sábado, 31 de março de 2012

Sabendo um pouco mais sobre Rhoda Scott : "So good to me".

Rhoda Scott é uma fantástica organista de Hammond B3 (1)

Falando de si, numa entrevista à "JazzWax", explica:

"-  Nasci em Dorothy,  no New Jersey,  e vivi lá com os meus pais alguns anos, cinco ou seis. O meu pai era pastor da Igreja Episcopal Metodista Africana e era enviado pelo país fora, pregando em igrejas diferentes. Assim que nos instalávamos, tínhamos que abalar outra vez. Por isso estive em cinco escolas primárias diversas e três universidades...
- Difícil para uma criança, não?
- Sim, mas ao mesmo tempo as mudanças abruptas dão uma certa  flexibilidade em relação aos ambientes. Tem razão, era duro perder os amigos a toda a hora."

Passa muito tempo da sua infância em New Jersey . Um dia começa a tocar órgão numa dessas igrejas onde o pai estava. Aprendeu facilmente e passou a ser a sua "organista" preferida.

Cedo começou a tocar nos concertos para acompanhar os "coros  de gospel" -  não só na igreja  do seu pai, como noutras, quando a chamavam. 
Era uma sua paixão. 
Mais tarde estudou piano clássico mas a sua preferência ia para o órgão. 
Fez um Master em Teoria da Música na Escola de Música de Manhattan.


Entrou para um pequeno grupo de Jazz, como pianista. Foi bem recebida e acabou por “exigir” tocar o seu "Hammond".

Há quem a considere a melhor organista de jazz.

Em 1967, Rhoda mudou-se para Paris e por ali ficou a viver. Nos últimos 43 anos tornou-se  numa celebridade do jazz europeu, apresentando-se  em concertos ou tocando em clubes particulares.

Em 2011 no Festival de Jazz de Versailles, deu um concerto com o organista clássico Francis Vidil e foi um sucesso.

Tocou várias vezes nas Arènes de Montmartre e em vários Festivais de Jazz.

(1)    "Hammond Organ" é um órgão eléctrico inventado por Laurens Hammond em 1934 e construído pela Hammond Organ Company.

(2)    Gospel é um tipo de música escrito para exprimir os sentimentos pessoais e espirituais  relacionados com a vida “cristã”. 
Foi também um modo de encontrar uma alternativa cristã à música secular.






Bom domingo com Rhoda Scott, quando jovem, tocando um maravilhoso"Summertime"

Van Gogh, "Noite estrelada sobre o rio Rhône"

sexta-feira, 30 de março de 2012

Com um livro na mão, falando com Agatha...

Agatha Christie, aos 16 anos, retratada pelo pintor N.H.J. Baird (foto tirada do livro)

Acabei a "Autobiografia" (ASA, 2011) de Agatha Christie e ficou-me uma saudade enorme dela e da nossa conversa. Razão tinha a Ana Luísa...

Fez-me rir, sorrir e protestar com ela. Ouvir o que ela dizia e indignar-me com a invasão dos eléctricos, admirar o que ela via em Torquay, em Ashfield.  Segui-la no seu curso de enfermeira durante a Iª Guerra, "vê-la" a tratar, com a maior simplicidade e altruísmo, os soldados que vêm da frente... Sem estados de alma exagerados.

Como dizia Pennac, os livros devem ser lidos “como nos apetece” : o que equivale a dizer: de trás para diante, saltar páginas, ir ver o fim e voltar ao princípio, enfim, a liberdade total!

Normalmente não leio os livros deste modo. Desta vez, porém, a ideia de já “conhecer” bem Agatha deu-me vontade de ir à procura dela de todos os modos!

De facto, lera há tempos a óptima biografia da autoria de Laura Thompson (de que já falei aqui) e  "folheei" (para trás e para diante) “Os cadernos secretos”, de Agatha.


Ao ler a sua autobiografia, recordo a biografia e vejo que as coisas coincidem, no essencial.
 Porque o essencial é ela, Agatha. E ela está ali.

fotografia do livro, Paris, 1906

O que ela “quis” escrever e “deixar” dela, como imagem, é aquilo – para além dos seus livros, claro. As que oculta, por exemplo, como o seu desaparecimento durante dias (ainda hoje pouco explicado) quando o primeiro marido lhe confessa estar apaixonado por outra e querer o divórcio.


