sexta-feira, 30 de junho de 2017

LIVROS POLICIAIS E A ITÁLIA DE CAROFIGLIO



Mais um Verão que ‘entra’, extemporâneo, sem sequer ligar à data do Verão! O tempo corre, o tempo muda, o tempo cansa, o calor insiste e a terra protesta.
Bem, para acalmar o espírito, aqui vai uma nova leitura policial que aconselho: o escritor italiano Gianrico Carofiglio.
O livro, “Testimone inconsapevole" (2002), encontrei-o, em Itália,  e foi-me aconselhado por uma amiga veneziana, a Nicoletta, filha de um amigo maravilhoso, Bruno Trentin. 
Veneza, 2016 (MJF)

Conversávamos num dos poucos restaurantes tranquilos de Veneza, à noite. Passaram quase dois anos! E falámos - entre outras coisas- de romances policiais...
O livro comprei-o, depois, em Trieste na Livraria que fica no interior do Palazzo Tergeste - onde hoje já não existe o velho Café Tergeste mas há livrarias, cafetarias e outros cafés e restaurantes debaixo da bela vidraça do telhado – tudo restaurado.
Gianrico Carofiglio é um escritor do Sul de Itália, de Bari, onde nasceu em 1961. Magistrado de profissão, durante muitos anos Juiz Procurador anti-máfia em Roma, foi de 2007-2013 membro do Senado Italiano. 
Escreve livros policiais sobre a realidade da sua terra: romances  directa ou indirectamente ligados à sua profissão. 
Bari, o bairro Monopoli (net)

Fala da sua Bari “que não é real, é produto da imaginação”. Porque, diz ele citando Proust, os escritores “não descobrem sítios novos, a novidade está no modo como vê o mesmo sítio com olhos diferentes"

A "visão" de cada um é única, original, na sinceridade que se põe nela, e essa originalidade depende do grau de entrega do escritor ao que escreve.

O protagonista é o advogado Guido Guerrieri que vai ser o herói dos futuros livros. 
Interessante a escolha deste 'herói' advogado, pois fala dessa realidade no campo oposto ao da sua profissão. 
Sendo o protagonista dos seus romances um advogado, logo terá uma óptica e um objectivo muito diferentes do magistrado que ele é. Se bem que ambos procurem a justiça, fazem-no com perspectivas diferentes, por vezes, mesmo, em conflito. 
Este caso envolve uma outra problemática à qual o autor está ligado: a dos estrangeiros, dos refugiados à espera de visto para ficarem em Itália. 
Escreve livros policiais sobre a realidade da sua terra: romances ligados à sua profissão. O protagonista é o advogado Guido Guerrieri que vai ser o herói dos futuros livros. 

Num dia de calor, Guido Guerriri –que vive uma crise psicológica adiada e tratada com muito álcool e depressões- é abordado por uma senhora senegalesa que lhe pede que vá ver um seu concidadão, acusado de um crime que ela sabe que ele não cometeu. 
Bari, 'orla del sole' (net)

As esperanças de o seu cliente, o vendedor ambulante Abdou Thiam, ser absolvido são muito ténues. Inicialmente, sem interesse pelo caso, Guerrieri segue em frente apenas porque ela lhe quis pagar a defesa adiantada e sente-se 'obrigado' por isso.
Abri, praia (net)

Envolve problemas dum bairro difícil da cidade, ao pé da praia e do porto, com gente que passa, vai e volta, vendedores ilegais que palmilham as praias com as suas mercadorias.  

E vai encontrar um ‘racismo inconsciente’ por parte das testemunhas que julgam ‘ver’ Abdou Thiam perto do lugar do assassínio, no dia em que este ocorre
São testemunhas que "erram" mas ‘involuntáriamente’; pessoas que giram por ali, à porta dos bares e cafés,  "inconsapevoli", sem a noção do que realmente sabem e viram.
Porque, no fim e ao cabo, para as testemunhas, “eles andam por aí e são todos iguais, podem confundir-se uns com os outros…” 

"Erram sem querer" - explicam, quase ingenuamente.

O trabalho de procura e reconstituição dos factos de Guido Guerrieri, como “detective” autêntico, um pouco à maneira do Marlowe de Chandler, de bar em bar, interrogando, ouvindo, provocando, é que vai decidir da sorte do senegalês.

Este livrinho é da preciosa colecção ‘Sellerio editore Palermo’. Tem uma bela capa, com um pormenor dum quadro de Hopper.
o Ouricinho gostou...


