sábado, 30 de abril de 2011

Viva a vida! Stevie Wonder - "From The Bottom Of My Heart"



À VIDA!




SW Stevie Wonder nasceu no Michigan, em Saginaw, no ano de 1950, a 13 de Maio.



(Stevland Hardaway Judkins, mais tarde Stevland Hardaway Morris, é conhecido pelo seu nome de arte "stevie Wonder". Cantor, compositor, multi-instrumentalista e activiasta político, Stevie é uma personalidade muito interssante da música americana.)


Nasceu bébé prematuro e parece que, no caso dele, os olhos foram antigidos e nasceu cego (retinopatia dos prematuros).


Em 1954, a mãe abandona o pai e muda-se com os filhos para Detroit.

Stevie começa a tocar vários instrumentos, ainda pequeno: piano, harmónica, bateria e basso.



Na infância, canta no coro da igreja.

Tem já uma voz especial.

A voz fantástica que vão ouvir os que o não conhecem ainda...


Ouvia o CD com esta canção noites a fio, na viagem de ida para a minha escola da Portela em Sintra, nos meus últimos anos de professora.

Nem sempre me apetecia ir, confesso, deixar a casa quentinha, à hora em que os outros iam jantar, descansar...


Eu ia dar aulas e precisava de me encher de força, de "arrancar", ter entusiamo, porque nem sempre era fácil... Por tantos motivos!


Às vezes chovia muito, o nevoeiro cobria a estradinha toda em curvas que me levava lá abaixo à Escola de Santa Maria.


Era a voz de Stevie Wonder que "puxava" pela minh'alma, confesso... E me acordava para a vida!


Para o trabalho -importante!- que ia ser o meu naquelas horas.


No regresso, descansada, a voltar a casa, ouvia Chopin.


E acelerava! Sempre gostei de velocidades...


Chegava a São João já depois da meia noite.Não me queixo! Longe disso! Foram anos maravilhosos da minha vida em que descobri pessoas maravilhosas, convivi com elas, falávamos intervalos inteiros disto e daquilo. Tantas dificuldades para continuarem a estudar...Os filhos que ficavam para trás, em casa, as histórias de amores difíceis e dolorosos, as queixas, as alegrias, os netos que nasciam...


Sim! netos! Uma das minhas alunas acabou o 12º com 50 anos e outra entrou para a Faculdade de Direito com 53 anos, e está a acabar o curso!


Muitas "subiram " nos seus postos de trabalho, sentiram-se "mais seguras" de si, conscientes do poder que a vontade dá, orgulhosas por terem acabado, por terem conseguido!

A amarem a literatura como tantas vi: a deixarem-se "seduzir" por Fernando Pessoa, pelo teatro, pela pintura que lhes mostrava.



Nas nossas aulas falávamos de tudo, era um "melting pot" onde todas as conversas eram possíveis e todas as discussões tinham lugar.



Não por mim, ou por mérito meu, mas porque as turmas tinham entre dez e doze alunos, o que torna tudo diferente: não há impossíveis assim!



Nem programas que nos constrinjam porque conseguimos "sair" deles, ir lá fora "arejar"... e voltar...




Manter as janelas abertas para tudo!



Acabaram a escola secundária, e muitas continuaram pelas suas universidades, com um trabalho paralelo, com horários de destruir qualquer pessoa.


Mulhers admirá~veis!


E lá vão pela vida, na conquista de outros mundos, do saber, com o orgulho de querer fazer mais, andar em frente, não parar ainda e ficar à espera de morrer...


A abrir as janelas de par em par!


Mais sonho! Mais saber! O mundo é enorme! O mundo é do tamanho dos olhos de cada um, já dizia o "barão" de Branquinho da Fonseca.


E há sempre uma flor para irmos levar -seja onde for que nos leve o nosso sonho!


Lembro alguns nomes que ainda hoje fazem parte das minhas verdadeiras e puras amizades: Marty, Glykéria, sempre presentes (agora com as irmãs), a Carla R., Mónica B., a Ana Franco, a Filipa C., a Delfina, a Sandra (a minha "caspita" dos emails divertidos!), a Carla P., a Sílvia B., a Paula S., a Margarida P. - fiéis correspondentes destes tempos que passam a correr.


E recordo as outras de quem nunca mais soube nada mas que não esquecerei!



