sexta-feira, 18 de maio de 2018

Lembrando a Florinda, que faria anos hoje…


Quem conheceu a Florinda nunca a esquecerá. Lembro-me dela desde os meus quatro ou cinco anos. Sei que foi para casa dos meus pais quando a minha irmã mais nova tinha seis meses, por isso é fácil fazer as contas: eu tenho mais quatro anos do que a minha irmã.
Alegrete, hoje

Ela tinha dezassete anos e vinha da vila de Alegrete onde o meu pai fora médico alguns anos e onde deixara saudades.

Não sei quantos anos faria, mas lembro-a com saudade. Morreu cedo, com um cancro de estômago, estava eu já a viver em Roma.
As datas confundem-se e já não existe quem me diga os tempos certos mas não importa. 

A Florinda viveu em casa dos meus pais durante toda a minha infância e adolescência e marcou-me essa jovem mulher, ávida de cultura e de conhecimento, que amava a beleza, em todas as suas formas.
Com um temperamento sensível, estava sempre pronta a captar tudo o que a interessasse. A beleza era uma dessas coisas.

“O que é o Belo?”, pergunta Baudelaire, em “Le spleen de Paris” e diz:“Encontrei a definição de Belo, do “meu” Belo. É algo ardente e triste, um pouco vago, que deixa lugar à conjectura..”

Sempre soube que a Florinda era capaz de entender este conceito de Belo. Porque havia espanto nela, entusiasmo, surpresa agradada, algo de ardente e certa tristeza.
A Florinda tinha a sua beleza especial, interior, detrás do olhar melancólico e observador, atenta a tudo. Era alguém com muita sensibilidade e inteligência.
Com a sua terceira classe mal preparada, sabia claro ler, escrever e contar. Mas a situação dos pais pouco mais lhe permitira.
A morte da mãe deixara-lhe um desgosto e um vazio imenso. E o pai, sem mulher nem ninguém que lhe desse ajuda, teve de por as três filhas a servir, palavra dura que nunca expressará devidamente o que esse estatuto era e permitia.
Recordo as palavras da Adélia, sua irmã mais nova, me confessar: “O dia mais triste da minha vida foi aquele em que saí da minha casa para ir servir”. Dela como nossa.
A Florinda queixava-se pouco dessa condição. Penso, no meu coração, que talvez por ter sido tão amada por nós todas não tenha sofrido tanto: aquela era a “nossa casa”.
Não pôde ir tão longe quanto deveria e poderia, mas quis melhorar-se a si própria, aproveitando o que estava ao seu alcance.
Absorvia, como uma esponja de verdade, tudo o que era cultura e educação à sua volta.
Naqueles tempos e na sua situação, podia dizer-se que, a seu modo, era uma mulher culta.
Alegro-me que fosse em casa dos meus pais e, mais tarde na nossa casa, que ela tenha tido acesso a outras coisas que apreciava.
A Florinda era muito mais do que vou contando nestas páginas que lhe quero dedicar.
Havia, nela, o encanto pela beleza, a cultura, a música. Os artistas, a Literatura e a Arte em geral, exerciam sobre ela um grande fascínio. Deslumbrara-se desde muito nova com reproduções de quadros do Impressionismo que os meus pais traziam de Paris. Gostava do pintor Renoir e encantava-a o quadro “Les amies” que era também um dos meus preferidos.
Pierre-Auguste Renoir "Les amies"

Outro das suas gravuras preferidas era “Les Amoureux” de Picasso que depois de uma dessas viagens a Paris foi colocada na salinha do piano.
Como sei que um dos momentos grandes da sua vida foi quando conheceu o poeta José Régio. 
Picasso, "Les amoureux"

A Florinda gostava muito de ler e um dos seus escritores preferidos era Júlio Dinis. A Morgadinha dos Canaviais era um livro que amava e a deixava sonhadora. 

A Morgadinha, personagem favorita, tocava-lhe no coração a coragem, a finura e a generosidade; no entanto, sabia apreciar o humor e a bonomia das páginas d’ “As Pupilas do Senhor Reitor” ou de “Os Fidalgos da Casa Mourisca”.