Os livros do autor estão traduzidos em todo o mundo. Em português, o romance as "As perfeições provisórias" saiu na Porto Editora, em 2013. Espero que outras traduções se sigam a esta...

segunda-feira, 26 de junho de 2017

Hoje tive saudades de Cesário Verde!

(25 de Fevereiro 1855- 19 Julho 1888)


“Sem saber porquê
Amo este mundo
Onde viemos para morrer”
(Natsume Sosêki)


Tive saudades de Cesário Verde?  Sim. Muitas vezes me vêm à cabeça versos seus -a propósito e a despropósito de tudo.
E sinto-o na angústia expectante, no sonho de outros mundos, ali parado sempre na Lisboa que, ao anoitecer, tem tanta soturnidade, tanta melancolia. E escolho uma pintura de Carlos Botelho que me lembra o mundo da Lisboa de Cesário que tão bem a pintaram ambos...
Carlos Botelho, Lisboa

No seu paradoxal desejo de ter saúde e ser feliz, ao mesmo tempo que sente despertar  dentro "um desejo absurdo de sofrer";
No sonho das viagens, e da fuga, no sonho de partir - ele também! Ele que por cá vai ficando e escrevendo versos...

Versos publicados, póstumos, pelo amigo Silva Pinto (1848-1911) em colectânea a que chama “O Livro de Cesário Verde”.


Que vida curta a sua! Que, afinal, deu apenas na morte prematura, e no sonhou irrealizado…

Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!”~

Em carta ao amigo Mariano Pina, então em Paris, escreve -  de Linda a Pastora (*):
Meu amigo –tem chovido bastante e há dias que temos as comunicações cortadas com Lisboa (…)
Por aqui e por todo o país, naturalmente, continua tudo na mesma, isto é, está parado. Dizer mal disto parece uma coisa pedante do visconde Reinaldo, mas não é.
A tua estada em Paris faz-me imenso mal, a mim particularmente: produz-me a ideia fixa, a ‘monomania’ de partir para aí”.
Um desabafo que revela a sua ânsia de ir, enquanto vai ficando preso por aqui, por isto ou por aquilo, até que a tuberculose o ‘leva’ para sempre. Talvez num desses dias, em que se sente "cruel, frenético, exigente" tenha escrito:

“Eu hoje estou cruel, frenético, exigente:
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente.

Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
E os ângulos agudos.”

E Paris tão longe! A Paris irá mais de uma vez em negócios  mas essa sua “monomania” de ali viver  não a realizou nunca o poeta. 
´
 Caillebotte, 'jeune homme à la fenêtre' (1875)
Camille Pissarro, Boulevard Montmartre

Félix Vallotton

Imaginar o Paris de Guillaume Caillebotte, com o 'jeune homme à la fenêtre' que podia bem ser ele... E os boulevards de Pissarro ou as figuras de Félix Vallotton...

Paris onde Mariano Pina publicou, em 1884, na revista que ali editava, "Ilustração", o poema intitulado ‘Nós’ (talvez o mais pessoal e autobiográfico segundo alguns) de Cesário Verde.
Odilon Redon, Papoulas azuis


"Pinto quadros por letras, por signaes,
Tão luminosos como os do Levante,
Nas horas em que a calam é mais queimante,
Na quadra em que o Verão aperta mais.”


 Guillaume Caillebotte, Boulevard des Italiens

Em nota de rodapé, escreve o organizador da edição: 
Numa delas – contou Columbano a João de Barros –“a uma mesa de café, donde se via a porta de um teatro, esperou pacientemente a passagem de Vítor Hugo” (in João de barros, Pátria Esquecida).

Que vida! E volta Lisboa sempre. E, em “Contrariedades”, vai alternando o seu desânimo e a raiva pessoal - com a cena que vê para lá da sua janela:
Edgar Degas, A Engomadeira 

“Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de falta de ar, morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.”
……
O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
Um folhetim de versos.
A adulação repugna aos sentimentos finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exactos,
Os meus alexandrinos…

E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe humedece as casas,
E fina-se ao desprezo.”

Decide, porém, findar sem azedume, mas num desabafo bem duro: É feia...Que mundo! Coitadinha!