Por isso, Stevie Wonder merece este tributo mais do que justo!


À VIDA!


Outros pormenores da vida dele:


Wonder é também conhecido pela sua acção como activista de causas políticas, nomeadamente quando, em 1980, luta para que o aniversário do nascimento de Martin Luther King, Jr. seja feriado nacional nos Usa.



Foi nomeado Mensageiro da Paz pelas Nações Unidas.



Ainda jovem, já famoso, a dado momento, o produtor Clarence Paul diz a propósito de Stevie uma frase, que fica como uma espécie de marca de publicidade:



"We can't keep calling him the eighth wonder of the world". ("impossível não lhe chamar a 8ª maravilha do mundo")


Grava em 1961 o single "I Call It Pretty Music, But the Old People Call It the Blues".



Em 1962 saem dois álbuns:

The Jazz Soul of Little Stevie mas com pouco sucesso: The Jazz Soul of Little Stevieand Tribute to Uncle Ray.




Outras canções: "Superstition", "Sir Duke", "I Wish" e "I Just Called to Say I Love You".



Outros álbuns conhecidos incluem: Talking Book, Innervisions e Songs in the Key of Life






Viva Stevie Wonder, a 8ª maravilha do mundo! Vivam as minhas alunas! Viva a Vida!

"Os Olhos de Jade" -um pouco mais da história...

CAPÍTULO 10

Gabriel ficara sentado a olhar para as chamas, agitando o whisky no copo. Pensava na conversa com Joan. Ouvia a chuva. Sabia que o nevoeiro envolvia a casa isolada.



Se as circunstâncias fossem outras, poderia até dizer que se sentia bem. Gostava do Inverno, de ouvir chover e das noites ventosas.


As horas iam passando e o sono não chegava. Levantou-se, serviu-se de outra bebida e pôs-se a andar pela sala de um lado para o outro.


Tinha rugas vincadas na testa e as sobrancelhas franzidas como se pensasse em qualquer coisa que lhe custava a compreender.


-Procurar no passado, como sugere a Joan?, perguntou a si próprio em voz alta.


Ia pensando: "No passado? Só se for em África... A verdade é que estivemos lá todos!"


"E o David? O que terá acontecido ao David? Ainda hoje não sei o que se passou exactamente, nem por que se foi embora e deixou a família...


Por onde andará? E os outros? O que saberão disto tudo?


A verdade é que nos conhecemos todos ali."


De facto, Stephen Travis e o Rudolph Croft também tinham passado, como eles, por África.


Stephen era o marido de Alice e Rudolph fora casado com Helen até há uns anos. Tinham sido amigos sempre.


"Os papéis de Abigail?, mas como é que posso saber onde andam os papéis?


Onde é que vou procurar? Oh! Sim! Na pasta dela!"


A velha pasta de veludo cinzento onde Abigail guardava tudo.


"É a minha memória", dizia.

Sorriu, constrangido, parecia-lhe estar a ouvir as palavras dela.


Continha velhas fotografias, contas, as cartas que recebia de David.


Chegavam todos os meses, regularmente. Gabriel lembrava-se bem dos envelopes sempre iguais. Nunca lhe perguntara o que eram, mas via escrito o nome David Brenner e uma direcção em Nova Iorque.

No quarto de Abigail encontrou o que procurava. Dirigiu-se ao escritório, sentou-se à secretária e, quando abriu a pasta de veludo, descobriu três cadernos cobertos com a caligrafia irregular de Abigail.


Começou a ler e não deu pelas horas passarem.


Fora, o vento soprava com força e a chuva batia nas vidraças.


A expressão do rosto ia-se modificando à medida que ia mudando as páginas. O interesse crescia, a ansiedade também.



Quando terminou a leitura e fechou devagarinho os cadernos, o espanto e a preocupação carregavam-lhe o olhar.


Amanhecia quando se foi deitar.


sexta-feira, 29 de abril de 2011

Ivan Bounine, para os interessados, na Livraria Lumière!



Cláudia, que com a irmã, Alexandra, é proprietária da Livraria

Recebi hoje esta resposta ao meu post sobre Yvan Bounine e Tolstoi.










Já aqui falei da Livraria Lumière, da Travessa da Cedofeita no Porto. Que está online, portanto podem consultar com facilidade...
livraria Lumière e estatueta em arame de Fernando Pessoa




"Olá, Maria João Como tem passado os dias?Em constantes leituras, descobertas, partilhas... e que partilhas!!

