os observava já na cave'.

 A Marion continuava, pensativa:

- Não imaginas! De repente, eram muitos. Acreditas que devo ter tido lá uns trezentos caracóis? 

Achei exagerado mas quem era eu para ter uma opinião? Nunca tive caracóis na varanda.

 Os únicos caracóis que conheço estão no livro da Patricia Highsmith que se chama 'O observador de caracóis'. E não tem nada de bom! Digo que é mesmo um livro cruel.  

 A Marion não parava de falar e eu não lhe falei da Patricia Highsmith. Mas eu estava a pensar que foi o meu sobrinho Zé Manel que me deu esse livro dela - o primeiro foi o "Blue" e ainda outros já do herói-anti-herói "Ripley", todos eles misteriosos e com uma ironia a que eu chamaria "crueldade mortal"!

A Marion continuava a contar.

- O pior é que quando voltei para Paris, a minha senhoria disse-me que eram assustadores. E que decidiu matá-los todos. Telefonou-me a dizer: 

‘Marion, tinhas uma praga de caracóis mas eu dei cabo deles ! As persianas já nem se abriam dum lado."

 Agora era ela que se ria.

- Haha, ela é tão parva! Não podes imaginar.

Fiquei à espera do resto, mas a Marion mudou para outra conversa dentro do mesmo assunto. Ou que ao menos falasse do mar. 

(E eu é que me lembrei nem sei porquê de dois quadros de AKsella Galen Kalelli (1904) extraordinários)

- Um dia no supermercado vi um saco de caracóis do mar, à venda.

Adivinhei que vinha dali mais uma história de caracóis. Fiquei à espera.

- Sabes o que fiz?

- Não.

Mas calculava que os tivesse comprado.

- Comprei-os! E sabes o que fiz depois?

- Não.

Mas também calculava.

- Fui à Praia da Poça ao pé das rochas e deixei-os lá todos. Porque me senti culpada...

Ficou pensativa.

- O que achas que lhes sucedeu? Uma amiga disse-me que tinha dado cabo da vida naquele bocado de mar, porque eles se reproduzem muito.

Claro que não resisti e me pus a rir e claro que os cabelos se mexiam todos.

- Está quieta com a cabeça senão corto-me.

De facto usa uma tesoura mas também ma navalha pequenina japonesa que corta imenso. E cortou-se mesmo. Umas gotinhas de sangue pingaram do dedo mindinho.

- Não faz mal. Estou habituada. Mas agora não te mexas!

- Desculpa.

Entretanto, o telemóvel dela toca, toca.

- Clientes! Posso atender? Não gosto nada de interromper os cortes.

 - Responde, claro!

Quando desligou, protestou:

- É de loucos!

Desligou o telemóvel e disse:

- Custa-me a perceber ainda as portuguesas. 

Encolheu os ombros, olhou para o espelho em frente e disse:

- Percebes isto? Eu digo:  

- Amanhã não posso, está tudo cheio. Só no dia tal à hora tal. 

Parou com a tesoura na mão outra vez e acrescentou:

-E sabes o que me perguntam ainda? 

"Ai, mas tem a certeza? Não pode ser mesmo amanhã?"

Agora olhava para mim, espantada, e dizia-me:

- Se eu não tivesse a certeza, por que é que dizia? 

Muito português, concordei. Já notei esse hábito de “tentar” convencer os outros mesmo depois de saberem que é impossível.

- Sim. É de loucos.

Abanava a cabeça.

- Outra coisa que eu não entendo, vou-te contar. Na quarta-feira, que é a minha folga, saí de casa por causa do gato e a porta fechou-se com o vento. As chaves ficaram lá dentro, em cima da mesa.

- Ah! E o que fizeste?

(Devo interromper aqui para dizer que a Marion é uma verdadeira "protectora dos animais" e que, na sua zona, vai à noite dar de comer aos gatos que estão à espera, pois sabem que lhes leva de comer)

Respondeu, impaciente:

 - Era uma maluca! Fiquei de cabeça perdida! Tive sorte porque a janela estava aberta e a mesa é mesmo ao pé da janela. Fui buscar uma cana ao jardim da vizinha e pus-me à pesca das chaves.

- Tiveste sorte!

- O pior é que, enquanto fazia aquela ginástica toda, passou uma vizinha que me perguntou se podia cortar-lhe o cabelo. Eu só lhe disse: ‘Não vê que estou à procura das chaves?’ 

E já se enervava a Marion.

- Ela não se calava. Isto tem sentido?

Não tinha sentido, claro. Ela estava furiosa e eu ria-me mais porque já ouvira 'clientes' a perguntar isso mesmo.

A Marion continuava:

- Queres ouvir outra história?

- Quero! Adoro as tuas histórias!

- A minha mãe é um bocado pírulas mas tem bom coração como eu. Ouve esta história.