Recordo, como se fosse hoje, estarmos a ouvir, no rádio da cozinha, os episódios desses folhetins.

Eram eles o equivalente das telenovelas de hoje mas com a vantagem de assentarem em textos de nível. Também me lembro d “A Mulher de Branco”, de Wilkie Collins, outro folhetim radiofónico. “Ouço” ainda o locutor anunciar, com voz tétrica o título -já que se tratava de um romance policial.
Foi o meu primeiro livro policial pois fui logo comprar o livro - saído nas Edições Romano Torres - à loja do Senhor Tiaguinho, na rua Direita, que era a nossa livraria preferida porque a mais completa na escolha.
A Florinda gostava de aprender tudo e imitava, com coragem, tudo o que nós fazíamos, desde, às leituras  até à vontade de  andar de patins e, mais tarde, quis aprender inglês connosco quando entrámos para o liceu - e tinha o seu caderno.
Sentávamo-nos em redor da mesa da cozinha que, no Inverno, tinha por debaixo da camila de fazenda, uma braseira. 
Ficávamos perto da chaminé, aproveitando o calor do fogão de lenha. Primeiro éramos só eu e a minha irmã mais velha, mais tarde acompanhava-nos a irmã pequenina.
As brasas meio acesas e as cinzas quentes tornavam confortável o ambiente da cozinha. Aqueciam as costas da Florinda que se sentava de costas viradas para o fogão.
o meu pai e a minha mãe, à direita
o meu tio Zeca e o meu primo Marco, à  esquerda

Havia também grandes conversas sobre a vida! É nessas conversas que aparece sempre o meu primo Marco, que já andava no liceu e gostava muito de nos ensinar coisas científicas e me emprestava muitos livros do Júlio Verne.
Numa tarde, vimos as cegonhas através da janela da cozinha. Passavam sempre, porque havia, perto da estação, muitas árvores com ninhos de cegonhas! 

A Florinda disse, apontando com o dedo: Lá vêm elas trazer algum bebé aqui perto…”

A minha irmã mais velha perguntou, logo:
- Mas afinal de como é que vêm os bebés, Florinda?
- Bem, há muitas maneiras, disse ela com um ar compenetrado.
-  Há os cestinhos e há outras coisas. Mas elas preferem trazer os meninos numa fralda dobrada, com um nó, bem seguras no bico.
- De verdade?, perguntei eu.
- Bem, eu ouvi dizer que é o que elas gostam mais…
O Marco espreitava-nos, por detrás do livro que fingia ler, com um olhar desafiador e irónico.
- Não é verdade!
E ria-se. Não lhe ligámos atenção nenhuma. Ele gostava de criticar as nossas brincadeiras e queria explicar-nos tudo cientificamente.
Era um aluno estudioso e gostava de nos ensinar. Recordo bem que foi ele que me emprestou os livros do Jules Verne - que tanto me interessaram.
A minha irmã não aguentava a curiosidade e insistiu:
- Mas como? Explica lá, Florinda?
- Há cestinhos e há outras coisas. Eu acho que elas preferem trazer os meninos nas fraldas, bem seguras no bico, é o que elas preferem.
O Marco ria, agora sem se esconder.
E ela continuou a cortar o feijão verde, ou a descascar ervilhas, impassível, sem nos olhar. A Florinda nunca estava parada, a não ser quando, depois do almoço, 

***
Vem-me uma grande nostalgia ao lembrar também as noites de Inverno da nossa infância. A imaginação poética da Florinda ia para além do imaginável - uma imaginação poética, cheia de figuras lendárias, de fadas, de príncipes e princesas.

Como se foi ela lembrar do burro cor-de-rosa? Fazia parte da memória inventada de outra vida em que fora personagem, num mundo extraordinário. Era um conto que escolhia para nos fazer estar quietas. Eram as histórias que preferíamos. Ela ia descascando batatas, cenouras, ou ervilhas e lavava-as no alguidar de barro que tinha ao lado.
- Eu era uma princesa, dantes – começava, com o olhar perdido na lonjura, para lá de nós e da cozinha.
- Sim, eu era filha do rei de Alegrete e tinha muitas terras. Nesse reino, havia sol o dia todo e à noite no céu escuro viam-se brilhar as estrelas como vidrinhos! Ou, melhor, pareciam cristais…
- Que bonito!, pensei.