A mais recente : Ivan Bunin.


Também eu fiquei "presa" à leitura do que escreveu e com uma vontade imensa de ir à procura do autor.


Fui logo para as estantes, procurei, procurei e... nada!!


Até que me lembrei: se foi Prémio Nobel pode ser que eu tenha na colecção que saíu intitulada "Biblioteca do Prémio Nobel".


Fui ao armazém e... EUREKA!!

Já o tenho aqui comigo. É composto por uma biografia do autor e duas obras deste:

"O Amor de Mítia" e "O Processo do Tenente Ieláguin".

E, mais, tem bonitas ilustrações de página inteira em folhas à parte...

Às vezes temos os bons autores à frente dos olhos e nem sabemos."


Aqui têm boas notícias, pois!
Fiquei contente porque, pelo menos, quem estiver interessado nos livros dele, tem já um ponto de partida...

Esta nova tradução de Bounine, O Amor de Mítia, chamou-se, na primeira tradução portuguesa "Amor que santifica", na Editorial Inquérito)



A barbárie em acção: atentado na Praça Djemma El Fna, em Marraquexe!


foto tirada em 2002, na Praça Djemma el Fna (MJF)


Fiquei siderada, esta manhã, com a notícia: a bela Marraquexe, a cidade Vermelha de Marrocos, ensanguentada por um atentado.




No Café Argana de que bem me lembro, porque costumava sentar-me num outro do lado contrário, o Café de France, onde ao fim dos dias de Outono, ou mesmo no inverno, íamos comer uma tigela de harira escaldante...



A olhar o formigueiro em baixo, a ouvir as vozes, os risos, as pessoas a chamarem-se, vivas, alegres. Porque Marrquexe era uma cidade alegre.




A fantástica - de fantasia autêntica, cor, brilho, prestidigitadores- Djemma El Fna teatro de morte. poções mágicas, na Praça Djemma El Fna (MJF)





Marrocos apunhalado no seu coração.


A violência acéfala, o extremismo de um punhado de cobardes bárbaros, sem ideologia, nem sentido.


Inocentes morreram na bela Djemma el Fna, cheia de luzes, dos seus cheiros a kebab, a merguez, e ao chá fumegante dos alambiques de cobre.


merguez, bolinhos e chás, na praça Djemma el Fna (MJF)







Do cheiro a especiarias, a perfumes, a chá de hortelã, a canela.



Do movimento de todos que ali se reúnem de dia e de noite, do espectáculo dos encantadores de serpentes e dos contadores de histórias, das montanhas de laranjas para sumo...





contador de histórias, na noite da Djamma el Fna (MJF)


Vejo, como se fosse agora, a Koutoubia, imponente, ao cair do sol, avermelhar-se com a cor do próprio sol poente, ouço as vozes que se elevam dos minaretes quando a noite desce, e o fumo que invade a praça.




A morte na "catedral vermelha" de Marraquexe...


Para quê?



Nem o nome de kamikazes merecem porque esses, os japoneses durante a guerra, ao menos "suicidavam-se" lançando os aviões sobre objectivos militares, nunca civis!




Estes são apenas cobardes assassinos vulgares...


Tenho pena do mundo.



Lamento este atentado contra o povo marroquino.

Indigno-me.



quinta-feira, 28 de abril de 2011

Um encontro entre Lev Tolstoi e Ivan Bounine, na rua Arbat, em Moscovo

A velha rua Arbat, nos tempos de Tolstoi e Bounine
A velha rua Arbat, hoje
Ivan Bunine tinha por Tolstoi uma admiração enorme.
Em 1939, escreve um livro “La Délivrance de Tolstoi” (Editions de l’Oeuvre, 2010): a libertação de Tolstoi?