"E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se- à deitar sem ceia?
Vejo-lhe a luz no quarto. Inda trabalha. É feia…
Que mundo! Coitadinha!" (**) 

Manet, Rue de Rosnier

E a carta a Mariano Pina continua:
“Eu não faço nada falto de estímulos, aborrecido contra  esta gente da cidade (…) Ao menos, pelo campo ainda há coisas primitivas, sinceras, e uma boa paz regular. (…) hoje, que é domingo, sabes em que me entretenho? Em partir pinhões com uma pedra à porta de casa. (…) No enfastiamento domingueiro o que se pode fazer se não isto? No Verão, comíamos tremoços (…) depois foi-se o Outono nos arraiais pelos lugarejos próximos. 
Carlos Botelho: Lisboa, o Tejo, domingo

"Agora os rapazes deitam o pião nos lugarzitos, e quando chove muito, e a cheia alaga as baixas e os caminhos, apupam-se de monte para monte com buzinas de chavelhos. Lembra a Idade Média, Rolando, Roncesvales, não sei o quê.
Roland, de Odilon Redon

Ah! Meu amigo, se tu me tirasses desta apatia, deste enervamento, como seria bom! Seria impossível numa formidável capital de trabalho, de inteligência, de febre, arranjar um cantinho para mim? Um ano só para desemburrar! (…) por este país fora há coisas interessantes e caçando-se descobrem-se imensas. 
'Lavadeiras num rio' (Domingos Alvão, 1914)

Em Caneças, as lavadeiras acompanham o bater da roupa com um ai medonho, aflitivo. Nos vales aparecem mochos com fome. O outro dia para os lados de Torres, vi quatro mulas lavrando uma courela a meio galope e aos couces, em desordem. 

Eu gostaria imenso de fazer uma viagem pelo 'plateau' da Serra da Estrela até aos Pirinéus (…) Mas vês, lá caio eu insensivelmente na França, na Gasconha, o diabo.”
 S. Petersburgo

Sim, claro...o mundo está lá fora...
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!"
(*) Obra completa de Cesário Verde, Portugália Editora, 2ª edição, 1970, organizada prefaciada e anotada por Joel Serrão

(**) In O Porto, 18 de Março de 1876)

quinta-feira, 15 de junho de 2017

PORTALEGRE: A SÉ CATEDRAL E SEUS ARTISTAS

Em Portalegre, reencontro tanta coisa esquecida e revisitada uma vez mais. E tanta coisa a aprender ainda...

Portalegre tem muito encanto, penso eu. Muitos recantos, ruelas íngremes e estreitinhas, caiadas de branco, às vezes com uma barra amarela. 
fotografia de José Fernando SP

E tem belas igrejas e monumentos e casas solarengas, com brasões vários. E tem passeios para dar aos domingos e 'vistas' maravilhosas lá do alto da Serra e de tantos outros ângulos diferentes. E lembro as fotografias de um amigo desaparecido, José Fernando SP, que a 'imaginou' de todo os modos! 
nevoeiro de Setembro (José Fernando SP)

Portalegre tem uma história, curta mas agitada, com pequenas lutas fratricidas. 
Leio por exemplo sobre a disputa entre os dois irmãos Álvares Pereira  nos tempos conturbados que se seguem à morte de D. Fernando (1383). 

O irmão de do Condestável D. Nuno Álvares, Pedro Álvares, Prior do Hospital e Prior do Crato, defende a causa de Castela, é o alcaide da cidade.

E Nuno Álvares Pereira, partidário de D. João, que vem com os companheiro de armas libertar o Castelo apreendido: “acorre e, ajudado pela arraia miúda – pelos ‘ventre ao sol’ no dizer do cronista Fernão Lopes-, consegue tomar o castelo” (pg. 418, ‘Guia de Portugal’, Raul Proença). 
D. Pedro Álvares Pereira, era ferrenho partidário de Leonor de Castela e alcaide do castelo de Portalegre. Perante essas posições de apoio a Castela, o povo de Portalegre revolta-se e cercou o castelo. 
D. Nuno Álvares vem ajudar a cidade. Vencido, D. Pedro foge para o Crato.
Batalha de Aljbarrota


Em anterior luta fratricida, Portalegre tomara o partido de D. Afonso irmão de D. Dinis – ambos filhos de D. Afonso III que, em 1259,  lhe concedera o foral de vila. 
“Aquando das desavenças entre Afonso e seu irmão – o Rei- a vila segue o seu senhor, irmão do Rei legítimo. Em 1299, o Rei D. Dinis vem em pessoa pôr cerco à vila até à capitulação de D. Afonso.”

