domingo, 22 de dezembro de 2019

A propósito de Cartas... e de José Régio


Há 50 anos, neste dia, 22 de Dezembro do ano de 1969, morreu José Régio. Fecham as "comemorações do 50º aniversário da sua morte? Creio que ele e a sua obra serão sempre "comemorados."
Encontrei o rascunho (de inícios de 1968) e uma carta que enviei a José Régio pedindo-lhe ajuda para a minha Tese.
Frequentava o último ano do Curso de Filologia Românica e escrevia o relatório final para apresentar no Seminário, preparativo da Tese, que eu intitulara “Temática social nos escritores da ‘presença’". Escrevi-lhe, então:

Querido Amigo,
Venho incomodá-lo. Venho pedir-lhe ajuda para a minha tese. Escolhi a “presença” para a minha tese de Licenciatura, dirigida pelo Professor Jacinto do Prado Coelho. Penso intitulá-la ‘“A temática social nos ficcionistas da “presença”’.
Haveria, com certeza, muitíssimas coisas interessantes a tratar, mas parece-me que este ponto tem sobre outros a vantagem de ainda não ter sido tratado (penso que o não foi até agora) – daí julgar que pode ter interesse.”
E a carta terminava, mais ou menos com esta frase:
“Eu conto com o meu Amigo para me ajudar”. 
Podia ser ingenuidade minha, mas a verdade é que pude sempre contar com ele. Era isso mesmo que eu sentia: confiava cegamente nele e sabia que me iria ouvir. Naquele momento e sempre.
Quantas vezes, na lonjura do tempo, ouço a sua voz pausada e nítida. Posso imaginá-lo a passear na sala de aula, para trás e para diante, enquanto nos ditava uma retroversão para francês, cheia de construções difíceis.
José Régio - ou o Dr. Reis Pereira - viveu muito próximo de mim, na minha cidade: eu na Rua dos Canastreiros e ele na Boavista – que não ficava muito distante.
Régio não era apenas o meu professor do liceu - era, também, o amigo do meu pai desde que tinha chegado como professor do liceu a Portalegre e à casa que encontrou “como se fora feita para morar nela”.
Cresci a “cruzar-me” com ele não só nas aulas, ou nas imediações do liceu, mas também nos Cafés, nas esplanadas de Verão, e em casa dos meus pais. Ou em casa dos meus avós, na Serra.
Conhecê-lo teve uma importância que só mais tarde compreendi. Ajudou-me a “crescer”, indicou-me os “marcos” que delimitam e assinalam a nossa passagem pela vida – os marcos de que fala na “Lição inútil ou Carta a um Juvenil Individualista” (nº 14-15 da “presença”, 23 de Julho de 1928).
Posso ouvir a sua voz, apesar de não ser directamente a mim que se dirige mas a mim, também, enquanto jovem que era.
Prometi escrever-te – lembras-te? – no momento em que precisasses de mim. Chegaste à idade em que já se dão passos que decidem. (...) Não creio (nem quero) que as minhas palavras te decidam qualquer coisa. (...) Mas crê, tenho-te observado. Sei que tens em ti possibilidades várias e que és dum estofo rico.
Assim ouso erguer-me na encruzilhada que te disputa: (...) como um marco de pedra, digo-te: “daqui a tal parte, tantos quilómetros...” Talvez isso te ajude a escolheres um dos teus muitos caminhos da encruzilhada. Um dos teus muitos. Que também te não aconselho a escolher qualquer um – mesmo bom – que venha de fora.”
Ajudou-me a reflectir na possibilidade da escolha, de fazer isto e não aquilo, a sentir - do modo que é o meu - aquilo que é o Bem, o Belo, o Único, o Essencial do que acontece nesta nossa breve passagem pelo cosmos.
Naquele tempo, pedi a sua ajuda, confiante. A resposta veio passado um certo tempo e desse atraso se desculpava:
“Já recebi duas cartas tuas a que seria muito penoso não dar sequer umas palavras de resposta. Mas pouco te posso ajudar: Estou cheio de trabalho, “não chego para as encomendas”, tenho muitas vezes de me fazer duro; e creio que já não sou exactamente o mesmo doutros tempos. (...)
Quanto ao plano que me apresentas para a tua tese, parece-me excelente. Terás de realizá-lo conforme as conclusões a que chegues tu própria, -pois mais vale um trabalho ainda incompleto mas pessoal do que um aparente esgotamento do assunto à custa de este, de aquele, de isto, de aquilo… 
Deves ler e reler a presença: Nos seus artigos de teoria está a sua doutrina. E ler ainda, claro, as obras de criação artística dos seus teóricos ou não teóricos.” (Vila do Conde, 5/3/68)
Trocámos cartas durante um certo tempo, pouco mais de um ano, e eu guardo 5 cartas e os dois cartões que me escreveu. E a ajuda – que ele considerava mais “psicológica” do que outra coisa – continuou. Em 27 de Novembro de 1968, escreveu:
uma bela "Pietà", na Casa de José Régio