De quê? Da vida, provavelmente. Da dificuldade de viver...
O gigante Lev Tolstoi morrera em 1910, deixando atrás de si uma obra imensa.
Era uma lenda viva, uma figura que ganhara um peso diferente com a sua “filosofia”, o "tolstoismo" - a conversão, a sua luta social em favor da libertação dos servos e uma visão pacifista do mundo, que o pusera em contacto com Gandhi, dentro da sua enorme complexidade. Tudo admirável, sem dúvida. Porque Tolstoi é sempre admirável.
Mas o Tolstoi que eu amei - e amo- é o escritor, o que escreveu “Infância”, “ Guerra e Paz”, ou “Ana Karenina”, pôs em movimento figuras que me pareciam vivas, com quem me identificava, das quais vivia os dramas, amores e sofrimento, com tanta intensidade que quase conversava com elas - ou pensava poder fazê-lo.
Como só se ousa - e se consegue- fazer com os grandes livros e escritores –que são para além de tudo o resto, grandes amigos! E uma janela aberta, escancarada mesmo, sobre outros mundos...

Têm que me desculpar esta "fraqueza" -se a é...
A casa-museu de Tolstoi, em Moscovo

Mas Bounine lembra o “outro” Tolstoi, o escritor torturado, insatisfeito, de feitio incompreensível, vário de humores, irascível... E que tanto amava as pessoas!
a rua Arbat, hoje, rua pedonal onde tudo se encontra

Fala de Tolstoi com um respeito enorme. Achei que tinha interesse deixar um pouco dos dois em que Bounine recorda um encontro –o último- que tinham tido, em Moscovo, na linda e movimentada Velha Rua Arbat, hoje ainda cheia de encanto, de vida e de gente, uma das ruas mais interessantes do centro de Moscovo.


“Já não sou capaz de dizer o ano em que o vi, na Rua Arbat, em Moscovo, numa tarde de Inverno. Não me lembro de tudo o que me disse mas recordo que me perguntou se escrevia. -Não, respondi, não escrevo quase nada, Lev Nicolaievitch. E tudo o que escrevi outrora parece-me tão insignificante que prefiro nem pensar nisso.

-Sim, sim, eu sei, respondeu ele com vivacidade, conheço bem esse sentimento...

- Além disso, nem sei sobre o que hei-de escrever, acrescentei.

Lançou-me um olhar indeciso e, a seguir, como se se lembrasse de alguma coisa:

- O quê? Se não sabe sobre o que há-de escrever, escreva a dizer que não sabe sobre o que há-de escrever e por quê. Procure a razão dessa ausência de assunto, e descreva a situação. Sim, sim, experimente isso, disse com firmeza.

Era a última vez que o via.

Quantas vezes disse para comigo que tinha de o ver ainda, que a sua idade avançada poderia separar-nos definitivamente. E, no entanto, não me decidia a marcar um novo encontro. Pensava, no fundo, que ele não precisava de mim. “

Excesso de modéstia de Bounine, e erro seu: Tolstoi de certeza precisaria dele: de ouvir uma pessoa inteligente como ele.

Uma pessoa, uma pessoa apenas que nos procure, já é bom!

Além de que é bom sempre saber que os outros precisam de falar, de ouvir uma voz...

Precisamos uns dos outros, não é verdade? Tive pena que Bounine não o procurasse, antes de Tolstoi morrer...

Tolstoi todos nós conhecemos, mas Bounine? Quem era Ivan Bounine?

Ivan Bunine (1870-1953)

Ivan Alekseïevitch Bounine nasce perto de Voronej, na Russie central, em 22 de Outbro de1870 e morre em Paris no dia 8 de Novembro de 1953. É um escritor russo, poeta, escritor de romances e novelas.
Traduz Byron, Tennyson e Musset.

Publica o seu primeiro romance “A Aldeia”, em 1909. A sua visão do moujik até aí idealizada por certos escritorers russos (a partir de Tourgueniev), provoca um certo escândalo, pelo realismo e crueza com que descreve uma aldeia russa, a sua ignorância, o alcoolismo e a desgraça.

Em 1911 publica outro romance, desta vez sobre a sua família.

Viaja muito, antes da Iª Guerra: Egipto,Turquia, Palestina e Índias britânicas, África do norte etc., experiência essa que, como é natural, se vai reflectir nos seus livros.



Em 21 de Maio de 1918, foge de Moscovo. A sua visão crítica da revolução bolchevista não lhe permite viver na Rússia soviética.

A partir de 1920, vai viver, primeiro nos Balcãs e depois em Paris.

Em Paris,esse é o tempo dos Ballets Russes e de Diaghilev, que Proust tanto amava.
Bounine integra-se nesse tumulto de vida e cultura, mas continua a escrever em russo, para os russos que vivem em Paris. Nunca mais voltará à sua terra...

