sexta-feira, 15 de abril de 2022

O Cristo da Paixão o Senhor dos Passos da minha infância

 Estou a pensar na minha que avó tinha muitas formas de superstição. Receava acima de tudo o "mau-olhado" e uma das coisas que nos oferecia, logo ao nascer, era uma pequenina figa de ouro, ou de coral, para pendurarmos numa pulseirinha e assim afastar o mal.

O Senhor do Calvário (*)

É Páscoa e lembrei-me das idas com a avó visitar o "Senhor dos Passos" ou "Senhor do Calvário", como ela dizia. Já vai longe esse tempo e  os "folares" que a saudosa Florinda fazia.

Sei que antes da Páscoa nos entretínhamos a pintar os ovos cozidos (havia uns pós que dentro da água a ferver os coloriam) e eu pintava sempre rostos de chineses nos ovos cozidos em água de açafrão.

Folares com três ovos para o meu pai, com um ovo para nós as mais velhas e a Florinda fazia ainda, com a massa, uns "lagartos" e punha-lhes uma amêndoa na boca para a mais pequenina.

E havia as amêndoas, cobertas de açúcar ou chocolate, feitas em Portalegre que pareciam ovos de pomba, perfeitinhos. Eram – e ainda são - famosas essas amêndoas.

Como ia contando, a Avó levava-nos todos os anos ao Calvário para ver o Cristo morto.

Cristo do Ciganos de Jerez

Antes, passara Ele em procissão, descalço, curvo debaixo da cruz de lenho, pensativo. Percorria a cidade da Sé até à Igreja do Calvário.

"E, vivo ainda, o Cristo espasma e agoniza,

E avança ao avançar da lenta procissão…

A lua é uma auréola indecisa

Molhando a multidão." (**)

 

Nesse dia, as janelas e as varandas da minha rua ficavam cheias de colchas coloridas, de damasco pesado. Cores que iam do cor de rosa mais berrante ao vermelho cardeal vivíssimo, do amarelo-dourado ao azul turquesa, ou apenas colchas de seda simples ou de algodão.
o Cristo que era da minha mãe, por Rosa Ramalho

O meu pai - ateu se dizia ele - não deixava pôr colchas porque não era religioso no entanto, por respeito pelos que o eram, não queria que ficássemos a “olhar” como observadoras das nossas janelas.

 
Vista por Fernando SP - um "amigo" desaparecido

Por isso, íamos ver a procissão em casa da tia Leopoldina, irmã da minha avó. As sacadas dela estavam enfeitadas de colchas antigas de seda. A casa ficava muito perto do Largo da Sé de onde partia a procissão e nós ficávamos na expectativa de ver o cortejo aparecer de repente.

Começava a ouvir-se ao longe um som de rezas. Lembro a música fúnebre, tocada pela banda, recordo as figuras descalças, com túnicas escuras e cabeças baixas.

O andor do Cristo passava lentamente seguido por uma Virgem chorosa, vestida de azul. Em volta havia muitas velas e uns anjinhos brancos com asas enormes a abanar. O Cristo ia ser crucificado, segundo diz a Bíblia.

Do alto da janela deitávamos pétalas perfumadas de rosas e de cravos sobre o cortejo. E Ele seguia para o Calvário atravessando Portalegre.

"Descida da Cruz", de Sandro Botticelli (esquerda) e de Luca Signorelli (direita)

Passados uns dias, íamos à Igreja do Calvário com a Avó visitar o “seu” Cristo. Ficávamos silenciosas a ver o Cristo da Paixão vestido de roxo, sob uma cruz de lenho escuro. Lembro a testa, sangrando em bagas de rubi, cravada de espinhos, e os olhos pensativos e tristes que ele tinha.

A avó sentava-se um pouco, com o seu véu branco na cabeça inclinada para um lado, e as pontas do véu caídas sobre os ombros. De olhos fixos, cheios de brilho, devia pedir ao Cristo muitas coisas.

Depois ensinou-nos a dar um beijo no pé direito do Cristo e rezávamos uma oração pequenina que esqueci. Lembro hoje com saudade as nossas "visitas" ao Cristo da Paixão. 

