sexta-feira, 1 de abril de 2011

Regresso à Casa Amarela

Vassilyi Kandinsky, paisagem de Inverno

Zinaida Serebriakova, menina com bonecas


A porta da rua estava aberta. A que fora a casa da minha infância era hoje um escritório de advogados.

Vi o martelo de bater à porta, brilhante, igual, e senti as pancadas que se ouviam, indistintas, longe na minha lembrança.

A porta tinha os mesmos postigos envidraçados e os puxadores eram aqueles que a minha irmã fechava com força, depois de ter entrado em casa e fechado o postigo que ficava sempre aberto para podermos entrar sem chave, quando saíamos nas noites de Verão, com a Florinda.


E ficávamos na rua...

A porta, que tivera uma linda cor verde-escura, estava pintada de vermelho. As paredes tinham um tom deslavado, bem diferente do amarelo que eu recordo.
Olhei para cima, até às janelas do segundo andar. As velhas portadas de madeira também verdes tinham sido substituídas por persianas modernas.

Acima delas, no telhado, adivinhei a varanda encostada à grande chaminé.

A varanda era uma torre de castelo para mim em certos dias.

Quando o Verão chegava, e nos refugiávamos lá no alto ao fim da tarde, a apanhar um pouco de fresco, aquele espaço pequeno e quadrangular parecia o centro do mundo, só com o céu por cima.

Lia Ivanhoe, Rob Roy, as Lendas e Narrativas, ou a história da Duquesa de Brabante, e o quadrado perto do céu transformava-se em palco de tragédia medieval, campo de aventuras na corte do Rei Artur.



Ou em jangada perdida, ou barco de piratas, no meio da tempestade, ao pegar nos livros de Salgari.

Nesses dias quentes, a minha mãe ou a Florinda cobriam com uma tela, presa dos arames onde geralmente se punha a roupa a secar nos dias de grande ventania. Outras vezes bastava mesmo só um lençol branco, ou uma colcha colorida -para nos proteger do sol escaldante do Alentejo.

Subi o primeiro lance de escadas. Eram escadas de pedra, arredondadas nos bordos, e viam-se brilhar as mesmas faíscas de mica na pedra. Ao cimo, a porta que ia dar ao patamar era a mesma. Lá estava o corredor em ângulo recto que me pareceu pequeno e vazio, de repente.


Onde estavam as estantes que o cobriam até meio da parede, cheias de livros? Aquela parede toda branca era uma imagem totalmente desconhecida.

A primeira porta, mesmo ali ao lado, dava para o quartinho azul onde tínhamos nascido todas e onde íamos dormir quando alguma estava doente, para estarmos ao pé do quarto dos pais.

Continuei a avançar pelo corredor, com a mão a roçar pela parede - como sempre fazia quando voltava para casa, quase a correr, desejosa de chegar depressa às outras escadas, à cozinha quentinha que me esperava lá em cima.

A segunda porta ao fundo do corredor lá estava igualzinha, como dantes. Ainda poisei a mão no trinco e senti o fecho com a forma arredondada onde se apoiava o polegar com força para abrir. Detrás dela, ficava a sala do piano, pintada de verde suave, onde a minha mãe tocava, nas manhãs de Primavera.

Desta vez pareceu-me ouvir um tic-tac estranho, talvez as máquinas de escrever, pensei.

Imaginação. "Já não há dactilógrafas, as secretárias de hoje só têm computadores..." Queria encontrar um motivo para rir e aliviar a minha angústia.

No outro ângulo recto que o corredor formava, agora em sentido contrário, a janela do vão da escada, como lhe chamava.


Era esta janela que ficava em frente do lance de escadas, de madeira encerada, que subia para o segundo andar.


A janela estava aberta. O vento agitava um cortinado translúcido que, como vela enfunada, parecia querer entrar pelas escadas à minha frente.

Parei. Não tive medo, nem pensei em fantasmas, nem nos que foram para não voltar. Mas sei que havia dentro daquele cortinado um sopro quase doloroso que me vinha atingir o peito.

Comecei a subir as escadas devagar, hesitante, e parei. Em cima, outra porta, outro trinco. Fechada.


Detrás dela, esperava-me o mundo encantado que passara. Imaginei a cozinha. A janela em cima do lava-loiças de pedra, que tinha umas portinhas em baixo que tapavam a pia e a Florinda um dia ficou de patins, agarrada ao poial, sem conseguir equilibrar-se...

Da janela avistava-se o terreiro do velho lavrador da Mesquita e a casa alta. Pensei no laranjal. Mas sabia que havia lá só uns limoeiros e algumas árvores altas, ao pé das quais a carruagem de cavalos parava e ele descia, magro, com o seu bigode fino, e um chicote na mão.

A lareira era alta, mais a sua chaminé fuliginosa que a Florinda caiava a todo o momento.


No poial de tijolos pintados de branco, acendiam-se as braseiras de cobre, nas manhãs frias de Inverno. Eu ficava a olhar a chama e o álcool azul-cobalto, fascinada.

E o fogão de lenha bem polido, com as grelhas de ferro e as torneiras doiradas, a brilhar.

Depois, era a sala de estar onde comíamos todos os dias. E, logo ao lado, o meu quarto, com a janela sobre a rua, e a vista dos pinhais da serra, ao fundo, por cima das casas.

E as andorinhas que faziam ninho no telhado...


E...


Era insuportável.

Não fui capaz de continuar a subir.


Voltei as costas e desci as escadas a correr, sem dar pelo corredor, até me ver na rua.

5 comentários:

  1. Magnífico!
    Escreve muito bem, MJ :)
    beijo

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  2. Muito bonito.

    É triste ver a transformação das coisas, dos locais...que nos fizeram felizes.

    Mas as recordações ninguém as pode modificar...

    Um beijinho
    Isabel

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  3. É quando falas de algo pessoal que eu encon tro "essa" de que inconscientemente sempre andei à procura, alguém que seja como eu, que no fundo não é mais que uma procura de mim mesma.
    Esta relato chegou-me muito dentro porque te compreendi perfeitamente, regresaste ao passado, estavam as mesmas janelas e as mesmas portas, mas não estavas tu.
    Beijinhos

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  4. Obrigada pelo elogio, Virgínia!Fico contente como imagina.

    Sim, as recordações ficam, Isabel, mesmo que tudo mude e o regresso seja doloroso...O problema é ir à procura delas.

    Maria querida, eu sei que é "isto" que tu queres, mas é-me muito difícil falar de mim. A tal procura do tempo, de ti, implica voltares a "entrar" em ti, e dói.
    SEi que compreendes. De vez em quando "esta" vai voltando...
    Beijinhos

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  5. Não deve ter sido nada fácil esse regresso, mas estava tão bem escrito que me pareceu que eu também estava lá.
    um beijinho
    Gábi

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