sexta-feira, 2 de março de 2012

Livros: E os clássicos ainda se lêem hoje? A "Menina e Moça", de Bernardim Ribeiro


Muita gente talvez recorde ainda  o começo do romance.

Menina e moça me levaram de casa de meu pai para longes terras: qual fosse então a causa daquela minha levada era pequena, não na soube. Agora não lhe ponho outra, senão que já então parece havia de ser o que foi. Vivi ali tanto tempo quanto foi necessário para viver em outra parte. Muito contente fui naquela terra.”
("Menina e Moça", Colecção Clássicos Sá da Costa, 2ª edição)

Poderia ser um livro moderno que anunciasse um certo destino, a premonição de uma fatalidade e a futura tristeza desta donzela. Uma "estrela funesta", diria Camilo.

A novela tem causado muita discussão...

A autoria completa da "novela" por  parte de Bernardim Ribeiro, ou só da 1ª parte? E Cristóvão Falcão onde aparece? Terá havido "concurso de outros" a partir de certa altura do livro?

Qual a 1ª edição? a Edição de Évora? a Edição de Ferrara? 
Novela pastoril? Romance de cavalaria?

Muito se discutiu, muito se falou. Deixo de parte as discussões.

Chegam até nós as personagens, começando pela  narradora. E vem logo a senhora Aónia e Binmarder, e a história dos seus amores, ou a de Arima e Avalor - novelas dentro da novela, diriam hoje. 


Seguindo a trama incerta de uma história, contada em várias "etapas", por uma donzela que vai falando das coisas da (sua) vida e dos encontros (bons e maus) que se fazem ao longo de uma (curta) vida. Marcada pela infelicidade.


Fala-se do amor, fala-se da espiritualidade, fala-se de solidão.

E tem passagens muito belas!

Aparecem outras personagens - Belisa, Lamentor e o Cavaleiro da Ponte e prendem-nos?

Giovanni Bellini

Talvez não guardemos deles senão uma breve imagem. A imagem dos amores infelizes.
Mas não esqueceremos a "menina": os queixumes da donzela, a sua entrega na confissão da sua vida. Aos leitores. 

Escreve Mestre Aquilino (1):

 “A nosso ver, a Menina e Moça é uma especulação de paranóico, lançada corrente calamo, se não de jacto, no papel. Testemunham-no o seu estilo primário, as incoerências e tom de solilóquio lunático, arroubos líricos pueris e as infinitas variações centrifugadas (...)”

Não vou contrariar Aquilino nem discordar da sua frase “especulação de paranóico”.

Depois de se ler Dostoievsky, Gogol, Proust e, até, Camilo, penso que bom ler esses "paranóicos":  



“Meu Deus! Que paranóias geniais!

No entanto, há opiniões diversas da do grande Aquilino Ribeiro.

Lembro José Régio. Quanto ele admirava Menina e Moça que “incluía” sempre no estado de espírito do nosso “lirismo tradicional”.

Falava de subjectivismo, de uma novela psicologista, a primeira da literatura portuguesa (e não muito seguida na prosa portuguesa esta faceta psicologista).

Novela cavaleiresca, a Menina e Moça? Novela pastoril? Novela sentimental? (...) o que justifica a sua sobrevivência? (...) as qualidades do homem-artista que a escreveu; e que sobretudo a escreveu (eis coisa não difícil de sentir na leitura!) por uma imperiosa necessidade de confissão, de comunicação, de auto-consolação.” (2)


Ou António Salgado Júnior que tantas páginas e artigos dedicou à novela. 
Quantas vezes o segui na edição Textos Literários! O seu Prefácio, as suas notas, sempre esclarecedoras, bem me ajudaram a preparar as lições (*).

Edward Burne-Jones

“Poderá o leitor de hoje sorrir do aspecto metafísico deste amor, sobretudo pelos fundamentos fatalistas que apresenta e não reparar no encanto de certas subtilezas de pensamento (...) mas não poderá deixar de se impressionar com a justeza das outras observações que lhe fornecem a fundamentação psicológica, conducentes à caracterização feminista dum livro que se supõe escrito por uma mulher.”(3)

Salgado Júnior era um ensaísta-criador, no qual a claridade e a profundidade eram um prazer para quem estava a aprender...

Continuemos a ler  "Menina e Moça":

Neste monte mais alto de todos, que eu vim buscar pela suavidade diferente dos outros que nele achei, passava eu a minha vida como podia: ora em me ir pelos fundos vales que os cingem derredor, ora em me pôr do mais alto deles a olhar a terra como ia acabar no mar. Mas quando a vinha a noite, acepta a meus pensamentos, que via as aves buscarem seus pousos, umas a chamar pelas outras, parecendo que queria asssossegar a terra mesma, então, eu, triste, com os cuidados dobrados com que amanhecia, me recolhia.” (página 6)

E, um pouco mais adiante um outro texto de grande poesia. Não devemos esquecer que Bernardim era um poeta...