Endireitou-me a cabeça, com a tesoura bem afastada. 

- Um dia entrou um passarinho pela janela da sala Coitadinho. E depois?

- 'Le pauvre' tinha uma perna partida.

- Tratei-o eu. Com um palito de dentes, a fazer de tala. Era pequenino! 

A minha mãe chamou-lhe Gaston. E ficou lá uns dias a bater com a cabeça nas paredes. Sim, le pauvre!

Agora ria-se ela, a pensar na própria história.

Vi os olhinhos divertidos da Marion detrás dos óculos de aros vermelhos muito modernos. Ria-se a pensar já na história do Gaston. Eu imaginava o Gaston. E eu ri-me, claro, a imaginar o que dali viria.

- Já te mexeste!

- Desculpa, Marion.

- Está bem, mas tem cuidado! Olha a tesoura japonesa. 

Interrompendo o que contava disse:

- Acreditas que para ser afiada me levam uma fortuna? Mil euros!

E continuou:

- O passarinho curou-se. E um dia a minha mãe achou que tínhamos de o ir soltar no parque. 

- "Ficar com um passarinho preso em casa não é bonito", disse ela.

E lá fomos as duas ao Parque das Flores. E a minha mãe disse:

-  “Voa, Gaston!”

- E ele voou? 

A Marion riu-se:

- Claro que voou! Abriu as asitas e desapareceu na copa das árvores.

- Ainda bem!

- Ainda bem? O pior foi que a minha mãe se arrependeu logo. Queria o Gaston de volta! 

 Começámos a rir-nos. 

- Qual é o passarinho que quer voltar para casa?

- Pois...

- Mas a minha mãe é maluca e ia todos os dias ao parque e chamava-o ‘Gaston!

Como podia deixar de me rir?  Ri-mo-nos as duas, às gargalhadas, não conseguíamos parar - e ela afastava com todo o cuidado a tesoura japonesa do meu pescoço.

Ai Marion, Marion, minha Marion inesquecível! Ainda agora mesmo voltei a rir-me com a história do passarinho Gaston!

Quando te for ver, tenho de te levar um passarinho de papel e dizer-te que afinal o Gaston quis voltar!

 

Ai Marion, Marion, mina Marion amiga inesquecível. Ainda agora voltei a rir com a história do passarinho Gaston!

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(1) Patricia Highsmith, Fort Worth, Texas, 19 de Janeiro de 1921 - Locarno, Suíça, 4 de Fevereiro de 1995

 


no prefácio aos Contos:

quarta-feira, 5 de março de 2025

Elizabeth Strout " Prémio Pulitzer 2011": Aquelas histórias banais que nos divertem...

 A escritora Elizabeth Strout - que tem muito sucesso desde o livro Olive Bambridge  ( que ganhou o Prémio Pulitzer, em 2011) afirma, confiante:

- Não estou interessada em ideias. Interessam-me as pessoas, falar de pessoas, de vidas, de relações humanas. Coisas pessoais.

 - Costumam chamar-lhe uma escritora de personagens? 

- Considera que isso é verdade?

-Sim, sou.  Porque acho as pessoas infinitamente mais interessante do que o resto, têm tantas possibilidades dentro delas. Não se. gastam. As histórias parecem repetir-se - mas são sempre interessantes e acabam por ser diferentes.

E acrescenta:

 

- Por isso é que começo sempre com uma personagem e acabo com uma personagem. Não estou especialmente interessada em ideias. Interessam-me sobretudo as pessoas. No fundo as ideias vêm das "pessoas.” 

Depois resolveu escolher uma personagem para uma série televisiva e teve o bom gosto de escolher a grande actriz americana Frances McDormand casada com um dos Irmãos Cohen e famosa pelo filme deles, "Fargo".

 
Frances McDormand

E eu acho que ela tem razão! O que acham? "Pessoas", gentes?, é isso mesmo: banais mas inesquecíveis!

Vou ler!
https://www.publico.pt/2025/02/21/culturaipsilon/entrevista/elizabeth-strout-nao-interessada-ideias-interessamme-pessoas-2123029



sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

A MINHA ILHA PERDIDA


 Tive uma casa na Ilha de São Tomé. Nessa casa conheci o pôr-do-sol dourado, a penumbra súbita antes do crepúsculo da noite chegar, as chuvadas que irrompiam na tarde com os relâmpagos e os trovões súbitos depois de um dia de sol.

Tive um jardim e via as flores, as árvores e as plantas da janela do meu quarto, ao acordar. As flores que nasciam da noite para o dia, as plantas cresciam depressa e o delicado arbusto do papiro punha-se a dançar no vento da tarde.

As rosas de porcelana, os ‘bicos de papagaio’ ou heliogónias e a linda flor branca da árvore do café. A planta do chá capim, chamado chá do Gabão ou citronelle,  que plantara no quintal e perfumava tudo.

