quinta-feira, 28 de abril de 2011

Um encontro entre Lev Tolstoi e Ivan Bounine, na rua Arbat, em Moscovo

A velha rua Arbat, nos tempos de Tolstoi e Bounine
A velha rua Arbat, hoje
Ivan Bunine tinha por Tolstoi uma admiração enorme.
Em 1939, escreve um livro “La Délivrance de Tolstoi” (Editions de l’Oeuvre, 2010): a libertação de Tolstoi?

De quê? Da vida, provavelmente. Da dificuldade de viver...
O gigante Lev Tolstoi morrera em 1910, deixando atrás de si uma obra imensa.
Era uma lenda viva, uma figura que ganhara um peso diferente com a sua “filosofia”, o "tolstoismo" - a conversão, a sua luta social em favor da libertação dos servos e uma visão pacifista do mundo, que o pusera em contacto com Gandhi, dentro da sua enorme complexidade. Tudo admirável, sem dúvida. Porque Tolstoi é sempre admirável.
Mas o Tolstoi que eu amei - e amo- é o escritor, o que escreveu “Infância”, “ Guerra e Paz”, ou “Ana Karenina”, pôs em movimento figuras que me pareciam vivas, com quem me identificava, das quais vivia os dramas, amores e sofrimento, com tanta intensidade que quase conversava com elas - ou pensava poder fazê-lo.
Como só se ousa - e se consegue- fazer com os grandes livros e escritores –que são para além de tudo o resto, grandes amigos! E uma janela aberta, escancarada mesmo, sobre outros mundos...

Têm que me desculpar esta "fraqueza" -se a é...
A casa-museu de Tolstoi, em Moscovo

Mas Bounine lembra o “outro” Tolstoi, o escritor torturado, insatisfeito, de feitio incompreensível, vário de humores, irascível... E que tanto amava as pessoas!
a rua Arbat, hoje, rua pedonal onde tudo se encontra

Fala de Tolstoi com um respeito enorme. Achei que tinha interesse deixar um pouco dos dois em que Bounine recorda um encontro –o último- que tinham tido, em Moscovo, na linda e movimentada Velha Rua Arbat, hoje ainda cheia de encanto, de vida e de gente, uma das ruas mais interessantes do centro de Moscovo.


“Já não sou capaz de dizer o ano em que o vi, na Rua Arbat, em Moscovo, numa tarde de Inverno. Não me lembro de tudo o que me disse mas recordo que me perguntou se escrevia. -Não, respondi, não escrevo quase nada, Lev Nicolaievitch. E tudo o que escrevi outrora parece-me tão insignificante que prefiro nem pensar nisso.

-Sim, sim, eu sei, respondeu ele com vivacidade, conheço bem esse sentimento...

- Além disso, nem sei sobre o que hei-de escrever, acrescentei.

Lançou-me um olhar indeciso e, a seguir, como se se lembrasse de alguma coisa:

- O quê? Se não sabe sobre o que há-de escrever, escreva a dizer que não sabe sobre o que há-de escrever e por quê. Procure a razão dessa ausência de assunto, e descreva a situação. Sim, sim, experimente isso, disse com firmeza.

Era a última vez que o via.

Quantas vezes disse para comigo que tinha de o ver ainda, que a sua idade avançada poderia separar-nos definitivamente. E, no entanto, não me decidia a marcar um novo encontro. Pensava, no fundo, que ele não precisava de mim. “

Excesso de modéstia de Bounine, e erro seu: Tolstoi de certeza precisaria dele: de ouvir uma pessoa inteligente como ele.

Uma pessoa, uma pessoa apenas que nos procure, já é bom!

Além de que é bom sempre saber que os outros precisam de falar, de ouvir uma voz...

Precisamos uns dos outros, não é verdade? Tive pena que Bounine não o procurasse, antes de Tolstoi morrer...

Tolstoi todos nós conhecemos, mas Bounine? Quem era Ivan Bounine?

Ivan Bunine (1870-1953)

Ivan Alekseïevitch Bounine nasce perto de Voronej, na Russie central, em 22 de Outbro de1870 e morre em Paris no dia 8 de Novembro de 1953. É um escritor russo, poeta, escritor de romances e novelas.
Traduz Byron, Tennyson e Musset.

Publica o seu primeiro romance “A Aldeia”, em 1909. A sua visão do moujik até aí idealizada por certos escritorers russos (a partir de Tourgueniev), provoca um certo escândalo, pelo realismo e crueza com que descreve uma aldeia russa, a sua ignorância, o alcoolismo e a desgraça.

Em 1911 publica outro romance, desta vez sobre a sua família.

Viaja muito, antes da Iª Guerra: Egipto,Turquia, Palestina e Índias britânicas, África do norte etc., experiência essa que, como é natural, se vai reflectir nos seus livros.



Em 21 de Maio de 1918, foge de Moscovo. A sua visão crítica da revolução bolchevista não lhe permite viver na Rússia soviética.

A partir de 1920, vai viver, primeiro nos Balcãs e depois em Paris.

Em Paris,esse é o tempo dos Ballets Russes e de Diaghilev, que Proust tanto amava.
Bounine integra-se nesse tumulto de vida e cultura, mas continua a escrever em russo, para os russos que vivem em Paris. Nunca mais voltará à sua terra...

Recebe em 1933 o Prémio Nobel de Literatura.

Morre em Paris, em 1953. Está enterrado no cimetière russe de Sainte-Geneviève-des-Bois.

As suas obras foram proibidas na Rússia. Reabilitado em 1956, só vem a ser publicado na sua terra em 1980.

3 comentários:

  1. Boa noite
    É muito interessante este seu post.

    "Uma pessoa , uma pessoa apenas que nos procure, já é bom!"

    Muito bonita esta sua frase.
    É o seu amor pelas pessoas.

    "Precisamos uns dos outros"
    Pobre daquele que pensa que não.

    Num comentário seu anterior,sobre a fragilidade de algumas figuras públicas nota-se esse amor e essa compreensão pelos outros.Procurar compreendê-los e não criticá-los.Achei esse comentário uma grande lição.Aprendi consigo.
    Estou sempre a aprender.

    Estou a "fugir"ao tema, mas as conversas são como as cerejas.

    Um beijinho
    Isabel

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  2. Muito interessante!
    Não conheço Bounine e fiquei com vontade de conhecer.
    O último livro que li de Tolstoi foi "Confissão".
    Claro que gostei mas houve determinados pontos de vista que fiquei pela interrogação.

    Obrigada por esta mais-valia.
    Beijinhos! :)

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  3. Quando digo que a minha posição na qualidade de alfarrabista é a de ouvinte e a de permanente aprendiz, não minto nem é falsa modéstia.

    Sinto-me tão "pequenina" no mundo dos livros... tanto para aprender... tanto para descobrir... tanto para ler!!

    ...e uma angústia constante por não conseguir abarcar tudo... tantas solicitações... tantos autores...

    Ivan Bunin - mais um desses autores que veio inquietar-me e aumentar o meu desespero e a vontade de o começar já a ler e saborear!

    Muitos parabéns Falcão, pela incansável divulgação da cultura.

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