Contentes, mostrávamos sempre espanto, apesar de a termos ouvido tantas vezes contar essa história. A Florinda sabia acrescentar pormenores inesperados e nunca sabíamos bem o que vinha a seguir. A mesma história, contada várias vezes, nunca era igual. Nós seguíamos as suas palavras, encantadas, presas por um fiozinho de prata que nos levava a ver tudo o que dizia.
Renoir "A primeira saída"
- E eu vestia-me de azul...
- Sim, era filha do rei e tinha vestidos de seda, sapatinhos de cetim, brincos de oiro e esmeraldas. E anéis e colares de pedras de várias cores.
Estávamos de olhos muito abertos. Ela disse, a olhar para nós: 
- Não sabiam, pois não? E tinha também um burrinho cor-de-rosa.
Era a primeira vez que falava do burrinho cor-de-rosa e entreolhámo-nos e ver se seria verdade.
- Um burro cor-de-rosa, Florinda?, perguntou a minha irmã. Um burro de verdade?
A Florinda explicou, tranquila:
- Os reis podem ter os burros que quiserem. De todas as cores. São reis…
- Não há burros cor-de-rosa!, pensei para mim, a decidir se ia acreditar ou não.
Renoir "Meninas a ler"
- E eu vestia-me de azul...
A minha irmã virara-se a ver o que eu pensava, mas eu não dizia nada. De olhos perdidos, imaginava já o burro cor-de-rosa, os olhos doces do burrinho, o pêlo macio por onde devia ser bom passar a mão. A imaginação dela era tão forte que nos contagiava. Ia enriquecendo a história de pormenores maravilhosos. 
Ao fim e ao cabo, o que me importava se era verdade? Era a Florinda que contava e ela sabia tantas coisas…
Acabei por concluir: “Se calhar há burros cor-de-rosa!”
E sorri, contente, enquanto a Florinda continuava:
- Tinha as orelhas cinzentas o meu burrinho. Pareciam mesmo de veludo. E uns olhos azuis muito abertos e as pestanas grandes.
Olhou-nos de lado, a ver o efeito das suas palavras. Acreditávamos?
- De olhos azuis?, perguntou a minha irmã, encantada. Ela era uma sonhadora, que tinha criado para si própria uma figura, a Lili Viloíno como lhe chamava, que tinha existência só para ela.
E nós acreditávamos em tudo.
A Florinda ia dizendo:
- Tudo era diferente, nessa altura. Eu era loira, penteada aos caracóis. Era uma princesa muito bonita…
- E depois, Florinda?, perguntou a minha irmã.
- Todas as manhãs passeava no meu burrinho, vestida de branco, com uma capa azul esvoaçante e uma coroa de flores na cabeça.
- E depois, Florinda?
Agora era eu que perguntava.
- Conta mais coisas!
Ela entristeceu e encolheu os ombros como se o que ia contar a seguir fosse culpa do destino inevitável.
- Um dia o meu pai quis voltar a casar! E passei a ter uma madrasta muito má. Era uma bruxa com grandes poderes e uma varinha mágica negra, com a qual podia destruir tudo. E…
Calou-se, a ver a janela que dava para o jardim dos limoeiros.
- Oh Florinda, disse eu, triste. O que te aconteceu?
Adivinhávamos o que estava para vir.
- Um dia, tudo acabou.
- Como?, perguntei, querendo guardar alguma esperança.
- Pois, meninas, a verdade é que a bruxa má ‘tocou-me’ com a varinha mágica e lançou-me um feitiço. E assim foi. Acabou a minha bela vida, os vestidinhos de seda, os sapatos de cetim. Tudo!
- Ai, Florinda, coitadinha!
Olhávamos para ela, com angústia.
- E fiquei sem o burro cor-de-rosa. Já não sou princesa, nem loira, nem bela…
Não tínhamos coragem para dizer nada. Claro que não havia dúvidas que o burrinho tinha existido!