“Chegando à borda do rio, olhei para onde havia melhores sombras: pareceram-me que estavam além do rio. Disse então que naquilo se enxergava que era desejado tudo o que com mais trabalho se podia haver, porque não se podia ir além sem se passar a água que corria ali mansa e mais alta que na outra parte. Mas eu que sempre folguei de buscar meu dano, passei além e fui-me assentar de sob a espessa sombra de um verde freixo, que para baixo um pouco estava, e algumas ramas estendia sobre as águas.
Gustave Caillebotte

 (...)
Não tardou muito que, estando assim cuidando, sobre um verde ramo se veio pousar um rouxinol. Começou a cantar tão docemente que de todo me levou após si o meu sentido de ouvir. E ele cada vez crescia mais em seus queixumes, que parecia, que como cansado, queria acabar, senão quando tornava como que começava. Então, triste da avezinha não sei como caiu morta sobre aquela água.
(...)
O coração me doeu tanto então em ver tão depressa morto quem dantes vira estar cantando, que não pude ter as lágrimas.”

in Edição dos Clássicos Sá da Costa, 2ª edição, páginas 8 e 9.

Não quero fazer um ensaio, quis apenas dar umas "pistas" e trazer a o bichinho da  "curiosidade"...
(1)  Aquilino Ribeiro, No Prefácio da 2ª edição Sá da Costa das Obras Completas de Bernardim Ribeiro (1959),
(2)  José Régio, in “Pequeno discurso sobre a lição da menina e moça”, publicado na Estrada Larga, pg. 18-19.
(3)  António Salgado Júnior,“Os valores permanentes em Bernardim Ribeiro”, in Estrada Larga, página 13.
(4)  ESTRADA LARGA é uma “Antologia dos números especiais do Suplemento “Cultura e Arte” de “O Comércio do Porto”, organizada por Costa Barreto e publicada na Porto Editora em três grandes volumes.

(*) RIBEIRO, Bernardim — LIVRO (O) DA MENINA E MOÇA. por... (Prefácio e notas de António Salgado Júnior). Lisboa. 1938. In-8º de 69 págs. B.. Na colecção "Textos Literários".

“De Bernardim Ribeiro sabe-se apenas que era natural da vila alentejana do Torrão; que foi companheiro e íntimo de Sá de Miranda, com quem terá estado em Itália, ouvindo Vittoria Colonna; e que faleceu antes de 1554. 
Escreveu poesias que foram publicadas no Cancioneiro de Garcia de Resende.
O resto pertence à lenda – os seus amores, a sua morte, doido, no Hospital de todos os Santos, em Lisboa (Outubro de 1552).
inspirado em  Estrada Larga.

Teses sobre Bernardim Ribeiro na internet


7 comentários:

  1. Acho que tenho por aí o livro. Penso que era uma obra obrigatória no tempo de liceu da minha irmã mais velha. Ou estarei enganada?
    Mas nunca li.
    Há tantos livros bons que estão esquecidos...

    Já foi espreitar a acácia da Maria?
    É bem diferente das mimosas...

    Um beijinho grande e bom fim-de-semana.

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  2. Com a conversa esqueci-me de dizer: pinturas muito lindas!

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  3. MJ,
    Uma apresentação assaz interessante!
    Nunca li para além de alguns excertos. Não pude deixar de sorrir quando vi a edição daSá da Costa pois tenho alguns livros da colecção.

    As pinturas ligam harmoniosamente com o texto.

    Gostei particularmente desta passagem:

    «Chegando à borda do rio, olhei para onde havia melhores sombras: pareceram-me que estavam além do rio.»

    Grata pela beleza!
    Beijinhos. :)

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  4. Deu-me saudades ver a capa da colecção Sá da Costa, dei-a toda à minha sobrinha, que a precisava.
    Menina e Moça é uma novela pastoril, e diz Hélder Macedo que "uma meditação mística pessimista em torno ao amor e à saudade".
    Há tantas obras maravilhosas, que pretender conhecê-las todas é cada vez mais algo totalmente impossível, por isso penso sempre que quando temos tempo para ler um livro, nunca deveríamos perdê-lo com algum que não valha realmente a pena.
    Para convalidar o meu curso fiz um trabalho em espanhol sobre As Viagens na Minha Terra. É uma de essas obras que deveriam ler todos os portugueses, e até no mundo inteiro.
    Que felizes fomos lendo Júlio Dinis,Camilo,Eça,Antero de Quental,enfim...
    Com o tempo, só pode ficar o que não pode morrer de nenhuma maneira,não é? O resto, será só para estudiosos de temas pontuais, penso eu.
    Diverte-te, beijinhos ( Quando vem a Gui?)

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  5. Tens toda a razão, Maria! As Viagens é um dos meus livros portugueses preferidos. O que eu me diverti a lê-lo!
    E Júlio Dinis! E todos os que referes...
    Bonfine(?)
    Vem 9 Abril, mas por enquanto de férias...

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  6. Eu tenho pena que Júlio Dinis, como tantos outros, tenha sido eliminado das nossas escolas. Ainda acredito que faz bem à vida ler os clássicos. A ligação do texto com a pintura ficou perfeita!
    Beijinhos e saudades

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