Estou a pensar na minha que avó tinha muitas formas de superstição. Receava acima de tudo o "mau-olhado" e uma das coisas que nos oferecia, logo ao nascer, era uma pequenina figa de ouro, ou de coral, para pendurarmos numa pulseirinha e assim afastar o mal.
É Páscoa e
lembrei-me das idas com a avó visitar o "Senhor dos Passos" ou "Senhor do
Calvário", como ela dizia. Já vai longe esse tempo e os "folares" que a saudosa Florinda fazia.
Sei que antes da Páscoa nos entretínhamos a pintar os ovos cozidos (havia uns pós que dentro da água a ferver os coloriam) e eu pintava sempre rostos de chineses nos ovos cozidos em água de açafrão.
Folares com três ovos para o meu pai, com um ovo para nós as mais velhas e a Florinda fazia ainda, com a massa, uns "lagartos" e punha-lhes uma amêndoa na boca para a mais pequenina.
E havia as amêndoas, cobertas de açúcar ou chocolate, feitas em Portalegre que pareciam ovos de pomba, perfeitinhos. Eram – e ainda são - famosas essas amêndoas.
Como ia contando, a Avó levava-nos todos os anos ao Calvário para ver o Cristo morto.
"E, vivo ainda, o Cristo espasma e agoniza,
E avança ao avançar da lenta procissão…
A lua é uma auréola indecisa
Molhando a multidão." (**)
O meu pai - ateu se dizia ele - não deixava pôr colchas porque não era religioso no entanto, por respeito pelos que o eram, não queria que ficássemos a “olhar” como observadoras das nossas janelas.
Por isso, íamos ver a procissão em casa da tia Leopoldina, irmã da minha avó. As sacadas dela estavam enfeitadas de colchas antigas de seda. A casa ficava muito perto do Largo da Sé de onde partia a procissão e nós ficávamos na expectativa de ver o cortejo aparecer de repente.
Começava a
ouvir-se ao longe um som de rezas. Lembro a música fúnebre, tocada pela banda,
recordo as figuras descalças, com túnicas escuras e cabeças baixas.
Do alto da janela deitávamos pétalas perfumadas de rosas e de cravos sobre o cortejo. E Ele seguia para o Calvário atravessando Portalegre.
A avó sentava-se um pouco, com o seu véu branco na cabeça inclinada para um lado, e as pontas do véu caídas sobre os ombros. De olhos fixos, cheios de brilho, devia pedir ao Cristo muitas coisas.
Depois ensinou-nos a dar um beijo no pé direito do Cristo e rezávamos uma oração pequenina que esqueci. Lembro hoje com saudade as nossas "visitas" ao Cristo da Paixão.
E deixo uns versos do grande Poeta José Régio que me trazem tantas recordações e é este Cristo da Paixão que eu 'vejo' hoje.
Tremendo, ao baloiçar do seu pesado andor,
No corpo nu perpassa um arrepio
De carne e de terror…
..
E eu sinto, agora, um mundo contra o peito,
E olhando o Cristo, ao som da marcha de aflição,
Vou, cheio de soluços, contrafeito
Entre esta multidão.
...
"Mas o que eu amo em ti, divino Cristo exangue,
É o que em ti é Dor, e assim a nós te irmana:
Teu sonho imenso, o teu suor de sangue,
A tua carne humana…"
(José Régio, Quinta-feira Santa)
(*) imagem do "Cristo do Calvário", obra encontrada há pouco tempo na Sé de Portalegre durante o restauro que se está a realizar na catedral. Esta figura do "Ecce Homo" deveria estar presente no Altar mas foi substituída, no século XIX supõe-se, por um "Cristo ressuscitado". Estava guardada e era agora um Cristo jacente. Encontrei informações sobre este restauro na página do FB de Aurélio Bravo.
(**) do poema de José Régio intitulado "Quinta-feira Santa", in "Poemas de Deus e do Diabo"
Descrevendo as
ResponderEliminarDescrevendo as coisas tal qual, não há quem te ganhe. Desde a minha perspectiva de ateia empedernida, recordo com carinho quase o mesmo que tu. A minha avó ia mais longe, e tiravas-nos o quebranto com uns rezos e outras artes, onde entravam um prato com água no cual ia deitando gotas de azeite...
Bom finde, vem aí um tempo péssimo!