“Se a minha carta, deficiente como era, te pôde ser de algum auxílio psicológico, até comigo mesmo fico um bocadinho satisfeito.
Quando quiseres ou puderes enviar-me a cópia do trabalho que apresentaste, com afectuosa curiosidade o lerei. E alguma coisa te direi a seu respeito, já que assim o desejas.
Quando quiseres “voltar a incomodar-me”, (sirvo-me da tua linguagem, que não poderia ser a minha…) só terei nisso prazer.

Numa das últimas cartas, em resposta ao meu entusiasmo pela leitura de “A Velha Casa”, escrevia:
“(...) escreveste uma carta bastante longa, que eu sinceramente gostei de ler por vários motivos.... Um deles é que me falavas d A Velha Casa com um entusiasmo que naturalmente me foi muito grato. Considero A Velha Casa uma obra...(ousarei escrevê-lo?) importante não só na minha produção  como até na produção literária nacional. Todavia, exceptuando aqueles raros leitores que, se gostam de entrar nessa velha casa gostam a valer, - essa obra em cujo sexto volume trabalho ainda foi muito pouco lida. Lida – como deve sê-lo.
(...) Já vês como gostei de que tivesses gostado de A Velha Casa e da convivência com os seus habitantes.” (Vila do Conde, 5/5/69)

Seria um bom assunto a tratar: este desamor que ele sentia, por parte dos outros, à sua prosa. E o esquecimento que a sua prosa não merece.
Ler “A velha casa” foi uma aventura enriquecedora em que eu senti “pulsar” o coração do autor, o seu amor pelas personagens. A Maria Angelina, a Clara, o Pedro Sarapintado e o protagonista, Lélito são pessoas vivas que poderia encontrar e com quem teria prazer em falar, trocar ideias, perguntar coisas.
Cinco volumes cheio de gente viva, de sonhos e  de desespero. De desgostos e desilusões. E expectativas. Como é próprio da condição humana, em qualquer lugar do mundo.
Também as suas Novelas e Contos são extraordinárias de humanidade e compreensão.

José Régio morreu no dia 22 de Dezembro de 1969, faz hoje exactamente 50 anos. 
A minha amizade e admiração continuaram, vida fora. Com ele e com os seus livros, aprendi. Régio foi com certeza uma das pessoas de quem mais senti a companhia (e a falta)- enquanto fui crescendo e aprendendo a viver a vida.
Podia sempre ouvi-lo. Bastava reler a “Carta a um Juvenil Individualista”:

Prometi escrever-te – lembras-te? – no momento em que precisasses de mim. Chegaste à idade em que já se dão passos que decidem. (...) Não creio (nem quero) que as minhas palavras te decidam qualquer coisa.”
Sabia que estava “lá” quando eu precisava e, mesmo que não dissesse nada, “sentia” a sua presença. 

Ajudou-me a partir “como ave no ninho” e a escolher a minha vida.
A tal tese nunca foi acabada. Quando José Régio morreu, deixei de me interessar por ela. Começara a trabalhar no liceu de São do Estoril, tinha os meus filhos e outra vida para continuar. 

“Por um momento, as suas mãos ali pousaram,
Como aves no ninho.
Depois abriram-se, e voaram.
Saberão o caminho?”
Fecho com estes versos de um poema (1) de que gosto muito.
Até sempre, grande poeta, meu professor e amigo.

(1)  Poema intitulado “Voo”, in Cântico Suspenso, Portugália Editora, Lisboa, Novembro 1968


segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

VIRGINIA WOOLF, 'O FAROL' E OUTRAS COISAS


Releio “Rumo ao farol”, agora em inglês (To the Lighthouse, 1928). A primeira edição sai, em 1928, na editora Hoggarth que Virginia e Leonard Woolf dirigiam. A capa é da irmã, Vanessa Bell. Vou lendo mais atentamente - em inglês leio mais devagar. 