Doutra vez, com a sua mania de aprender, viu-nos chegar com os patins debaixo do braço, a rir. 
Tínhamos estado a patinar nessa manhã na garagem dos meus tios, na casa da Boavista.
- Eu também quero experimentar!
E ninguém mais lhe tirou a ideia da cabeça. Sentou-se numa cadeira e atou as fivelas dos patins, levantou-se e quis começar a patinar.

Grande aflição a sua, aos “ais”, agarrada com força à mesa; depois quando soltou as mãos lá foi, toda inclinada para a frente, as rodas dos patins incontroláveis, a deslizar até ao lava-loiças. Ali ficou abraçada à pedra do poial, a tremer, os pés, descontrolados a baterem, ora um ora outro, no armário de madeira. 
Confesso que nós rimos dela às escondidas, antes e a irmos ajudar a tirar os patins. Senti-lhe o coração bater no peito, com força.
Ela disse, sem desanimar: "Amanhã experimento outra vez!"
Mas nunca mais experimentou.
Jarra de flores, de Odilon Redon

Hoje recordo-a e é como se a visse. Deixo-lhe estas flores no seu dia de anos.



sexta-feira, 11 de maio de 2018

HENRY DE MONTHERLANT: RELENDO “O CAOS E A NOITE”


Tenho uma recordação especial que me prende a este romance de Henry de Montherlant : “ajudei” o Manuel a traduzir livro “Le Chaos et la Nuit” (publicado em 1963), para a editora Ulisseia, em 1977. 
Enquanto ele traduzia, e eu ia lendo, página a página, e descobrindo, cada dia, maior encanto naquelas páginas que eram para mim uma descoberta e a consciência de um certo desencanto e desilusão do escritor. De facto, suicida-se dez anos depois.
Nestes dias tenho relido "O Caos e a Noite" e vou consultando “Montherlant par lui-même”, livrinho de uma colecção fundamental para se “completar” o estudo de um autor. Este volume foi organizado por Pierre Spriot, em 1959 (1).
 Nascido em 1896, Montherlant publica o primeiro livro em 1920, “La relève du matin”, editado pelo próprio autor. Em 1924, deixa Paris. Viaja durante dez anos pela África do Norte, Espanha, Itália.
A Espanha atraiu-o de sobremaneira, desde sempre. Admira as qualidades do espanhol, do “aficcionado”, do orgulho, do sentido da honra, do amor à tauromaquia que é, no fundo, o confronto do homem com a “besta”, o touro, o qual pode ser visto como a “vítima” - que é arrastada (involuntariamente) para a "competição" que não deseja e de onde sairá vencedora a morte. Outra das suas paixões era o exercício físico, os jogos.
Montherlant, 1928, esboço de R. Delaunay
Tourada, desenho de Montherlant

Onde se encenará, como num espectáculo, a sua tortura e morte.
Em Março de 1925, depois de ter vivido algum tempo na parte do Marrocos espanhol, e muito tempo em Espanha, escreve:
desenho de Montherlant

“Aconteceu-me que ao fazer uns ”passes” de capa a um jovem touro acabei por ser colhido por uma cornada que me cortou a periferia de um pulmão. (…) Foi depois disso que senti as consequências tardias de uma ferida de guerra (1) causada por estilhaços de um obus - que me atingiram os rins. (…)”
Dessa experiência, de violência vivida, escreverá: “O meu carácter suavizara-se. Na guerra, nos estádios, eu vira a violência de igual para igual: violência sã. 
Na África do Norte, vi-a ser exercida pelo forte - o Europeu- contra o fraco, o indígena. Creio que isso me enojou para toda a vida da violência. E comecei a amar os vencidos.”
Montherlant (fotografia de Brassaï)

No dia 21 de Setembro de 1972, às quatro da tarde, Montherlant, sentado no seu 'maple' desenhado por David, disparou uma bala na garganta, depois de ter tomado um comprimido de cianeto, a França perdeu um dos seus maiores escritores.”
Tinha 77 anos. A morte fora cuidadosamente preparada, como tudo o que se lhe seguiria. Tudo ficou escrito e os documentos necessários preparados. A Claude, seu herdeiro, escreve:

“Mon cher Claude, je deviens aveugle. Je me tue. Je te remercie de tout ce que tu as fait pour moi.(…)”