Fora o pai deles,  o rei D. Afonso III, quem mandara erigir a fortaleza da cidade que ficou incompleta. Em 1271, doou ao seu segundo filho, Afonso, as vilas de Portalegre e Marvão e os senhorios de Vide e Arronches. 
Quando morre, porém, em 1279, o infante D. Afonso, seu filho segundo, pretende suceder-lhe ao trono, alegando que D. Dinis era filho ilegítimo. Não foi aceita tal sua pretensão, mas provocou desavenças entre os irmãos, conflito que se arrastou. 
Em 1299, Portalegre é cercada pelo rei D. Dinis. O cerco dura seis meses. Após esses meses, D. Afonso rende-se.
Cancioneiros da Ajuda

Entre 1320 e 1324 houve outra guerra civil que opôs, desta vez, o rei D. Dinis ao filho, o futuro Afonso IV. O infante receava que o pai desse o trono ao filho bastardo, Dom Afonso Sanches, que era o seu preferido. Afonso Sanches, peta como seu pai, não será Rei, mas o pai, D. Dinis. vai deixar Portalegre em testamento ao filho bem-amado, legitimado com 15 anos, D. Afonso Sanches, juntamente com as vilas de Marvão e as senhorias de Vide e Arronches. 
Portalegre hoje (MJF)

Portalegre, vista por Arsénio da Ressurreição 

Continuando a história de Portalegre, pelos vistos muito acidentada: “(…) Em 1511, D. Manuel dá um novo foral à vila que foi depois elevada a cidade e feita sede de bispado em 1550”, criada em 1549 pelo Papa Paulo III, o que leva o rei D. João III a conceder-lhe o foro de cidade.
D. João III, na Corredoura (MJF)
Data de então o começo da sua importância e prosperidade. Multiplicam-se os solares, as casas mais ou menos opulentas dos fidalgos.” (in Carta Régia de Maio de 1550)
Fábrica Real hoje Câmara Municipal (MJF)

Não vou alargar-me mas lembro, ainda, a importância que teve a cidade quando o Marquês de Pombal fundou a Fábrica Real de Lanifícios de PortalegreÉ desse tempo uma quadra popular que diz:
“Oh cidade de Portalegre,
duas cousas tens em ti:
A Fábrica Real
E o Senhor do Bonfi.”
Câmara Municipal : pórtico de entrada (MJF)
A Fábrica Real, à noite (MJF)

A indústria dos lanifícios é antiga na cidade, datando dos princípios do século XVI. Constam dessa altura as primeiras referências ao ‘pano de Portalegre’.
a Sé (António Mão de Ferro)

E passo, rapidamente, para a Igreja da Sé. Quando volto à cidade, sabe-me bem avistá-la, com as torres do castelo do outro lado.

A Sé Catedral foi construída por cima da Igreja Nossa Senhora do Castelo. Iniciada em 1555, a primeira pedra é lançada em 1556 pelo bispo espanhol, D. Julián d’ Alva, capelão da Rainha de Áustria, D. Catarina e primeiro bispo da Cidade. 
A Sé, vista da cidade (MJF) 

O segundo bispo, D. André de Noronha, continuou a as obras e a Sé foi concluída, no último quartel do século XVI, pelo terceiro bispo da cidade,  D. Frei Amador Arrais, autor dos “Diálogos” (*).
A bela entrada da 'Fábrica Real', à noite

"A fachada, já no século XVIII, é enriquecida por duas torres muito agudas, piramidais octogonais", (in Guia de Portugal, pg. 422) e é-lhe acrescentado o Claustro.

A Sé Catedral apresenta várias formas de arte e de materiais - desde grades em ferro forjado (séc. XVII) aos azulejos policromáticos (séc. XVIII) e é “um dos maiores conjuntos nacionais de pintura maneirista, de consagrados mestres nacionais e estrangeiros.”
Fernão Gomes


Pesquisando na internet encontrei, no blogue Montalvo e as ciências do nosso tempo’, blogue que muito aprecio pela qualidade e interesse das informações, mais documentação sobre a Catedral. Nele, soube muito do que aqui vou referindo. 
De facto, é Frei Amador Arrais que, em 1582, encomenda vários retábulos maneiristas e escolhe Gaspar Coelho, artesão marceneiro-entalhador portalegrense, que já trabalhara em Espanha com mestres espanhóis e italianos.
Foi este bispo quem mais contribuiu para a riqueza artística da Sé e para a sua ornamentação variadíssima.
Altar-mor  de Gaspar Coelho

"Dos doze altares existentes,o altar da capela maior’ é o mais imponente e grandioso. (…) A obra foi confiada, em 1582, pelo prelado, ao Mestre entalhador Gaspar Coelho, artista portalegrense que trabalhou em Espanha, em Badajoz em 1571, onde aprendeu a sua arte com mestres entalhadores espanhóis e outros estrangeiros do Norte da Europa (…) e na sua construção foram gastos o equivalente a três mil cruzados.”
o belo Anjo da Guarda
Desta vez, observei com mais atenção o belo retábulo do altar-mor da Sé. É um retábulo barroco, em talha dourada, que veio substituir os antigos retábulos primitivos. Esculpido por Gaspar Coelho e seu irmão Domingues, nas esculturas do retábulo, aliam-se a educação artística e o saber à sensibilidade.
Para mim, que pude conhecer tão bem a arte italiana e o ‘maneirismo’ na pintura, foi a Itália que me veio à ideia. Encontrei a mesma suavidade nos tons, nos rostos, e as formas fortes e arredondadas nos corpos. 
No folheto, que trouxe da Sé, leio agora: “As figuras de estilo maneirista e formas robustas e arredondadas, sugerem-nos a plástica das figuras de Miguel Ângelo na Capela Sistina do Vaticano.”
Michelangelo, A serpente Vermelha (Sixtina)