E deixo uns versos do grande Poeta José Régio que me trazem tantas recordações e é este Cristo da Paixão que eu 'vejo' hoje.

um anjo musicante de Rosso Fiorentino
 
"Pendente da cruz negra, envolto em luar frio,

Tremendo, ao baloiçar do seu pesado andor,

No corpo nu perpassa um arrepio

De carne e de terror…

.. 

E eu sinto, agora, um mundo contra o peito,

E olhando o Cristo, ao som da marcha de aflição,

Vou, cheio de soluços, contrafeito

Entre esta multidão.

...

"Mas o que eu amo em ti, divino Cristo exangue,

É o que em ti é Dor, e assim a nós te irmana:

Teu sonho imenso, o teu suor de sangue,

A tua carne humana…"


(José Régio, Quinta-feira Santa)

(*) imagem do "Cristo do Calvário", obra encontrada há pouco tempo na Sé de Portalegre durante o restauro que se está a realizar na catedral. Esta figura do "Ecce Homo" deveria estar presente no Altar mas foi substituída, no século XIX supõe-se, por um "Cristo ressuscitado". Estava guardada e era agora um Cristo jacente. Encontrei informações sobre este restauro na página do FB de Aurélio Bravo.

(**) do poema de José Régio intitulado "Quinta-feira Santa", in "Poemas de Deus e do Diabo"


quarta-feira, 13 de abril de 2022

Joyce Carol Oates: a doçura e a crueldade da vida...

Há uns anos li o livro de Joyce Carol Oates "Nous étions les Mulvaneys" (1) e impressionou-me. Fiquei a gostar da escritora  de quem ignorava tudo na altura. Creio que admirei nela a sensibilidade e a compreensão da complexidade da vida. Ou, melhor: a doçura e a crueldade da vida.

É verdade que a tinha conhecido través de Rosamond Smith - um dos pseudónimos que usa para os livros policiais (2). Devo dizer que são livros de grande violência psicológica e física que nos deixam uma marca profunda porque verdadeiros, procurando fundo a causa do problema. 

No jornal Le Monde (3) encontrei um artigo, “La ténacité de Joyce Carol Oates”, que me levou a procurar mais livros dela. É uma mulher inteligente, corajosa, com uma teimosia em escrever à prova de tudo.

 
imagem Le Monde

Nunca desiste e é capaz de reescrever uma obra, tal como aconteceu ao livro "Marya: a life". Pronto o livro, com editor escolhido e tudo, decide não o publicar e volta a escrever tudo do princípio. Segundo a escritora, o livro que sai depois, em 1988 "ficou mais profundo, mais poético, mais misterioso".

Cada obra é única e imprevisível. Por vezes uma história aparece de repente, outras vezes é difícil defini-la, tenta abrir caminho até nós e não a vemos claramente. Mas seja como for é sempre um desafio.” (art.cit.)

Nasceu em 16 de Junho de 1938, na cidade de Lockport. Cresceu longe da agitação da cidade, na quinta da família, no Upstate de New York, em Millerspot.

Era a mais velha dos três filhos de Carolina Bush – dona de casa de origem húngara - e de Frederic James Oates, fabricante de ferragens. Com eles vivia a avó materna, Blanche, a quem Joyce se sentia muito ligada. Só depois da avó ter morrido soube que o bisavô materno se suicidara e que eram húngaros de origem judaica.
Quando o bisavô chega aos Estados Unidos o único trabalho que encontra é o de coveiro, por isso ela vai escrever as memórias da avó, a filha do coveiro.

No ensino médio vai frequentar escolas mais importantes no centro da cidade. Com 17 anos chegou a trabalhar no jornal da escola. Entra para a Syracuse University onde se vai licenciar em Literatura Inglesa, em 1960.

Segue-se uma carreira de professora universitária. De 1978 a 2014 ensinou na Princeton University. Dirigiu um Programa de Escrita Criativa e foi Professor Emerita in the Humanities. Ainda hoje é “visiting professor” na University of California, em Berkeley.