Creio que é hoje um escritor pouco lembrado, em França. Desconhecido, quase, por aqui…
Em 1952, num disco gravado, Montherlant, diz: “As minhas personagens: não sou nenhuma delas, e sou cada uma delas.” 
Henry de Montherlant, 1922, por J. Emile Blanche 

Nos “Carnets” (1935-1938) escreve: “Conheço muito bem os defeitos dos homens porque os estudo em mim próprio.” (p.204)

Voltando ao livro: nunca me esqueci da personagem principal, Don Celestino Marcilla, anarquista espanhol refugiado em França - figura única no seu género - depois da Guerra Civil de Espanha, é internado num campo no Sul da França. Tivera um papel importante na guerra, amava a sua pátria e muito lhe custara deixá-la para trás, nas mãos do “Caudillo” Francisco Franco.
Paris, Boulevard Montmartre, Camille Pissarro

Do campo de retenção “sobe” até Paris e vive o seu exílio, mais “mal” do que bem – sem nunca se adaptar completamente.
Criada por um francês, nunca “vi” personagem tão espanhola. Mas a verdade é que Montherlant adorava a Espanha que visitava muitas vezes e cujas qualidades de bravura dos espanhóis admirava. O orgulho, a coragem, o afrontar todos os perigos  eram também características suas.
Desenho de Picasso, Tourada

Sempre presentes, a luta entre o bem e o mal, a tourada e a tragédia : toureiro e touro: a vítima. Há na vida de Montherlant um momento em que se afasta dos vencedores prepotentes que tem o poder de morte e tortura sobre  os que vencem  – o  toureiro - e se aproxima dos vencidos –o touro.
Homem e touro, Jean Cocteau

Vai ser com a figura do touro, espicaçado pelas bandarilheiros, perseguidos pelos toureiros, e pelo “matador” até à estocada final - que o herói Don Celestino se vai identificar no momento da morte. Touro e toureiro confundem-se, ora vítimas, ora vencedores...
***
Vive com a filha. A mulher morrera dando à luz Pascualita. A filha que estivera quase sempre em colégios internos, com vinte anos, viera estar com ele.
E toda a acção do romance se centra entre “vida e morte”, “caos e noite” – como no título. 
O “caos” é para ele a vida e a “noite” é o absurdo da morte. Nada de especialmente sério: mas há a tragédia!  
A "noite" é tudo o que precede a vida - e o que virá depois dela, isto é: o ‘não-ser’. A vida e tudo o que nela há de absurdo e indiferença (pior do que o ódio) é o "caos".
A acção do livro situa-se no final da vida de Don Celestino, quando, desiludido, velho, erra raivosamente por Paris à procura de um sentido para essa raiva e insatisfação.
***
Tem dois amigos: Ruiz e Pineda, refugiados espanhóis como ele, mas sente que não o acompanham e sente-se desiludido.
De repente, tudo lhe parece inútil. A começar pelos artigos revolucionários que escrevia para uma revista - e que nunca lhe publicam; desconfia de todos, acha que os amigos se converteram ao fascismo. 
A própria filha lhe parece uma desconhecida, desinteressada dos artigos que lhe passa à máquina, apenas mecanicamente. Pensa: “uma franquista, se calhar”. Evita falar com ela.
Sente-se incompreendido. Ninguém o lê ou publica os seus artigos revolucionários, numa tentativa de se despojar das crenças, ideais e ficar sozinho em frente da própria morte.
Consegue zangar-se com todos, provocando a ruptura por motivos absurdos. Como se a velhice lhe tivesse caído em cima e nada lhe servisse se não a morte. 
Depois de um almoço com Ruiz, em que este é duro com ele, seco, e o recrimina nem ele sabe o quê, acabando por lhe chamar “ideológico retardado”, levanta-se da mesa e nunca mais o procura.
Como vingança daquilo que considerou “a traição” de Ruiz, decide cortar relações com Pineda. 
Atitude paradoxal? Mas Don Celestino é dentro de si um paradoxo de ideais, ilusões e ideologias, descrenças e crenças. Como o seu criador o era, na sua riqueza e complexidade. Nas escolhas e no gosto refinado.
Don Celestino vai fechando portas, afastando-se dos lugares que amava, das pessoas a que estivera ligado…
A ansiedade marca-o, envelhece a olhos vistos, não acredita em ninguém, sente-se ameaçado por todos – que para ele são “franquistas”.
A vida de refugiado começa a parecer-lhe “morna”, sem grandeza. E vem-lhe a saudade da Espanha, das touradas – a memória dele, menino, a brincar às touradas, nas ruas de Madrid. O boulevard Saint-Martin e a vida do bairro tornam-se monótonos, repetitivos, desinteressantes, apertados…
Tourada, Salvador Dali