Recebe em 1933 o Prémio Nobel de Literatura.

Morre em Paris, em 1953. Está enterrado no cimetière russe de Sainte-Geneviève-des-Bois.

As suas obras foram proibidas na Rússia. Reabilitado em 1956, só vem a ser publicado na sua terra em 1980.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Outra bela canção de Elton John: "Good bye Norma Jean"; John sings to Marilyn Monroe

Norma Jean era o nome de Marilyn Monroe...

Elton John e a magnífica canção "Goodbye Yellow Brick Road"


"Os Olhos de Jade", mais um capítulo...



Edouard Manet, retrato de Berthe Morisot


A sala estava fria, apesar da lareira acesa há tantas horas. Joan sentia-se gelada, não sabia o que dizer. A imagem da mãe pairava na sala.



"Sim, ele tem razão, estamos perdidos...", pensava Joan ao lembrar a frase de Gabriel.


- Ouve, Gabriel, não quero agredir-te. Percebo que tem sido muito penoso para todos, não devemos magoar-nos...


A voz soava fraca, sentia-se tão frágil.


- Por isso é que não podemos aceitar a morte da minha mãe como se fosse uma fatalidade, e ficar parados! Não sei por onde começar, claro, mas há-de existir uma pista!


-Mas se tu tiveres razão, por que motivo a assassinaram, Joan?


-Não sei. Não notaste nada de estranho? Pessoas que vieram, cartas que chegaram?


-Como queres que me lembre? O que é importante recordar? É absurdo...

Joan passou a mão pelos olhos, abanou a cabeça e suspirou:


-Tens razão, é absurdo... Nada disto tem sentido.


Calou-se, a ouvir a música.


-É linda esta música, Gabriel. Faz impressão pensar que está morta, magoa tanto. Tu ainda tocas piano?


- Oh! há anos que não toco...



Caillebotte, jovem ao piano


Calou-se.


Joan continuou:



- E a mãe tocava? Lembro-me tão bem de a ouvir quando era pequenina. Escondia-me detrás dos cortinados de renda, ou no jardim lá fora, com os joelhos bem apertados contra o peito, parecia que me doía tudo.



Berthe Morisot, o jardim



- Ela era tão importante para mim..., continuou.

Gabriel respondeu, pensativo:

Berthe Morisot, no lago
-Talvez tivesse mudado nos últimos tempos.


Olhava para a lareira.


- Tocava muito pouco. Agora é que reparo nisso. Pensativa. Tinha deixado os passeios no jardim. Pouco convidava as velhas amigas...


Borisov-Musatov, pintor impressionista russo, "Senhoras, passeando à tarde"


- Andava triste, fechava-se no quarto, escrevia. Estava sempre com papéis à volta...

-E onde estão esses papéis? A mãe mandou-me uma carta. Falava de coisas “horríveis” do passado. Tens ideia do que era?


- Do passado dela?

Gustave Caillebotte, "olhando para fora"



- Sim. E do pai. Talvez sejam uma pista.



Gabriel abanou a cabeça.



-Nunca me falou em papéis nenhuns...

- Onde estarão?, perguntou Joan.

- Não faço a menor ideia!



Joan disse, impaciente:

- Mas vamos procurá-los!


-Preciso de pensar... Há outras coisas.



Calou-se, e acrescentou, num tom mais calmo:

-E o Zurigo? Sabe mais do que julgamos. A tua mãe falava com ele. De África, dos amigos, das noites iguais aos dias, das marés. Sei lá que mais!



Hesitava.

-Na noite em que a Abigail morreu, passei a dar-lhe as boas noites. Ele estava sentado na cadeira, ao lado da cama.


Depois acrescentou, como se recordasse de repente:
-Ela não se sentia bem, tinha febre, queixara-se de dores. O Zurigo levou-lhe um chá.


-E depois?


-Quando abri a porta, ouvi-o: “Prometo, prometo...” E chamou-lhe “mãezinha”, como fazia nos momentos sérios.

-Sim, eu sei, eu sei.



Perguntou, triste:

- O que achas que seria?


-Não faço ideia...


-Não te lembras de mais nada?
-Não.


Joan insistiu:
-A Alice falou num jantar. Disse que a mãe estava muito nervosa. Quem é que veio jantar?