Amei o cheiro da terra molhada e das flores e dos frutos. E os meus olhos encantavam-se no meu jardim com cores que nunca vira.

Recordo a goiabeira e o cheiro intenso das goiabas, vejo a árvore da fruta-pão altíssima cheia dos seus frutos verdes, redondos e enormes e a planta

 

do café mesmo à entrada da casa.

E também  o desenho dos coqueiros inclinados para um lado, cheios de cocos, parecia-me às vezes no poente um desenho esboçado a tinta da China.


Gostei das gentes que conheci e das terras e dos passeios que demos pela ilha. Dos mercados - o velho Mercado Central e o novo, o Mercado do Ponto que vi ser construído e onde dancei a “ússua” na noite da sua inauguração. 

Ou o pequeno mercado do Pantufo, ao ar livre, logo à saída da cidade no caminho de Santana

 

Ao lado ficava a loja minúscula que vendia de tudo e se chamava "Mundo já vê".

Por isso gostaria de vos contar-vos o que senti quando cheguei a São Tomé e como me senti atraída por aquela terra tão longínqua.

Recordo:

O avião começara a baixar sobre a ilha de São Tomé. Sentada no meu lugar, ao lado da janela, com as mãos fazendo concha sobre os olhos, eu procurava ver a terra. Apenas a escuridão em volta. 

 

 De repente, as luzinhas brilharam por toda a parte no chão criando uma estrada. Respirei fundo.

 


Passados longos momentos as portas abriram-se e desci as escadas do avião, recebendo no rosto uma golfada do ar quente e húmido, denso e perfumado, que cheirava a terra húmida e que sufocava. Respirei o ar pesado, o peito doía-me. O suor molhava-me a testa e descia-me pelas costas.

 

Fora, a noite era negra. Estávamos na estação das chuvas e sentia-se muito forte no bafo da noite o perfume enjoativo dos frutos maduros, o cheiro da canela e das flores.

 

Olhei tudo numa curiosidade imensa. No largo da aerogare, vi as flores brancas das magnólias perfumadas, as sebes de ‘ibiscos’ cor do chá, os troncos duros e fibrosos das rosas de porcelana. 

 

Veio um motorista pegar-me nas malas e arrumou-as no carro. Recostei-me no cabedal gasto dos assentos e abri a janela procurando um pouco de frescura inexistente e fiquei de olhos presos nas praias de areia branca, nas filas de coqueiros inclinados para o mar a ouvir os ruídos estranhos da noite.


Na escuridão, de repente o fulgor de uma baía de contornos delicados suavemente iluminada pela lua amarela, com o reflexo dos barcos parados, baloiçando-se lentos nela, a escuridão das águas negras, e a espuma das ondas a brilhar numa lâmina de luar. 

 

Olhei, fascinada: era a baía de Ana Chaves. O táxi continua a andar na noite e eu viro-me para a ver através do vidro sujo, abaixo do recorte da floresta, as primeiras casas baixas à entrada da cidade.

 

E o carro segue o caminho que rodeia a baía em direcção ao centro da cidade. Do meio da noite entre o mar e a estrada surgem árvores gigantescas, com as grossas raízes retorcidas à flor da terra, ao lado de uma balaustrada branca que corre ao longo da água.

 

Estava em África. Em São Tomé, quase sobre o risco do Equador que eu sabia passar por cima do Ilhéu das Rolas.

 

Com o tempo foi a descoberta de um mundo de beleza e de simplicidade. De praias de areia fina e branca onde as árvores desciam até ao mar.

 

De pescadores que deixavam as redes a secar em cima dos barcos elegantes feitos num só bloco - cavados no tronco da enorme ‘ocá’ – árvores que são por vezes centenárias.

 

Nunca mais poderia esquecer esta terra, nem os amigos que por lá fiz durante cinco anos da minha vida. 

Nem aquela casa.

 

Sabia que não esqueceria nunca também a arte dos pintores são-tomenses; 

nem os artistas que trabalhavam a madeira ou a tartaruga; 

nem o estranho teatro da 'Tragédia do Tchiloli’, no Riboque, que o Professor João preparava para nós com os pequenos alunos da escola, de teatro, grandes actores já.

 

o Riboque

Passados tantos anos, lembro com muita saudade os amigos desaparecidos - a poetisa Alda Espírito Santo e o Senhor Semedo, grande companheiro desses anos - amigo com quem falava como se meu pai fosse.


D. Alda do Espírito Santo
 
a Dáy
 

Penso em todos os que acompanharam a minha vida desses anos, a começar pela Dáy menina que conheci com nove anos que deixei com catorze.

 
o Nini

 a Milly e o Miki
 
E a minha cozinheira Milly, mãe dela, e os outros filhotes: o Nini e o Miki. E a Adelina e a Diamantina, minhas lavadeiras e amigas, por onde andam? Nunca mais os verei? Mas como esquecer?”