O desafio é o que resta, é o resultado do descontentamento e da insatisfação. A impaciência do nada à sua volta. Não respeita os franceses, acha-os cobardes. Deles diz: “só sabem dar uma estocada para atacar a fruta!”
Boulevard Saint Martin
Na raiva e no desprezo por tudo, volta ao hábito espanhol de outros tempos: tourear os carros, com a gabardina a fazer de capa, no Boulevard Saint Martin. Desafiar o perigo? Um perigo relativo pois só escolhe carros pequenos…
A ansiedade marca-o, envelhece-o. “Vivo sempre”, pensa ele: “na ânsia do toureiro”. Outras vezes diz, em voz alta: “ Eu sou o touro.”
De repente, surge, inesperado, um pretexto para voltar a Espanha: a herança da irmã que morrera de repente.
O “pessimismo espanhol” - que está na frase de Don Celestino “lo peor es siempre certo” - vai levá-lo à viagem a Madrid, não por causa da herança – mas para procurar a morte. Ele sabe algo trágico o espera. O regresso a Madrid vai ser decisivo : a morte – ou a prisão.
Nas noites de insónia em que imagina a viagem, pensa nela como uma viagem para a morte. 
Como Montherlant escrevera no “Mestre de Santiago”- “Partamos para morrer, sentimento e amor. Partamos para morrer…”, pensa ele.
Aceita o perigo que vier, seja ele qual for. Quer voltar para viver como vivera antes em Espanha: lutando, “vivo”. O momento presente é a paragem total. Sente a necessidade da acção: de afrontar a sua morte. Não há outra saída.
Marca a viagem mas assegura-se que compra um bilhete para assistir a uma tourada de touros de morte.
Começa a viver esse espectáculo como se a morte futura estivesse intimamente ligada à morte que espera o touro, no final da tourada. A estocada final do matador que vai enfiar-se no pescoço e o sangue jorrar até à morte. 
O sacrifício do touro, a luta até ao fim, que iria assumir como a sua própria. É evidente o paralelo entre a morte do touro e a sua: dois lutadores destinados a serem abatidos. Sem qualquer esperança. Porque a morte é inexorável.
 “Parto para morrer, como um homem da minha época”, pensa à noite, antes de adormecer. O sono é pesado e cheio de pesadelos. Fala no sonho, grita, sente que o estão a matar.
Pascualita ouve-o gritar e sente-se gelada de medo. “Será verdade o que o pai diz?” Durante o sono parece estar a fazer a sua defesa num tribunal perante um acusador. Preocupa-se. 

De manhã, pergunta-lhe: “Estás bem?” Ele responde, irónico: “Não. Sofro de insuficiência ideológica.” Ela não o entende, encolhe os ombros. Ele acrescenta: “Avanço passo a passo para um destino trágico".
O seu destino irá cumprir-se em Madrid? É um pressentimento? Para Don Celestino, um pressentimento é sempre trágico…

***
(1)Poeta, ensaísta, romancista, Henri de Montherlant recebe, em 1934, o Grand Prix de Littérature de l’Académie Française  pelo livro “Les Célibataires”. Autor de vários romances entre os quais os do ciclo “Les Jeunes Filles”;


 e as peças de teatro “Le Maître de Santiago”, “La reine morte” (1934, peça inspirada na figura de Inês de Castro, ou “La ville dont le prince est un enfant". Em 1969 é nomeado para a Académie  Française.
(2) “Montherlant par lui-même”, Écrivains de Toujours, Seuil, 1959
(3) refere-se à I Guerra de 1914-1918. Montherlant é ferido pelos estilhaços de um obus, em 1918.