As suas preferências literárias eram muito variadas. E escrevia. Confessa que desde muito jovem lia muito, lia tudo: Faulkner, Dostoievsky, Thoreau, Kafka, Flannery O’Connor, Thomas Mann, e Ernest Hemingway.

Confessa a importância deste último escritor: "As minhas primeiras histórias foram compostas no espírito de "In Our Time" (publicado em 1924).

Admira as escritoras Emily e Charlotte Brontë e amava a figura de Jane Eyre. Lewis Carroll teve, no entanto, uma grande influência nos primeiros tempos. 

Segundo explica  a escritora no artigo citado, Carroll e a sua “Alice no país das maravilhas” foram uma referência importante.Tal como Lewis Carroll – explica– eu inventava histórias que ilustrava com os principais personagens que tinha à mão, os gatos ou os frangos.”

Havia um galinheiro na quinta do Upstate e Joyce recorda a figura do seu “animal de estimação”, Happy, um frango que ela passeava por toda a parte. Com certa ironia amarga, conta que ele fez parte da sua primeira lição de Metafísica. Certa manhã ao entrar na cozinha vê  Harrybranco, sem pele nem cabeça a refogar mergulhado numa gordura amarelada” na panela. (4) 

Desta estranha experiência da morte Joyce tira as primeiras histórias e ensinamento-chave: "A existência pode ser doce e cruel simultaneamente, Happy e unhappy."

Como referi, o primeiro livro que li dela impressionou-me. Intitulava-se “Nous étions les Mulvaneys” e li-o na edição francesa.

Quem eram estes Mulvaneys? Eram uma família normal e extrovertida que comunicava. Ninguém calava as mágoas, todos protestavam ao mesmo tempo. Ouviam-se uns aos outros mas queriam ser ouvidos. Comunicavam – era isso.

Eram felizes na quinta, a High Point Farm, onde havia cavalos, cães, ovelhas, campos. E uma série de gatos. E até pássaros.E campos, campos. E árvores enormes. E o céu azul.

Seis pessoas, gatos e cães, visitantes e convidados frequentes – pois os nossos pais gostavam muito de receber” (pg.33) – diz Judd Mulvaney o mais novo da família que nascera muitos anos depois dos outros.É ele um dos narradores.

O poder que as coisas tinham. Tudo e

ra absoluto, intenso e quase doloroso nessa época” recorda ele. (pg. 34)

À roda da mãe, Corinne, de cabelo ruivo e despenteado a fugir debaixo do chapéu de palha. A mãe que sabia rir de tudo e lhe dizia: “Quantos mais formos os loucos dentro de casa, mais nos divertimos!” (pg.35)

E Judd “imaginava-se” lá – ele que nessa altura ainda não tinha nascido. Sim, imagina-se à volta da "mãe-maria-rapaz e que sabia assobiar como um homem” que a família se define e se encontra, nas diferenças que a compõem. 

A família ia crescendo e o tempo correndo – sem ninguém saber para onde. Até ao dia em que um simples acontecimento, “aquilo” como lhe vão chamar sempre, destrói a vida dos Mulvaneys. O que aconteceu na festa de fim de curso a Marianne, a única filha, e aquilo. A tristeza, a vergonha, a raiva e a impotência. E a separação.

Não vou contar o que se passou mas Judd fica sozinho com os pais e vive e bem de perto o descalabro de High Point Farm, a queda dos sonhos e as esperanças de todos.  A história é contada ora sob o ponto de vista de Judd ora dos outros. Judd quando começa a contar tem já trinta anos. Sente-se a nostalgia de um tempo em que não era nascido de que ouvira só falar depois. “Queria ter estado presente, ter visto."

Do modo como a família tinha subido de classe tendo consciência, no entanto, de que os outros nunca os tinham aceitado como “pares”. Eram felizes sim. E invejados. E quando veio a derrocada foi muito fácil para esses outros julgá-los.

Estavam fora do seu lugar” dirão ele depois de “aquilo” acontecer. As expectativas, os anseios, a esperança – tudo se esvai na desgraça dos Mulvaneys.

Joyce Carol Oates escreve e publica continuamente. O escritor John Updike compara a sua produtividade à de um Dickens ou um Balzac.