O choque e a desilusão sofridos são tão fortes que perde a memória. Ignora (diz ela) onde esteve, o que fez. Laura Thompson tem a sua ideia (1).

Está no seu direito. Penso que escritor, o poeta, enfim, o artista fica na sua obra.

O livro foi publicado postumamente. Tem o direito de dar a sua imagem de si, boa ou má.

E é na obra que encontramos o escritor na sua verdade. Mais “verdadeiro” do que em todas as biografias que descobrimos tantas vezes “falseadas” pondo em relevo o que está na “moda”, conforme os tempos que correm, tantas vezes trazendo só “lixo”.

Com o primeiro marido, Archie Christie, em 1919 (foto tirada da Autobiografia)

Tem o direito de contar como quiser a sua história de amor com Archie Christie, a sua história que acaba mal. 

Ou a outra história (de amor?) do seu segundo casamento, com Max. Talvez, antes, a história de uma grande amizade, de gostos em comum sobre arqueologia, viagens, países do Médio Oriente, escavações. Que os une até outro sentimento mais forte aparecer no ar e se tornar amor.

fotografia com o segundo marido, Sir Max Mallowan (in "Agatha Christie, An English Mystery")

E vêm por ali fora as viagens aventurosas, as histórias vividas com intensidade, os sentimentos que experimenta
O que se passava enquanto escrevia. Como escrevia. O que via. Ouvindo atentamente os que lhe contavam histórias - e cujas ideias, depois, ela “absorvia” e se tornavam na inspiração e na “trama” dos romances.

“Como acontece a todos os escritores, essas coisas transformaram-se, no meu espírito, e acabam por não ficar muito parecidas (...). No entanto, foi essa a inspiração que criou o acontecimento” (pág. ).


E vai crescendo e observando os mundos que vai descobrindo, aprendendo que as culturas não são iguais e se devem respeitar.

A abertura de espírito desta mulher nascida noutro século é maravilhosa.

“No Médio Oriente nada é o que parece. As nossas regras de vida e de conduta, de observaçãoe e de comportamento, devem ser todas invertidas e reaprendidas” (pág.487).

Quão actual tudo isto se revela, tão verdadeiro, ainda nos nossos dias! Porque Agatha Christie tem esta qualidade: é sempre actual. Não passa, não passou, nem passará de moda...

É, no fim e ao cabo, mais uma “obra” dela que descubro, com enorme prazer, é ela que aparece em cada momento.

Agatha, criança, retratada por Baird
fotografia do livro, com a legenda de Agatha:"eu quando era pequena"

A infância, adolescência, os pais, a irmã mais velha,  Madge, o irmão mais novo, Monty e Scotty, o cão dele.
"Scotty", pintado por Baird


O pai, doce e distraído, a  mãe de uma sensibilidade extrema– a importância daquela mãe um tanto fora do vulgar, muito inteligente e atenta, sem nunca pesar sobre os filhos.

O Natal, os natais... O apetite de Agatha que desde pequenina adora comer!

E descubro, divertida, que nesses natais uma das sobremesas servidas eram “ameixas de Elvas” (pág. 179)!

Agatha cresce, e continua a contar, a contar.

A juventude, os passeios, os amigos, as amigas, os encontros. A descoberta da vida, o optimismo escolhido e a sua lucidez, sempre: “(...) estamos ali, estamos vivos, abrimos os olhos e aqui está outro dia; outro passo, por assim dizer, na nossa viagem para um destino desconhecido. Essa viagem excitante que é a vida. (pág. 174).
pintada por Baird e à direita por Olive Snell

Vive, aos 11 anos, o momento dramático da chegada dos primeiros eléctricos a Ealing onde vivia a avó. Revolucionam aquele bairro tranquilo fora de Londres. 

Indigna-se.