-Sim, houve um jantar. A tua mãe marcou-o, uns dois ou três dias antes de adoecer.
-Isso já é importante.



Gabriel continuou, devagar.


-Já tinha febre, disse-o à mesa, lembro-me. Por isso, pensámos que fosse paludismo. Nessa noite o médico deu-lhe um remédio. Mas não serviu de nada...


Pousou o copo e agitou as mãos, à sua frente, como se não as controlasse.


- Quando a vi...

-Foste tu que a encontraste? Eu não sei nada...

-Sim, fui eu.

- Gabriel, conta-me tudo! Precisas de desabafar!


Olhava para ele, ansiosa.

-Tinha os cabelos espalhados sobre o rosto, julguei que dormisse...


Gabriel suspirou:

- Estava morta...


- Deve ter sido horrível!

Acrescentou, como se pedisse desculpa da curiosidade:

- Sei que foi um choque tremendo, mas para mim é importante falar. Era a minha mãe.
~

- Eu percebo... não tens de que te desculpar.


- Gabriel, tem paciência... Sei que é doloroso, mas tens que pensar. Deve haver qualquer pista! Oh! Gabriel, Gabriel, é tão difícil.


-Sim, é muito difícil...


Ficaram calados um momento. Depois Joan levantou-se lentamente e disse:



- É melhor ir-me deitar. Vê se descansas, também. Não devia ser injusta, no fundo gostavas tanto dela como nós. Desculpa.



E, num impulso:

-Talvez ainda vamos a tempo de ser amigos...


Gabriel sorriu.

-Sim, talvez.


-Tanta coisa que aconteceu! Não julgues que sou só uma egoísta. Tenho tido os meus problemas como toda a gente. Foi bom conversar contigo...



Olhou para ele com tristeza, estendeu a mão, hesitando no gesto incompleto. Virou-se, mas, de repente, fixou os olhos no canto da lareira:


-Onde descobriste este candeeiro?



Era um candeeiro pequeno, pousado sobre a mesa baixa. A base, art nouveau, era uma figura de bronze, com um abat-jour de vidro fosco que formava uma cabeça de mulher em flor, com os olhos em jade, rasgados e oblíquos, pelos quais se filtrava uma luz difusa.


-Deve ter sido a tua mãe...


Olhou para o candeeiro, com atenção.

-Sim, foi ela. Gostava muito do jade, comprava anéis sempre que os via. Dizia que o David tinha olhos de jade. Não sei se é jade ou só vidro coalhado da mesma cor...


-Sim, o pai tinha olhos verdes. Da cor do jade. É considerado o símbolo da virtude. Sabias?


-Será...



Parecia distraído, desinteressado.

-É bonito. Mas não estava cá da última vez...


-Não posso jurar. A Abigail comprou-o numa loja de antiguidades em Londres.

Parou, tentando recordar.


-Sim. Trouxe-o uma tarde e foi pô-lo ali na mesa. Acendia-o à noite, quando se sentava no sofá.

-Por que seria?


- Não sei. Às vezes, via-a a olhar para ele.



Joan tentou pegar-lhe. Apesar de pequeno, era pesado.


- “O brilho nos olhos de jade”...


Pensava na carta da mãe.


-É estranho... A base é de bronze?


-Penso que sim.


Joan suspirou e acabou por dizer, baixinho:

-Tudo me parece esquisito hoje. No fundo, é só um candeeiro...


Pegou numa caixinha de chocolates que estava na mesma mesa e tirou um.


-Uma coisa doce, antes de dormir... Queres um, Gabriel?

-Oh! Não, Joan, nem lhes posso tocar, sou alérgico! A tua mãe é que adorava os chocolates, não resistia...


-Eu sei, sou como ela.

Sorriu.


- Boa noite...

Virou-se, para trás, já à porta:

- Podes emprestar-me o carro? Queria dar umas voltas, antes do Michael chegar. Talvez vá a Brighton para desanuviar...



- Usa-o à vontade, eu não vou precisar. Começaram as férias do Natal.


-É verdade, disse Joan, está a chegar o Natal.

- Que Natal..., murmurou Gabriel.

- Tens razão. Vê se dormes...


-Boa noite. Obrigado por teres falado. E por me teres ouvido. Talvez não seja tarde para sermos amigos...