 Nasceu fora do tempo, com cem anos de atraso.” (artigo citado)

Ela argumenta apenas: “Um artista não faz contas, faz o que tem a fazer, cria”. Não lhe importa o “quanto” escreve sim  o "como". E fá-lo aplicada e tenazmente.

“Devia ter 13 ou 14 anos quando a minha avó me ofereceu uma prenda mágica. Uma máquina de escrever Olivetti portátil da qual me apaixonei logo.” (3)

Fala da máquina como um trabalhador do seu instrumento de trabalho, de um utensílio ou uma ferramenta - porque o seu trabalho é escrever – assim o pensava ela adolescente. É uma escritora que vibra com os problemas dos outros e com os próprios sentimentos, que admira e que escreve como sendo uma dádiva de si.

E que sabe apreciar, amar e recordar os outros. De facto, em 1966, dedica um dos livros a Bob Dylan : “Where are you going? Where have you been”, por causa da canção “It’s all over now, baby blue” que a tinha emocionado e inspirado.

No livro “The Gravedigger’s Daughter” (5) conta a história da avó materna e os seus antecedentes judaicos.

Mais tarde, em 2014, sai “Rapariga negra, rapariga branca” (6) onde fala do problema crucial dos Estados Unidos que ainda hoje divide os americanos: a relação com uma parte dos “nacionais” afro-americanos, descendentes dos escravos.

Assunto difícil de tocar ainda hoje, mas para o qual creio que uma barreira se quebrou. Nos tempos que correm, fala-se de tudo, questiona-se o uso excessivo da força contra os negros por parte da Polícia e manifestam-se brancos e negros lado a lado. 

Mas qual a opinião e os sentimentos dos americanos "brancos, homens, racistas"?

Em “Rapariga Negra, Rapariga Branca” duas jovens americanas, uma negra e uma branca, tornam-se amigas num “campus” universitário e estudam juntas. Um dia a rapariga negra desaparece. Anos mais tarde, a amiga tenta encontrá-la.

Desde 1986 (nos anos do post-Vietname) que pensava falar desse assunto. Começou a escrever mas pôs de parte a ideia, sentia que não era a altura certa. Volta a pegar no manuscrito e rescreve-o em 2011 quando Barack Obama é eleito Presidente dos USA.

Foi a eleição de Barack Obama que me deu a chave da história. Tinha finalmente a possibilidade de contar uma história da América negra com um fim positivo no horizonte.”

Cada ano sai mais um livro. Há muitos livros de Joyce Carol Oates para procurar e ler.

A escritora recebeu alguns prémios incluindo o importante National Book Award pela novela “Them” (1969); recebeu duas vezes o Henry Awards; uma medalha, The National Humanities Medal; e o Jerusalem Prize(2019).

Grande parte dos seus livros chegaram à final do Pulitzer Award. Em 2001 foi escolhida pela Ophrah’s Book Club.

E por que não ainda o Prémio Nobel?, pergunto. Agora que morreram os meus escritores preferidos – Aharon Appelfeld e Amos Oz - eu gostaria de a ver premiada.

É preciso que haja mais mulheres Prémio Nobel porque escrevem tão bem como os homens e, no entanto, a “disproporção” no número de premiados entre os dois géneros é enorme!

                                                                                ***

(1)"Nous étions les Mulvaneys", Stock, 1998. "We were the Mulvaneys", The Ontario Review, 1996

(2) Rosamund Smith - entre 1990 e 2000, Oates escreveu romances policiais com este pseudónimo e com o de Lauren Kelly

(3) Le Monde de 17 de Julho de 2020, secção cultural, L'été des livres, "La ténacité de Joyce Carol Oates"

(4)  Paysage perdue 2017

(5)  "A Filha do Coveiro", 2007, publicado em Portugal pela Bertrand

(6) Rapariga negra, rapariga branca, edição portuguesa, Livraria Bertrand.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Joyce_Carol_Oates

https://www.publico.pt/2014/08/29/culturaipsilon/entrevista/joyce-carol-oates-nao-sou-eu-e-a-escritora-1667663

https://celestialtimepiece.com/2015/03/15/we-were-the-mulvaneys/