Os eléctricos eram vulgares; eram ruidosos; iam prejudicar a saúde píublica. Existia um óptimo serviço de autocarros vermelhos e brilhantes, com a palavra Ealing pintada em letras grandes.
E os bons e velhos caminhos de ferro(...). Os eléctricos não eram pura e simplesmente necessários. Mas chegaram. Inexoravelmente chegaram.” ( pág.166)


Como ela escreve num poema, que então lhe publica um amigo dos pais: 


Correu bem
mas antes do dia acabar
a história era outra”.

Tirando esses acontecimentos, fora do comum, a vida era calma e divertida.

“Éramos como flores silvestres –e muitas vezes eravs daninhas – mas crescíamos de forma exuberante, a rebentar peloas fendas dos pesseios e das ruas, abrindo ao sol, até alguém nos pisar...”

A irmã Madge conta-lhe histórias que vão despertar a vontade de escrever: Sherlock Holmes e “O Carbúnculo Azul”, “As cinco sementes de laranja” refere ela.  (pág.164)

Também gostara de Sir Walter Scott - o “Talismã”, sobretudo-  que a mãe lhe lia ao deitar, protestando por vezes "Tanta descrição!" - e saltando páginas. E a “Feira das Vaidades” de Teckaray. Mas preferia Dickens e o seu Mr. Nickeleby

"Mas o meu livro preferido dele era, e ainda é, "A Casa Abandonada" (Bleak House).

A imaginação de Agatha não tem limites desde a invenção das “personagens” inexistentes de cãezinhos e gatos que povoavam as histórias inventadas. 

Na escola a professora censura essa imaginação: “Foge ao tema!”

De facto, uma vez ao falar do tema do Outono, começa pelas folhas douradas na floresta e que vai acabar a contar a história de um “porquinho de rabo em saca-rolhas” que ela “vê” aparecer por ali à procura de bolotas.
Tudo a interessa, tudo a diverte! Aceita a vida com simplicidade.

As idas às praias de banhos mais a “máquina” de banhos onde as senhoras “embarcavam”, escondidas num tubo de metal tapado dos lados, até serem “depositadas” já dentro do mar.



São "quadros" que se desenrolam em frente dos nossos olhos como no écran de um cinema de praia...

Perto, mas separada, a “enseada dos cavalheiros”. E o clube onde se reuniam para ver de binóculos de ópera a semi-nudez dos corpos femininos. 
Quer dizer:  corpos “embrulhados em roupas” até aos joelhos e de meias, que eram o drama de Agatha quem assim que começava a nadar...perdia as meias!

“(...)o fato de banho de alpaca azul-escura ou preta, com inúmeras saias e folhos a terminarem bem abaixo do joelho e que cobria também os cotovelos (...). 


Que estranha ideia de “sensualidade”, espantava-se ela(pág.186).

E, acima de tudo, o que é maravilhoso nestas recordações, é a ironia de Agatha, o seu sentido do humor (por vezes negro...), imparável, que eu adoro!

Que nos surpreende a cada instante, fale ela da cozinheira, do cão, do Internato em França, ou das meninas casadoiras do seu tempo.

Auguste Renoir, Le Bal

Ou indo com ela ao Cairo da sua juventude, onde passa um Inverno a “aprender” a não ser tímida e poder “debutar” calmamente na sociedade inglesa.

quarto de Agatha (hoje Museu) no Pera Palace Hotel
Istambul, Hotel Pera Palace

Ou viajando com ela até Istambul, ficar no Pera Palace Hotel, ir ver o quarto onde se instalava.


Acompanhá-la às escavações no Iraque, a Nimrud, viajar pelo Nilo, seguir pelo Médio Oriente!


De barco, de comboio, de jeep, de camelo... Representando, ao lado dela,  "o nosso papel na vida", como costumava dizer.

Aconselho vivamente esta leitura a quem precisar de se animar: quero dizer: é bom contra qualquer depressão!

quarta-feira, 28 de março de 2012

Continuando a falar do pintor britânico L.S. Lowry

Lowry, "Yachts" (aguarela,1959)

Continuo a falar de L.S.Lowry (1887-1976), visto o interesse e a curiosidade que despertou nos leitores. 
De facto, não é por acaso que é considerado um dos pintores britânicos mais populares...
Lowry pormenor de Yachts (foto MJF, desfocada)

Como a mim sucedera, ao ver o tal calendário da Waterstone’s...