Este 'corpo central' compreende três pinturas intercaladas com as esculturas e, mais acima, outro grupo de duas esculturas que, ‘à moda antiga’, separam três outras pinturas. 
Leio o nome dos magníficos pintores: “(…) Fernão Gomes, Simão Rodrigues (contratados por Amador Arrais, o bispo culto e sensível às artes), Francisco Venegas e outros.” (**)
Francisco Venegas, tecto da Igreja de São Roque (1588)

Francisco Venegas

Fernão Gomes é um pintor português de origem espanhola, nascido perto de Badajoz, que foi estudar para Delft, na Holanda (estamos na época de Carlos V, Imperador da Áustria e Rei de Espanha) onde trabalhou com Anthonie Blockglandt (1570-1572). Dali, parte para Portugal à procura de um lugar onde pudesse desenvolver a sua obra. 
Camões, retrato de Fernão Gomes

É da sua autoria o único retrato verdadeiro de Camões, provavelmente realizado entre 1573-75, “retrato pintado a vermelho do poeta Luís  de Camões (…) único e precioso documento fidedigno” que representa o poeta.
 Trabalhou com Simão Rodrigues na execução do Retábulo da Sé de Portalegre, em 1595.
"A Virgem e o Menino", de Simão Rodrigues

Este outro pintor maneirista, Simão Rodrigues, nasceu em Alcácer do Sal, em 1560, e foi cedo viver para Lisboa. Além deste trabalho em Portalegre, pintou o Retábulo da Igreja de São Domingos, em Elvas (1595). 
Como diz o autor do blogue "montalvo" que referi, “estes artistas erguem uma monumental peça de marcenaria, entalhadura e douramento”, peças aliadas com pinturas maneiristas de grande beleza.
Francisco Venegas, Anunciação (postal)

 “Toda a ornamentação retabular se articula segundo os moldes do maneirismo, bem vivo nos frisos de anjos, festões, medalhões, cestos de flores e de frutas nas bases das colunas (…) que os artistas portalegrenses esculpiram ‘à maneira’ italiana”, inspirando-se provavelmente em imagens e gravuras da Itália e do Norte da Europa.

Entre as pinturas de que mais gostei, está outra suave “Anunciação” que fotografei (e aqui está, acima) e de que ignoro o autor. E também “O Nascimento da Virgem”. 

Outra descoberta, neste lindo Retábulo maneirista do Altar-mor, é Francisco Venegas, pintor maneirista, nascido em Sevilha, por volta de 1525, que trabalhou em Portugal, no último quartel do século XVI. 
Francisco Venegas, Madalena

o maneirista Rosso Fiorentino, Deposição do Cristo
Viveu em Roma um certo tempo e contactou com a arte maneirista italiana dessa época. Morreu em Portugal, em 1594, “com muitas honrarias”.
Retábulo da Sé, Altar-mor (net)

Talvez por causa desse ‘toque’ italiano, me tenham emocionado tanto aquelas magníficas obras maneiristas do Retábulo da Sé.

***
(*) D. Frei Amador Arrais nasceu, em 1530, em Beja, e morreu em Coimbra, em 1600. Religioso, frade carmelita, mas também escritor e homem de vasta cultura. Muito lhe ficou a dever a cidade como vimos acima. Foi um escritor: são dele os "Diálogos" que escreve falando dum homem culto, doente, deprimido, e das conversas com os que o vêm visitar.  Foi igualmente um dos que mais contribuíram, com o seu esforço e humanidade, para o resgate dos prisioneiros de Alcácer Quibir.

Em 1596, Frei Amador Arrais resigna e vai viver no Colégio do Carmo, em Coimbra. O seu túmulo foi erigido por Gaspar Coelho que tanto admirou e protegeu.

(*)  Frei Amador Arrais
https://pt.wikipedia.org/wiki/Frei_Amador_Arrais

(**) Os pintores da Sé
https://pt.wikipedia.org/wiki/Fern%C3%A3o_Gomes_(pintor)