"O Farol" atrai-me e vou seguindo a evocação das pessoas, com a grande visibilidade que a autora lhes dá. O modo como as descreve e as ouvimos falar, as cores, nítidas, vivas ou assinalando as luzes e sublinhando as sombras, dentro e no exterior das personagens, é notável.

O mar e as ondas – que a fascinam e sempre fascinaram- na tranquilidade e na turbulência e o farol, sentinela luminosa, parecem viver para nós, contemplamo-los ao mesmo tempo que ela.
Do azul vivo à cor rosada do por-do-sol, Os céus - têm tons de aguarelas, são aguadas que vão mudando as nuances e variam conforme o momento do dia ou conforme os sentimentos ou a emoção das personagens.

Sente-se a angústia da passagem do tempo, da ausência e da morte. A história é simples: uma família - os Ramsey- reúnem-se na casa de campo, em férias, com amigos. A casa fica situada perto do farol. 
Todas as manhãs a ideia é preparar a "ida ao farol" - que se vai arrastando durante todo o tempo de férias, sem nunca se concretizar. O passeio não se realiza. O farol é possivelmente um desejo nunca realizado.


Mrs. Ramsay, a protagonista (?) passa, entra e sai e prende-nos aquele movimento maquinal, certo, idêntico, cheio de afazeres, de todos os dias.

Depois temos as tensões entre os personagens. As relação complexa entre os esposos, ele professor de filosofia cheio de dúvidas sobre a própria importância, que aguarda sempre a opinião e aprovação da mulher.
Reencontramos no romance as tensões e as 'oposições' que a autora gosta de explorar: a mulher e  marido; a separação e a conexão; o real e o fantomático - a palavra fantasmas (ghosts”) aparece inúmeras vezes ao longo do livro. 

As atitudes das personagens podem ser paradoxais e a própria imagem do farol é "vista" de modo diferente, por cada uma delas


Pode ser “um farol austero e distante”, como constata Mrs. Ramsay, no início do livro.   No  entanto, James Ramsay, o filho adolescente, via-o como uma torre prateada, envolta em nevoeiro com um olho amarelo que se abre de repente, suavemente, na noite.  

Anos mais tarde, dez anos para ser exactos, no regresso à casa perto do farol, o mesmo James vê-o sem a imaginação que tinha em adolescente: para ele, é agora, apenas, "uma torre estreita e alta às riscas brancas e pretas". 

Virginia Woolf por Vanessa Bell

Sem a emoção da infância - o farol era 'realmente' a "torre prateada" que imaginara na infância, ou "a torre "às riscas brancas e pretas", sem o fantástico de antes - como ele o via agora?

Virginia Woolf aconselhava aos que pretendiam ser "escritores", a sinceridade, a verdade, o trabalho constante. Em "L'art du roman" -livro extraordinário-  escreve:

Escrevam todos os dias, escrevam livremente; mas comparando sempre o que escreverem com o que os grandes escritores escreveram. É humilhante, mas é essencial. Se quisermos conservar, criar, é o único meio.”
Escrever sempre sobre o que sentia e conhecia - do que era "seu" - e, disso, só isso queria escrever. Porque "o que importa aos outros", aos que  lêem, pensava, "é a nossa verdade".
No que contava não havia assuntos proibidos ou coisas escondidas. Escrevia em L'Art du Roman, requerendo essa liberdade de dizer a verdade, seja ela qual for: ‘Sempre que virem um letreiro a dizer 
'proibido passar', passem logo, não parem."

É um livro difícil de seguir, por vezes, exige muita atenção. Cruzam-se ideias, trocam-se os momentos, o tempo é incerto, a lembrança ora pertence ao passado ou ao presente, flui

A sua escrita segue "o fluxo de consciência liberto, que flui ao acaso, cruzando vários tempos, na memória do passado e na actualidade do hoje”. Perdemos por vezes a noção das diferenças porque há uma interligação entre todas, conforme as recordações afluem e se associam e se repelem.

Um livro sério, como todos os livros de Virginia Woolf que aconselho. Existe uma edição portuguesa com uma boa tradução do escritor Mário Cláudio.