Lowry, The pond

L. S. Lowry nasce na Barrett Street, em Stretford (Old Tratford), onde vive com os pais até 1909, quando a agência imobiliária do pai abre falência e a família tem de se mudar para um bairro suburbano pobre da zona industrial de Salford.
Lowry, Fábrica industrial 
Que vai pintar e pintar e pintar...



Muitos dos seus desenhos e pinturas quadros representam esta paisagem de Salford, de Pendlebury e  dos arredores. 
Dos distritos industriais do Norte, da Grande Manchester, ou de Liverpool, no Lancashire.

Lowry Going work, pormenor

Da Inglaterra mais pobre, a do noroeste, industrializada, cheia de fábricas, em redor, e de gente na miséria. 


É essa gente, esse mundo, que pinta, à saída da fábrica, andando,  cabisbaixos e perdidos, afastando-se a correr. 


Ou entrando, apressados, sem expressão, já vazios, anónimos, pontos negros apenas, um entre muitos, os tais "homens-pauzinhos-de-fósforos" que o caracterizavam...

Fugindo, talvez. 
Lowry, Going to work (1959), entrada na fábrica

Lowry, pormenor de Yachts (MJF)

Outros, pasmados a olhar. Os barcos e as corridas nos canais.  E os iates dos outros.


Os cães a verem o que se passa, ao lado dos donos...

capa do "Calendário 2012", Coming from the mill (1930)de Lowry 

Essa zona miserável onde Lowry viveu e cuja realidade pintou durante mais de 40 anos.
Lowry, idem, pormenor

O pai de Lowry morre em 1932 e deixa a família com dívidas. LS. Lowry toma conta da mãe que sofre de neurose e depressões contínuas e depende absolutamente do  filho.

Ele só conseguia pintar quando a mãe adormecia, tarde, noite entrada, por vezes quatro  horas seguidas, conforme o cansaço.

Lowry frente ao retrato de Iesel (1961)

Lowry revela anos mais tarde o seu pesar por não ter sido reconhecido o seu valor durante  o tempo de vida da mãe. Ela era uma artista, uma pianista, e teria sido bom ver o filho ser admirado como o veio a ser.

De facto, depois da morte dela,  a sua obra tem grande sucesso.

Lowry, Flores à janela, pormenores

Costumavam passar férias na Escócia, em Berwick, onde tinham uma casa. 


Berwick, na Escócia
Mais tarde sozinho irá passar as suas férias em Sunderland no Hotel Sunburn.

Durante esse período, muitas dessas pinturas eram auto-retratos assustadores  a que ele chama “horrible heads” -  que o aproximam do expressionismo.

Lowry The Flat iron Market, em Salford (desenho a lápis, 1925)
Lowry,  Fábrica em  Hoodersfield

Sente-se nele também a influência também de Van Gogh. Em 1931 houve de facto uma grande Exposição de Van Gogh, na Manchester Art Gallery, exposição que ele de certeza viu.

Lowry conhecia já a pintura francesa que o seu mestre, o pintor francês impressionista, Adolphe Valette,  lhe ensinara a conhecer.

Em cima, South Shields, desenho a lápis, 1961
Em baixo, Saída do ferry
Lowry, Passagem de nível
Football Match: Lowry era um adepto do Manchester City!
paisagem do Lancashire

Quando a mãe  morre em 1939, é a vez dele cair numa depressão, abandonando por completo o cuidado a casa de tal modo que o senhorio lha retira em 1948.

paisagem em Longdale

Entretanto já ganhara dinheiro e compra The Elms, em Mottram, no Longdendale, bela região. Apesar de achar que a casa era desconfortável e feia, viveu lá mais 30 anos.

Trattford

Para Lowry, bastava um tecto, a paisagem campestre ou “urbana”, telas e pincéis...

Centro The Lowry, em Salford

Em Salford, (Grande Manchester) existe hoje um Centro de Artes e Espectáculos, The Lowry, dedicado ao pintor, na que foi a sua terra natal.
Biografia de L.S.Lowry, por Sandra Martin

Sobre Lowry:
Pinturas de Lowry no youtube: